ARTIGOS

Histeria, Fobia, Trauma e Psicossomática: A Regra de Três do Corpo Falante


Histeria, Phobia, Trauma and Psychosomatic: The Rule Of Three of The Speaking Body
Marcos de Moura Oliveira

RESUMO
A presente investigação psicanalítica objetiva traçar novas possibilidades para a compreensão do fenômeno psicossomático (FPS) através de um estudo comparativo com histeria, fobia e trauma. O percurso é feito entre as ideias teóricas de Ferenczi e Lacan, e o texto reflete as aproximações e distanciamentos de cada um dos quatro conceitos, estabelecendo um paralelo com a regra de três do corpo falante, na qual, assim como na regra de três matemática, se aproximam os valores relacionados para chegar a um resultado. No caso da aproximação de conceitos, a matemática não é precisa, mas demonstra a hipótese de que o estudo das afecções psicossomáticas pode se beneficiar da produção bibliográfica existente sobre trauma.


Palavras-chave: Fenômeno Psicossomático, Psicossomática, Psicanálise, Corpo, Trauma

ABSTRACT
The present psychoanalytic investigation aims to outline new possibilities for understanding the psychosomatic phenomenon (PSF) through a comparative study with hysteria, phobia and trauma. The route is made between the theoretical ideas of Ferenczi and Lacan and the text reflects the approximations and distances of each of the four concepts, establishing a parallel with the rule of three of the speaking body, which, like the rule of three mathematics, approximate the related values to arrive at a result. In the case of approximation of concepts, mathematics is not precise, but it demonstrates the hypothesis that the study of psychosomatic affections can benefit from the existing bibliographic production on trauma.

Keywords: Psychosomatic Phenomenon, Psychosomatics, Psychoanalysis, Body, Trauma


O interesse pelo estudo das afecções do corpo relacionadas ao psiquismo é causa fundante da psicanálise. Embora toda a nebulosidade das ligações entre corpo e inconsciente não tenha se dissipado até os dias atuais, os analistas da primeira geração inauguraram um novo modo de perceber as manifestações psíquicas no corpo. Sobre esse assunto, Groddeck esclarece:

 

Durante muitas décadas, o pensamento médico esteve baseado num sistema que classificava os acontecimentos dividindo-os em dois reinos: um orgânico e outro psíquico; ambos eram separados por um reino intermediário e impreciso chamado reino nervoso. Este último foi o campo de trabalho de Freud, e as descobertas a seu respeito modificaram paulatinamente a imagem que os médicos faziam do mundo. (GRODDECK, 2011 [1926], p. 159-160)

 

Nesta citação de Groddeck, é preciso destacar algo de não manifesto entre a ordem orgânica e a psíquica. Sobre esse reino intermediário, Lacan (2009 [1953-1954], p. 291) esclarece que "em toda a análise da relação intersubjetiva, o essencial não é o que está ali, o que é visto. O que é estrutura, é o que não está ali". Assim, o trabalho do analista parte do observável rumo ao subjetivo oculto do inconsciente.

O ponto de partida da presente investigação está na diferenciação entre o sintoma histérico e o fenômeno psicossomático, buscando apoio teórico nas afecções que paralisam o corpo através do medo, nomeadas como fobia e trauma. Embora as manifestações indicadas sejam compreendidas em esferas diferentes, sendo fobia e histeria formas de sintoma, e o trauma e o FPS fenômenos, acontecimentos transestruturais, a investigação psicanalítica, como demonstrado por Groddeck, não se guia por uma oposição dual, mas por uma composição subjetiva simultânea.

O discurso médico da inter-relação mente e corpo dá o seguinte esclarecimento sobre os transtornos somatoformes (CID f45):

 

O aspecto principal dos transtornos somatoformes é a apresentação repetida de sintomas físicos juntamente com solicitações persistentes de investigações médicas, apesar de repetidos achados negativos e de reasseguramentos pelos médicos de que os sintomas não têm base física. (CID-10, 1993, p. 158)

 

Assim, o FPS está em campo obscuro, de interafetação psique-soma, porém, ausente de historicidade. Se os sintomas funcionam por metáfora, deslizamento de um significante a outro - que é o que chamamos de historicidade -, é evidente que eles se situam no caminho do desejo. Por outro lado, as manifestações da psicossomática são paralisias do significante, sem os restos responsáveis por sua continuidade.

