ARTIGOS

Transitando entre o cuidar do outro e o cuidar de si mesmo – acolhimento aos trabalhadores da saúde na pandemia de Covid-19


Moving between caring for others and caring for oneself – embracement to the health workers in the Covid-19 pandemic
Mirian Iolanda Rejani
Maria José Morais

RESUMO
O objetivo deste trabalho é a apresentação da experiência de um grupo on-line de acolhimento destinado aos trabalhadores da área da saúde envolvidos no atendimento de pacientes com Covid-19. A modalidade de atendimento foi a de grupo aberto, de frequência semanal, com o limite de oito participantes, realizado no período de junho de 2020 a abril de 2021. Os encontros grupais com os profissionais revelaram a angústia desencadeada pela sobrecarga no cuidado com os doentes e do contato diário com o sofrimento e a morte. A angústia, quando não representada psiquicamente, expressava-se pelas vias do comportamento ou somática, comprometendo, assim, o equilíbrio psicossomático dessas pessoas. O grupo enquanto espaço potencial virtual propiciou a abertura à expressão, elaboração e representação das angústias despertadas no cotidiano do trabalho.


Palavras-chave: Acolhimento, Angústia, Equilíbrio psicossomático, Grupo, Cuidado.

ABSTRACT
The purpose of this study is to present the experience of an online embracement group for health workers involved in the care of patients with Covid-19. The care modality was the weekly open group, with a limit of eight participants, held from June 2020 to April 2021. The group meetings unveiled the anguishes developed by health workers as consequence of the overload from caring for the ill and being ceaselessly in touch with suffering and death. Anguish not represented psychically was expressed through behavioral or somatic ways, therefore compromising the psychosomatic balance of these people. The group as a potential virtual space provided the opening to the expression, elaboration and representation of the anxieties aroused in the daily work.

Keywords: Embracement, Anguish, Psychosomatic balance, Group, Care.


Introdução

No final do ano de 2019 um vírus altamente contagioso e até então desconhecido, o novo coronavírus (Sars CoV-2), causador de Covid-19, doença infecciosa, começava a se disseminar mundo afora, provocando aumento expressivo no número de infectados e de mortes relacionadas às complicações provocadas por esse agente viral. A apreensão com o risco do contágio e da morte colocou a população em contato com a angústia do real e a vivência do desamparo.

Sobre o assunto, Birman (2020) aponta que a experiência psíquica do sujeito diante da pandemia de Covid-19 pode ser caracterizada como uma situação traumática, resultado do impacto violento e inesperado da angústia do real sobre o psiquismo, que coloca o sujeito diante do desamparo. Ainda segundo esse autor, a vivência do trauma pode organizar diferentes formações sintomáticas como linhas de fuga na recepção do traumático. Birman elenca algumas dessas formações sintomáticas, que seriam os destinos do trauma e da angústia real no psiquismo. São elas: os sintomas hipocondríacos, que mostram a fragmentação corporal acompanhada de dissociação psíquica; os estados depressivos e melancólicos; os rituais obsessivos relacionados à higiene e à assepsia; as condutas adictivas; os comportamentos agressivos e violentos; as crises de pânico. De acordo com o autor, a grande vulnerabilidade psíquica dos sujeitos diante da pandemia de Covid-19 reativa o desamparo original. Tomados de assalto por um inimigo invisível, os sujeitos não encontram nenhuma possibilidade de defesa. Sob essa ótica, entendemos o quanto a pandemia de Covid-19 pode provocar estados de desorganização psíquica e somática na população em geral.

Diante desse cenário, introduzimos a questão de como está a saúde física e psíquica dos trabalhadores da área da saúde no acompanhamento e cuidado de pacientes com Covid-19.