Embora sintoma histérico e FPS sejam as formas mais conhecidas de interafetações entre corpo e psique, outros fenômenos holofrásicos e metafóricos/metonímicos são observáveis nos caminhos do psiquismo. Esse é o caso da fobia e do trauma. Se sintoma histérico e FPS diferenciam-se pelo fator da historicidade, o mesmo pode ser dito da dupla fobia-trauma, e se a primeira dupla tem em comum a questão do corpo, a segunda é ligada pela relação com o medo, formando assim a seguinte regra de três:

 

                                  Histeria                             Fobia

                                   FPS                                Trauma

 

Se os quatro fenômenos podem se inter-relacionar entre semelhanças e diferenças, a observação deles suscitará novas possibilidades na compreensão do FPS. Passemos ao estudo atento de cada uma delas.

 

Histeria: a história pelo corpo

Em sua etimologia, histeria é uma derivação da palavra grega hystera, que significa "útero". O termo médico hysterikos se referia a uma suposta condição patológica proposta por Hipócrates (460-377 a.C.), na qual se acreditava haver um movimento sanguíneo irregular do útero para o cérebro, causadora de complicações respiratórias, convulsões, vômitos e sinais de ansiedade. A privação de relações sexuais seria, de acordo com a suposição, a causa da aberração no fluxo sanguíneo entre útero e cérebro.

Ao longo dos séculos e das intervenções da filosofia, da medicina e da religião, a histeria que chega ao trabalho de Breuer e à observação atenta de Freud é uma condição voltada às afecções físicas sem causa observável, comumente associadas ao cinismo. Freud assume que se interessou pela investigação da origem da histeria por falas de Breuer, Charcot e Chrobak sobre a natureza sexual da insatisfação de algumas pacientes, embora de formas satíricas (FREUD, 2006 [1914a]).

Conforme a psicanálise avança, os analistas percebem que a manifestação sintomática carrega em si os mais diversos desdobramentos psíquicos provenientes da subjetividade do sujeito. Quanto a essa formação psicossintomática, Groddeck esclarece:

 

A doença é uma forma de expressão do Isso: se os gestos, as palavras, os pensamentos, as ações, mecanismos fisiológicos como a respiração, o pulso, o sono, a digestão ou a evacuação, não bastam para manifestar claramente certos processos internos do Isso individual de cada ser humano, ele recorre ao meio ambiente, ali escolhendo algum elemento que lhe sirva para ficar doente e assim exprimir, com a ajuda das manifestações patológicas, o que não consegue exprimir por vias normais. (GRODDECK, 2011 [1925-1926], p. 103)

 

A ideia do tratamento da histeria consistia na interpretação dos sintomas como forma de atravessamento do sofrimento histérico, mas a experiência demonstrou outro problema técnico: verificava-se que, em muitos casos, após a transposição do sintoma, o sujeito apresentava uma tendência a desenvolver novos sintomas. Isso pode ser demonstrado no caso relatado por Ferenczi em "Dificuldades técnicas de uma análise de histeria" (2011 [1919]), em que uma dificuldade de progresso na análise estagnada apresenta uma questão peculiar: a dificuldade era devida a hábitos de onanismo disfarçado praticados pela paciente. Toda vez que era feita a intervenção sobre a forma de onanismo observada - exemplo: pressionar as coxas; beliscar o corpo, urinar durante a sessão -, a paciente demonstrava melhora, mas, pouco tempo depois, surgia uma nova forma de masturbação larvada.

A experiência de Ferenczi nos coloca frente à ideia lacaniana já apresentada do deslizamento significante. O sujeito passa de um significante ao outro, movido por este ‘resto’ não simbolizado entre um significante e seu sucessor, em uma sequência virtualmente infinita. O resto, que só é perceptível pela via simbólica, recebe de Lacan (2005 [1962-1963]) o nome de objeto a, o objeto causa do desejo.

 

O objeto a faz referência à falta, não sendo especular, nem apreensível na imagem. A falta, segundo Lacan, não existe no real e só seria apreensível através do simbólico. E é também através do simbólico e do imaginário que há a tentativa de preenchê-la. Lacan enfatiza, ainda, a irredutibilidade dessa falta que é radical na própria constituição do sujeito. (GUEDES, 2010)

 

 

                                              a               a               a

S1           S2            S3            S4

 

 

A esse acontecimento Freud (2006 [1914b]) deu o nome de "compulsão à repetição", apontando como caminho do tratamento a "elaboração", uma ab-reação ao afeto. Embora a questão tenha sido nomeada, não havia de fato uma compreensão de como atingir esse estado. Sobre o sentido do adoecimento, Groddeck postula:

 

No ato de adoecer expressa-se o desejo de ser pequeno, receber ajuda, de ter uma mãe e ser isento de culpas. Este desejo poderia intensificar-se até a nostalgia das condições pré-natais, quando não havia consciência, quando o cérebro ainda não pensava, uma nostalgia que me parece estar presente em todos os desmaios e estados de perda da consciência. (GRODDECK, 2011 [1925], p. 99)

 

E prossegue:

 

Quanto mais cedo o Isso infantil fizer tal descoberta, tratando de averiguar que tipo de doença forçaria o meio ambiente, isto é, principalmente a mãe, a desdobrar-se em carinhos e atenções, mais arraigado será o costume de "falar" através do estado doentio, sobretudo das enfermidades crônicas (GRODDECK, 2011 [1925-1926], p. 104)

 

A ideia de Groddeck converge com a "regressão talássica" (FERENCZI, 2011 [1924]) e o "sentimento oceânico" (FREUD, 2006 [1930]), que são as descrições psicanalíticas que indicam estados de completude através do cerceamento pelo líquido, em metáfora ao estado intrauterino. Independentemente da nomenclatura adotada, o deslizamento significante da histeria em diálogo com as observações de Groddeck apontam para a busca de um destino de reintegração com o ventre materno, uma busca que, quanto mais se percorre, mais se afasta, uma vez que o estádio de integração é anterior à linguagem, anterior ao início da cadeia significante.

A esse modo de organização psíquica a psicanálise dá o nome de estrutura. A estrutura, não mais um conjunto de afecções, mas uma forma de o sujeito se relacionar com o desejo, no caso da histeria, um "desejo insatisfeito", um desejo que se expõe em busca de saciedade e migra na cadeia significante para o risco de ser saciado.  

 

Fobia: o tigre de papel

Fobos ("medo", em grego), filho de Ares e Afrodite, irmão gêmeo de Deimos, é deus do terror, companheiro de Ares nos campos de batalha, e o injetor de covardia e medo nos corações dos inimigos (LITTLETON, 2005, p. 1121).

Embora a semântica sugira a fobia como sinônimo do medo, as compreensões médicas e psicanalíticas sugerem algo mais específico. Segundo a CID-10, na classificação f40, sobre os transtornos fóbico-ansiosos, entende-se que:

 

Nesse grupo de transtornos, a ansiedade é evocada apenas, ou predominantemente, por certas situações ou objetos (externos ao indivíduo) bem definidos, os quais não são correntemente perigosos. Como um resultado, essas situações ou objetos são caracteristicamente evitados ou suportados com pavor. (CID-10, 1993, p. 132)

 

Em psicanálise, as fobias foram compreendidas inicialmente sob o nome de "histeria de angústia" (FREUD, 2006 [1909]). Paralela à histeria de conversão, na qual a "conversão" é para o corpo, a fobia é uma histericização que gera a ansiedade[1] referida na CID f40, amplamente observada como manifestação do sintoma fóbico.

No estudo clínico de referência, a fobia de cavalos do pequeno Hans, Freud (2006 [1909]) alterna o uso dos termos fobia e histeria de angústia, sendo o primeiro adotado de forma específica para a manifestação sintomatológica do componente fóbico por Lacan, na releitura do caso feita no seminário "as formações do inconsciente" (1999 [1957-58]), mas, a despeito da confusão acerca da nominação, o medo seletivo de um objeto, os cavalos, ou o medo de ser mordido por um cavalo inaugura o caminho para a compreensão da relação entre o sujeito e o significante fóbico.

 

Originariamente, as fobias se apresentavam como medos, temores aparentemente imotivados, de um objeto ou uma situação que não comporta um perigo real: fobias de certas imagens, de animais que não se encontram mais na realidade, espaços por demais vastos ou confinados (agora ou claustrofobia) etc. (SOLER, 2018, p. 22)

 

Se a histeria é a passagem ao corpo pela via do significante, a fobia também é uma passagem ao corpo, não por uma conversão, mas pela paralisia causada pela ansiedade do encontro com o significante fóbico. Observa-se a fobia como uma forma outra de deslizamento da cadeia significante, uma forma de relação com o desejo.