Com base em evidências científicas apresentadas em artigos internacionais, Teixeira et al (2020) referem que os profissionais da saúde estão submetidos a uma situação de enorme estresse decorrente de seu trabalho com pacientes infectados pelo coronavírus. Os estudos realizados com esses trabalhadores revelaram a presença de sintomas de ansiedade, depressão, perda da qualidade do sono, comportamentos adictivos, sintomas psicossomáticos, medo de se infectarem e de transmitirem a doença para seus familiares. No que diz respeito à realidade brasileira, observa-se a gravidade da situação vivenciada nos serviços de saúde, em que a falta de suporte institucional tem provocado intenso sofrimento nesses profissionais, levando-os ao afastamento do trabalho em decorrência de doenças somáticas e/ou psíquicas.

A sobrecarga e o desgaste emocional das equipes de saúde expostas diariamente ao sofrimento e à morte dos pacientes, muitas vezes, sem provimento de recursos para a sua proteção, fazem com que sintam o seu corpo e suas vidas ameaçadas. Consideramos que tal situação, geradora de angústia, pode provocar descompensações no equilíbrio psicossomático.

Diante dessa situação de crise pandêmica, o grupo de trabalho e de pesquisa em saúde coletiva e a equipe do Projeto Clínico de Atendimento em Psicossomática Psicanalítica do Departamento de Psicossomática Psicanalítica do Instituto Sedes Sapientiae criaram um projeto de acolhimento em grupo on-line (inserido na clínica do Instituto Sedes Sapientiae), que foi oferecido aos profissionais da saúde, considerando o aumento da sobrecarga e do desgaste emocional a que estavam expostos.

Este trabalho é resultante de uma primeira experiência em grupo on-line com diversos profissionais da área da saúde. O atendimento foi feito pelas duas terapeutas, autoras deste artigo, mas é um trabalho de toda a equipe do grupo de saúde coletiva, criado por Aline Eugênia Camargo,[1] e do Projeto de Atendimento e Pesquisa em Psicossomática Psicanalítica Clínica.

 

Configuração do espaço grupal

O relato que segue refere-se ao grupo composto por profissionais da saúde do setor público e privado, no período de junho de 2020 a abril de 2021. Tratava-se de um grupo aberto, de frequência semanal, composto pelo limite de oito participantes, com duração de uma hora e trinta minutos, sob a coordenação de dois terapeutas. O grupo tinha por objetivo propiciar a escuta, com vistas ao acolhimento e à elaboração das vivências aflitivas decorrentes do trabalho com pessoas infectadas pelo coronavírus. Como se tratava de um grupo aberto, a configuração não se manteve a mesma ao longo dos encontros, houve entrada e saída de participantes, mas um núcleo inicial, composto por três participantes, promoveu a continuidade e a sustentação do espaço grupal. Enfermeiros, técnicos de enfermagem, fisioterapeutas, fonoaudiólogos, psicólogos e farmacêuticos participaram do grupo, que continuava ativo até o momento da escrita deste artigo, em que contava com seis participantes. A dinâmica consistia em proporcionar a troca de experiências no trabalho nesse momento de crise decorrente da pandemia, com vistas à elaboração das vivências aflitivas.

Um dos desafios a ser enfrentado era saber como se configuraria um grupo on-line, diferente da dinâmica a que estávamos acostumados, de nos reunirmos em círculo, em que as trocas eram feitas não só pela palavra, mas também porelos olhares, gestos, expressões e movimentos corporais. Nesse novo modelo, tínhamos então rostos de pessoas organizados em quadradinhos em uma tela, e o trabalho se realizava através da comunicação entre essas faces, o que, para nossa surpresa, não perturbou a comunicação e a interação grupal.

Ao longo dos encontros, o espaço virtual se constituiu como um espaço potencial, espaço intermediário entre a realidade externa e a interna, onde a circulação e as trocas das experiências do trabalho nessa situação de crise pandêmica favoreceram a escuta e o acolhimento conjunto. Winnicott (1975) refere-se ao espaço potencial como uma terceira área da experiência do viver humano, incontestada quanto a pertencer à realidade interna (subjetiva) ou à realidade externa compartilhada. Nesse espaço, ambas as realidades se encontram e se separam, e seu uso é determinado pelas experiências iniciais do bebê nos estágios primitivos de sua existência, relacionado à fidedignidade e à confiança nos cuidados ambientais. Essa área é conservada durante a vida, estendendo-se da relação entre a mãe e o bebê para a criança e a família, para o indivíduo, a sociedade e o mundo. O grupo com os trabalhadores da saúde pode ser entendido sob a perspectiva do espaço potencial, tal como apontado por Winnicott. O setting grupal constituiu-se em uma área intermediária, na qual os participantes, utilizando-se da realidade externa compartilhada, expressavam elementos de sua realidade interna.