Sobre a especificidade do caso do pequeno Hans, Lacan esclarece:

 

Só há necessidade de saber que em certos seres, assim chamados, o encontro com sua própria ereção não é absolutamente autoerótico. É o que há de mais hetero. Eles se dizem - Mas, o que é que é isso? E se dizem tão bem, que o pobre menino Hans só pensa nisso - o encarna em objetos que são francamente externos, isto é, nesse cavalo que relincha, que dá coices, que salta, que cai no chão. Esse cavalo que vai e vem, que tem certo modo de deslizar-se ao longo dos trilhos arrastando sua charrete, é o que há de mais exemplar para ele daquilo que tem que enfrentar e sobre o qual não entende nada, sem dúvidas graças ao fato de que tem certo tipo de mãe e certo tipo de pai. Seu sintoma é a expressão, a significação dessa rejeição. (LACAN, 1975)

 

Lacan aponta para a instância do gozo do Outro como elemento regulador da lei, e, no caso do sujeito da fobia, como o pequeno Hans, há uma falha nessa interdição ao gozo, na passagem S1-S2 (função materna para nome-do-pai), chamada castração, fundante da neurose. Observa-se essa falha na própria história de Hans, que dormia na cama sozinho com a mãe. Assim ocorre a adoção de um significante substituto, que detenha o poder. "A fobia é uma gestão sintomática da primeira, os pânicos são mais diversos, respondem a uma obscura percepção da segunda" (SOLER, 2018, p. 28).

O diferencial sobre a fobia como sintoma é sua característica particular à infância. Se, de acordo com Soler (2018, p. 21), a fobia é "[...] o sintoma maior, quase inevitável, da primeira infância [...]", Lacan lança luz sobre a organização fóbica como a "placa giratória".

 

A fobia não deve ser vista, de modo algum, como uma entidade clínica, mas sim como uma placa giratória. [...] Ela gira mais do que comumente para duas grandes ordens de neurose, a histeria e a neurose obsessiva, e, também realiza a junção com a estrutura da perversão. (LACAN, 2008 [1968-69], p. 298.

 

No seminário "De um Outro ao outro", Lacan (2008 [1968-69]) metaforiza a questão da fobia baseada na ideia de um "tigre de papel". A expressão chinesa foi popularizada pelo general Mao Tse-Tung em seus pronunciamentos para se referir aos Estados Unidos da América como uma falsa ameaça. Desse modo, Lacan designa o objeto fóbico como um tigre de papel, um desenho de algo ameaçador, uma passagem do real para a ordem significante:

 

O campo da angústia certamente não é desprovido de objeto, como lembrei ao começar, desde que se veja com clareza que esse objeto é a própria aposta do sujeito no campo do narcisismo. É nele que se revela a verdadeira função da fobia, que é substituir o objeto da angústia por um significante que causa medo, porque, frente ao enigma da angústia, a relação de perigo assinalada é tranquilizadora. (LACAN, 2008 [1968-69], p. 297)

 

Assim, o objeto é elevado à condição de significante - uma criança que tem como objeto fóbico o cachorro, por exemplo, não tem medo apenas do animal no campo da realidade, mas do nome, do simbólico - como forma possível de administração da mais primitiva das angústias/ansiedades, a da eminência do gozo do Outro, permitindo um caminho à ordem simbólica. Se a histeria é marcada pelo deslizamento significante pautada pelo desejo, na fobia observa-se a força motriz na dicotomia desejo/medo, até que a placa giratória direcione a continuidade do deslizamento significante do sujeito.

 

O trauma como paralisia da palavra

 

Nas trilhas do medo, saímos da organização sintomática para outro fenômeno amplamente discutido. "Trauma" é a expressão que indica o efeito de danos ou lesões resultantes de uma situação imprevista. A expressão pode ser utilizada por todas as áreas da medicina, tratando, em geral, de acontecimentos do corpo. Ao presente estudo, porém, destaca-se o "trauma psíquico", o acontecimento imprevisto que causa danos psicológicos em interafetação direta ou indireta (ou poderíamos dizer discreta ou indiscreta) com o corpo.

O percurso teórico do trauma pelos caminhos da psicanálise começa com Freud (2006 [1896]) e o trauma da sedução, a ideia de que a criança é traumatizada quando sofre uma investida libidinal excessiva por parte do adulto. A teoria do trauma como sedução da criança foi, inclusive, ligada à compreensão freudiana inicial da histeria, com o entendimento de que os sujeitos da neurose histérica teriam sofrido abusos no período da infância.

A ideia foi abandonada posteriormente devido à descoberta do inconsciente, da fantasia e do recalque, que apontavam tanto para a possibilidade de desenvolvimento da histeria sem traumas da realidade quanto para não histéricos acometidos por traumas.

Posteriormente, Freud (2006 [1920]) retoma o assunto, apontando para um trauma como repetição da cena primária, no qual se acredita que o germe do trauma está recalcado, e que cada novo trauma é fruto de uma situação que toca esse recalque.