 

O cuidar de si e do outro

Em sua trajetória, os participantes do grupo evocaram a importância de olhar para si mesmos, uma vez que, entre os profissionais de saúde, é comum dispensarem muito tempo para cuidar do doente e negligenciarem a própria saúde física e psíquica. A circulação da palavra entre o cuidar de si e do outro foi constante ao longo dos encontros.

O risco de morte, o medo da contaminação e de transmitir o vírus para os familiares eram fontes de angústia, o que, entretanto, só se tornava consciente ao presenciarem a morte e a contaminação de colegas de trabalho ou de pessoas próximas. O risco era real, o medo era legítimo, a saúde física e a psíquica estavam de fato ameaçadas.

Como apontado por Dejours (1992), a vivência do medo diante de situações de risco no trabalho existe efetivamente, mas só raramente aparece na superfície, pois encontra-se contida pelos mecanismos de defesa. Um dos mecanismos de defesa para evitar o contato com o medo e o sofrimento foi observado na sobrecarga de trabalho, muitas vezes autoimposta, extrapolando o limite do corpo. Muitos pensavam na possibilidade de renunciar às férias; outros extrapolavam a carga horária oficial; outros, ainda, mesmo podendo se aposentar, abandonavam esse projeto. Referiam: "Não podemos abandonar o barco. Os doentes precisam de nossos cuidados. Os comandantes são os últimos a sair do navio, quando em pânico".

A sobrecarga de trabalho com o doente manifestava-se pelo cansaço físico, queixa constante entre os trabalhadores da saúde. Essas colocações nos suscitaram algumas questões: O que se expressava no corpo que não era metabolizado pela psique? Estávamos diante de uma sobrecarga física, psíquica ou da interligação desses dois aspectos?

Ao pensar sobre a relação homem-trabalho, Dejours (1994 [1980]) aponta que o organismo do trabalhador não é uma máquina, mas, sim, fonte de excitações tanto exógenas como endógenas, além de ter também uma história pessoal que o leva a diferentes vias de canalização dos excessos que invadem o psiquismo. Segundo esse autor, se o trabalho permite a diminuição da carga psíquica, ele é equilibrante, mas, no caso de um acúmulo de energia psíquica incapaz de ser elaborada pelas vias mais mentalizadas, a carga psíquica cresce até que aparecem a fadiga, a astenia e, a partir daí, a patologia, que é o trabalho fatigante.

Com base na realidade apresentada pelos profissionais que fizeram parte do grupo de que trata este artigo, observou-se que a pandemia de Covid-19 provocou uma reorganização total do trabalho nas unidades de saúde e no cotidiano dos trabalhadores. Funcionários do grupo de risco foram afastados e orientados a realizar teletrabalho; equipamentos de proteção individual foram utilizados pela equipe em grande escala; os cuidados com higienização e assepsia foram redobrados; a escala dos horários de trabalho foram reformuladas; além disso, houve um contato frequente com a morte, o que pode levar à sobrecarga física e psíquica.

Quando a capacidade de contenção transbordava, a energia era descarregada no corpo, traduzida sob a forma de fadiga, que se expressava em descompensações somáticas, observada entre os participantes por dores lombares, dermatites, alergias, insônia, elevação da pressão arterial, taquicardia, dores precordiais, crises de asma. O sofrimento não passível de ser expresso em palavras e de ser elaborado pelas vias psíquicas manifestava-se no corpo, que mostrava os sinais do excesso através das descompensações psicossomáticas.

Os integrantes do grupo não se davam conta do excesso até que o corpo mostrasse o limite. "Profissionais de saúde são fortes, têm que aguentar." "Profissional de saúde não pode adoecer." "Não se pode fraquejar." Essas falas, frequentes entre os trabalhadores, mostravam que o cuidado com o outro acabava excluindo o cuidado consigo mesmo. O trabalho ficava impregnado no corpo, invadia a vida, o sono, o sonho. Apesar de sentirem necessidade de relaxar, eram raras as ocasiões em que se permitiam brincar, assistir filmes, praticar meditação.

Os integrantes do grupo tendiam a silenciar o desconforto físico ou psíquico, o que corrobora com a afirmação de Dejours (1992) de que o trabalhador, quando doente, não comunica seu estado, calando-se. O adoecer passa a ser visto como sinal de fragilidade.

É importante também lembrar a valorização do trabalho presencial em comparação com o teletrabalho, no caso dos profissionais do grupo de risco, que foram afastados. Durante os encontros grupais, os profissionais que faziam parte dessa modalidade de trabalho percebiam-se como invisíveis, e a solidão tomava conta do seu cotidiano. Consideravam, ainda, que a equipe discriminava e desqualificava os que foram afastados, o que provocava sofrimento pela exclusão. Porém, observamos que a desvalorização era dos próprios profissionais em teletrabalho, que não davam a devida importância ao trabalho que realizavam. Surgia a culpa pelo afastamento, pelo abandono da equipe e por estarem em situação "de maior conforto". O afastamento do trabalho lhes dava a sensação de habitar um corpo frágil, um corpo doente.

Segundo Dejours (1992), o corpo só pode ser aceito enquanto saudável e, portanto, força de produção. Estar doente é motivo de vergonha, do julgamento dos demais por estar em um corpo que não produz. Daí o medo de adoecer, de necessitar de um leito de hospital e depender dos cuidados da equipe de saúde, fala frequente entre os trabalhadores, o que os deixaria em situação de vulnerabilidade, de dependência, identificados com o paciente a quem prestavam assistência. Ainda de acordo com Dejours (1992), uma estadia no hospital é muito temida, e é o que se tenta evitar a todo custo. A hospitalização revelaria o fracasso, a quebra da defesa contra a doença.

Entre os participantes, não poder fraquejar e adoecer tinha a função de negar o medo da morte, que muitas vezes era banalizado com falas do tipo: "Quem será a próxima vítima?". O grupo criava mecanismos de defesa comuns, impedindo, por identificação entre os membros, o aparecimento de representações perigosas.

Volich (2010), citando Marty (1976), aponta que o desenvolvimento do ser humano é determinado por tendências à formação de estruturas, dinâmicas e funções, das mais simples às mais complexas, em um movimento de organização, de associações e de hierarquização, até que a criança tome para si essa organização, que se dará em planos cada vez mais organizados e complexos. Esse movimento evolutivo pode ficar prejudicado em virtude das perturbações do desenvolvimento, quer por carência ou por excesso de investimento libidinal da mãe ou pela ocorrência de eventos traumáticos com os quais o sujeito se depara ao longo da vida, podendo provocar regressões ou desorganizações, comprometendo o equilíbrio psicossomático.

No grupo em questão, com base nas colocações de Marty (1993), percebemos que o traumatismo decorrente da pandemia de Covid-19 provocou uma desorganização nos aparelhos funcionais dos participantes, propagando-se em sentido inverso ao do desenvolvimento por não encontrar um sistema que pudesse contê-la. De acordo com Marty, os traumatismos afetam primeiro o aparelho mental, que tenta bloquear, moderando ou não os movimentos de desorganização antes de chegar às esferas menos evoluídas. Os integrantes do grupo, apesar de possuírem recursos psíquicos para lidar com a situação de estresse a que estavam expostos, utilizavam-se da sobrecarga de trabalho como defesa frente às representações ameaçadoras. Tal recurso os ajudava a manter certo equilíbrio psicossomático, impedindo uma desorganização maior. As defesas falhavam, entretanto, ao terem notícias de colegas que haviam contraído a doença ou se envolverem com pacientes isolados no leito de hospital com quadros graves. Nessas situações, a tristeza e o medo ficavam evidentes, e a negação cedia lugar à angústia depressiva. Abria-se, assim, a possibilidade de representação psíquica das vivências aflitivas.

Com o agravamento da pandemia e o aumento do número de mortes, principalmente entre os mais jovens, o medo de adoecer e de morrer tornou-se uma realidade ameaçadora. Percebiam-se como se estivessem em uma "guerra", em luta contra um inimigo poderoso e invisível. Perguntavam: "Quem sobreviverá?", "Até quando estarei protegido?", "Até quando estarei aqui?", "Terei tempo de realizar meus projetos?".

Surgia o medo do desconhecido, de como o corpo reagiria diante de uma possível contaminação, que remédio tomar. Em questões do tipo: "Estarei imune à contaminação, mesmo estando vacinado?", "Terei medicação suficiente?", "Serei bem acolhido" e "Terei leito disponível no hospital?", a angústia frente ao desconhecido e o temor do desamparo ficavam evidentes.

 

A vivência do desamparo

Vivemos uma situação em que nosso corpo está ameaçado; as leis e instituições criadas para nossa proteção não cumprem essa tarefa, pelo contrário, não encontramos pontos de ancoragem nas instituições que deveriam nos proteger, o que nos coloca em uma situação de desamparo, em que a morte e o contágio se tornam realidades ameaçadoras. Estamos diante da invasão do real, sem garantias no simbólico representacional.

Freud (1976 [1926]) refere que o ego fica reduzido a um estado de desamparo diante de uma tensão excessiva decorrente de uma situação de perigo real que não pode ser representada psiquicamente, instalando-se, assim, a angústia automática. Esse excesso de excitações, decorrentes de uma situação de perigo, invade o psiquismo, provocando um acúmulo de estímulos que precisam ser metabolizados ou eliminados. Volich alega que, diante do excesso de excitações, o ego não é capaz "de constituir angústias-sinal que poderiam alertar para a iminência de um perigo e para a necessidade de mobilizar a economia psíquica para enfrentá-lo" (2010, p. 295). O aparelho psíquico, na ausência de recursos mais mentalizados para dar conta do excesso a que está submetido, pode lançar mão de descargas comportamentais ou somáticas para poder se organizar e restabelecer o equilíbrio psicossomático.

A angústia do real nos remete às neuroses traumáticas. Sobre o tema do trauma, Freud (1976 [1920]) aponta que sua causa está no fator surpresa, susto, estado em que alguém fica quando está em perigo sem estar preparado para ele. São traumáticas todas as excitações vindas de fora que tenham força para romper o escudo protetor contra os estímulos, provocando uma desorganização e comprometendo, assim, a vinculação desses estímulos ao domínio psíquico.

Segundo Marty (1998 [1991]), os acontecimentos e situações a que estamos expostos suscitam excitações que necessitam ser metabolizadas. As vias de metabolização e de elaboração dessas excitações, de acordo com esse autor, são as do trabalho mental, dos comportamentos sensoriais e motores e das expressões somáticas. A utilização de qualquer uma dessas possibilidades, que visam restabelecer o equilíbrio psicossomático, depende tanto dos recursos internos que o sujeito possui quanto da intensidade das excitações externas a que está submetido. Acrescentamos a importância da função do ambiente nessa elaboração. Um ambiente que oferece segurança é continente das angústias despertadas no cotidiano do trabalho e favorece a organização e o equilíbrio psicossomático. Porém, o que fazer diante de um ambiente caótico, que não oferece segurança?

Cabe aqui a citação de Winnicott:

 

Provavelmente será o ser humano que destruirá o mundo. Se assim for, talvez possamos morrer na próxima explosão atômica sabendo que isso não é saúde, mas medo; é uma decorrência do fracasso das pessoas e da sociedade saudáveis em dar suporte a seus membros doentes. (WINNICOTT, (1996  [1967]), p. 29)

 

Nada mais atual para o momento em que vivemos. Onde encontrar amparo diante do caos instituído, diante do descaso das políticas públicas no manejo da crise que enfrentamos?

A experiência com esse grupo mostrou que a vivência dos trabalhadores da saúde era de desamparo, sentido tanto do ponto de vista das políticas públicas quanto do próprio ambiente institucional, que, em alguns casos, não oferecia sustentação, função de holding, segundo Winnicott, tão importante para o acolhimento das angústias. Winnicott (2006) refere-se ao holding como uma das funções da mãe em promover um ambiente suficientemente bom para o seu bebê nos estágios iniciais da vida, adaptando-se às suas necessidades e tornando o ambiente confiável. Os cuidados com as crianças giram em torno do termo "segurar", acrescenta Winnicott, que, no início, se relaciona ao segurar físico. À medida que o bebê cresce, a função de holding se estende para o grupo familiar, para o trabalho com pacientes nas profissões relacionadas ao cuidado. Entendemos também a importância dessa sustentação institucional fornecida nos ambientes de trabalho onde os integrantes do grupo estavam inseridos, que, no entanto, se percebia como falha.

Pela falta de sustentação no ambiente de trabalho, observamos que os sentimentos entre os integrantes do grupo eram de solidão e de medo, agravados pelo fato de alguns terem precisado se afastar das próprias residências, para proteção dos familiares. As defesas psíquicas habituais para lidar com as dificuldades entraram em colapso. Fez-se necessária uma nova organização defensiva.

O trabalho em excesso, nesses casos, parecia servir como defesa frente ao desamparo, à incerteza e à falta de proteção institucional. O grupo mostrou que não se podia parar. Parar era dar lugar ao pensamento que podia ser aterrorizante. O fazer tomava conta do cotidiano até se chegar à exaustão. Nem o sono era relaxante, não permitia o desligamento da realidade. O despertar era invadido pelo trabalho, pela adrenalina que preparava o organismo para a realização das tarefas. O barulho dos equipamentos da UTI, o som das chamadas telefônicas, o burburinho presente nas unidades de saúde, as histórias de vida dos pacientes ficavam presentes, mesmo quando distantes do ambiente de trabalho.

Uma das saídas encontradas pelos participantes do grupo para lidar com esse afluxo de excitações que invadiam o psiquismo foi pela via do comportamento operatório, do fazer, que tem a função de manter certo equilíbrio psicossomático. Segundo Smadja (2014), a realidade operatória permite ao ego melhor adaptação à realidade traumática com a qual o sujeito foi confrontado. O mal-estar e a angústia decorrentes do traumatismo cedem lugar ao apagamento das produções e representações psíquicas. Com base no pensamento de Smadja (2014), pensamos que os comportamentos operatórios dos integrantes do grupo podiam ser entendidos como a adaptação do ego aos eventos traumáticos, como recursos defensivos diante do impacto da realidade da pandemia de Covid-19.

Porém, quando o comportamento operatório falhava em dar conta do excesso das excitações que invadiam o psiquismo, o corpo dos integrantes do grupo dava sinais do cansaço e reagia, apresentando sintomas psicossomáticos. Segundo Dejours (1994 [1980]), a energia pulsional não descarregada no exercício do trabalho se acumula no aparelho psíquico, provocando um sentimento de desprazer e de tensão. Quando as capacidades de contenção transbordam, a energia acumulada no aparelho psíquico recua para o corpo, desencadeando perturbações no funcionamento somático. 

As doenças somáticas apresentadas pelos participantes do grupo podem ser entendidas como doenças "de crises", que têm função organizadora, tal como relatado por Volich: "São pessoas que geralmente apresentam uma boa mentalização, perturbada temporariamente por algum episódio da vida ou um momento depressivo" (2010, p. 251). Observamos, assim, que, diante das vivências traumáticas decorrentes do trabalho na pandemia de Covid-19, os integrantes do grupo utilizavam-se ora da via do comportamento, ora da via somática como forma de manter o equilíbrio psicossomático.

 

Considerações finais

O espaço grupal tem realizado a função de holding frente ao desamparo desses profissionais. Pela escuta e a troca de experiências, vem se constituindo um continente de acolhimento e de cuidado mútuo, em que não só os coordenadores, mas também os próprios membros exercem a função de paraexcitação, acolhendo, nomeando o sofrimento e dando sentido à experiência. O conceito de paraexcitação, tal como apontado por Volich (2010), apoiado nas concepções de Freud (1976 [1920]) e de Kreisler (1999 [1992]), mostra a importância da mãe em funcionar como uma "película" protetora contra os estímulos internos e externos aos quais o bebê está submetido e que ainda não é capaz de compreender e de assimilar. A mãe acompanha o ritmo e os gestos de seu bebê, interpretando e nomeando o que ele lhe apresenta. Podemos transpor essa função de paraexcitação da mãe para a relação terapêutica. Volich (2010) aponta para a importância do cuidar na relação terapêutica, concepção também compartilhada por Winnicott (1970) quando se refere à cura como cuidado e ao setting analítico como ambiente de holding. Nesse sentido, como enfatiza Volich, o cuidado para com o outro em sofrimento pode ser realizado por qualquer pessoa que exerça a função de terapeuta (não importando sua especialidade técnica) e esteja disposta a acolher um pedido de ajuda. 

Os integrantes do grupo mostravam que a escuta e o cuidado com o outro favoreciam também a escuta e o cuidado consigo mesmo. Era perceptível o envolvimento com o grupo, manifesto na apreensão diante das faltas ou da saída de algum integrante, o que foi entendido como angústia frente à possibilidade de morte do grupo e perda do lugar acolhedor, o que seria vivido como desamparo.

Segundo Kaës (1997), o grupo caracteriza-se pela formação de vínculos entre sujeitos singulares em uma trama de relações intersubjetivas, onde o conjunto torna possível a percepção mútua, o investimento recíproco, as representações e as identificações comuns entre os sujeitos que o constituem. O laço que unia o grupo dos trabalhadores era a relação com o trabalho na pandemia. Os comportamentos e angústias semelhantes manifestos, diante dessa nova realidade, propiciavam identificações comuns, representações e defesas partilhadas. Da mesma forma, as diferenças individuais entre os integrantes tornaram possíveis os intercâmbios, enriquecendo a comunicação e a representação.

O grupo, enquanto espaço potencial virtual, tem se constituído no lugar de encontro intersubjetivo, e, por meio das associações, das múltiplas transferências e da pluralidade dos discursos, tem permitido a abertura à representação das angústias despertadas no cotidiano do trabalho.

Para finalizar, é importante ressaltar a função dos encontros quinzenais com o grupo da saúde coletiva e do Projeto Clínico de Atendimento em Psicossomática Psicanalítica para discussão dos atendimentos, o que também tem se constituído como um espaço de apoio, de cuidado, de suporte e de acolhimento recíproco. Esse fazer coletivo e solidário se reverte no aprimoramento da escuta e no entendimento das dinâmicas grupais.

 

Agradecimentos

Aos integrantes do grupo de Psicossomática e Saúde Coletiva, criado por Aline Eugênia Camargo, em 2014; a Ana Maria Soares e Denise Moreira, representantes do Projeto Clínico de Atendimento em Psicossomática Psicanalítica, pelas trocas construtivas que viabilizaram a concretização e a continuidade desse projeto de acolhimento em grupo.



 


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ano - Nº 3 - 2021
publicação: 20-11-2021
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Autor(es)
• Mirian Iolanda Rejani
Instituto Sedes Sapientiae

Psicóloga e psicanalista. Mestre em Psicologia Clínica pela PUC-SP. Membro dos Departamentos de Psicanálise e de Psicossomática Psicanalítica do Instituto Sedes Sapientiae.
E-mail: mirejani@uol.com.br

• Maria José Morais
Instituto Sedes Sapientiae

Psicóloga com formação em Psicossomática psicanalítica e Psicologia organizacional; acupunturista.

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