Ambas as posições possibilitam uma compreensão parcialmente aplicável, uma vez que a cena do investimento adulto aos olhos da criança é, de fato, potencialmente traumática, bem como a possibilidade de repetição psíquica, embora não seja possível abarcar todas as experiências traumáticas nessas vias, dadas a abrangência limitada de uma cena primária frente aos muitos perigos situacionais imprevistos a que um sujeito pode estar vulnerável e a inexistência do abuso em todos os casos.

A questão preliminar se dá a partir do encontro do sujeito com algo da realidade, um evento imprevisto que causa nele o abalo da ordem simbólica, adentrando os mistérios do real. Lacan (1998 [1975]) deu a esse encontro o nome de troumatisme, o furo fora do sentido. Desse modo, o trauma sob o olhar lacaniano é o choque do corpo com o significante, dando margem ao inassimilável. Parafraseando Soler (2018, p. 61), "o traumatismo é quando o pesadelo passa para o real".

É nesse ponto que se torna possível o diálogo de teoria e técnica entre Lacan e Ferenczi, na ideia de trauma como confusão de língua entre a criança e os adultos (FERENCZI, 2011 [1933]), uma vez que o autor determina que o sujeito do trauma (criança) exerce a "língua da ternura", um sistema de linguagem pulsional autoplástico, que organiza a pulsão de modos intrapsíquicos, e o outro agressor (adulto) usa a "língua da paixão", uma organização pulsional aloplástica, que escoa a pulsão por meio de ações direcionadas do intrapsíquico à realidade.

Quando a pulsão do outro, que pode ser interpretado tanto como pessoa quanto situação externa ao psiquismo, supera a capacidade de suporte do sujeito, acontece o encontro traumático. O determinante na teoria ferencziana é que, após o choque, o sujeito tende a procurar um outro de confiança, em quem tentará escoar o excesso pulsional por meio do testemunho e fazer a passagem do real ao simbólico.

Para que essa compreensão abarque a demanda, é necessário considerar como busca pelo testemunho as mais diversas manifestações simbólicas, desde linguagem verbal a sintoma. A falha do outro em legitimar esse apelo, seja pelo silêncio ou pela represália, é o que faz com que o sujeito se perca em um excesso pulsional.

Se em um primeiro momento a palavra é paralisada, em um segundo momento ela é impossibilitada, ocorre a barragem da passagem do real ao simbólico. Nessa falha do deslizamento da cadeia, essa holófrase do significante torna-se, assim, o coração do trauma.

 

O fenômeno psicossomático: grito indecifrável

 

Chegando ao campo da psicossomática, deparamo-nos com a semântica que determina "psico" e "soma", ou seja, psique e corpo atuando conjuntamente em interafetação. Na psicanálise lacaniana, as afecções psicossomáticas adquirem o estatuto de "fenômeno" (LACAN, 1985 [1955-56]), de modo a serem estudadas como conceito de natureza singular e transestrutural, o "fenômeno psicossomático" (FPS).

Na psicanálise da primeira geração, embora o interesse pelas interafetações de corpo e mente seja considerável, percebe-se uma falta de distinção, ou mesmo de compreensão, entre histeria e as afecções psicossomáticas não provenientes de uma conversão histérica (e histórica).

Embora não tenha se debruçado no assunto, Lacan (2010 [1954-55]; 1985 [1955-56]; 2008 [1964]; 1998 [1975]) traçou ideias sobre a concepção do FPS que foram determinantes para a compreensão desse fenômeno. Voltemos à observação da cadeia significante:

 

                                             a                 a                 a

S1           S2            S3            S4

                                                    Afânise      Afânise       Afânise          

 

A chave para a compreensão do FPS à luz da teoria lacaniana está no conceito de afânise, cunhado no seminário "Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise" (LACAN, 2008 [1964]). O autor estabelece a afânise como um momento entre o deslizamento de um significante a outro, um momento no qual o sujeito se consolida, de fato, como sujeito: "Não há sujeito sem, em alguma parte, afânise do sujeito, e é nessa alienação, nessa divisão fundamental, que se institui a dialética do sujeito" (LACAN, 2008 [1964], p. 216) [itálicos do autor].

Na ausência da afânise do sujeito, ocorre a sobreposição de um significante a outro, o princípio fundamental do delírio psicótico, que liga o S1 ao S2, com a foraclusão do segundo. Assim, o sujeito da psicose fica não só condicionado ao significante mestre (materno) como absoluto, mas também impossibilitado de deslizar na cadeia significante.

A pista lacaniana para a questão do FPS inicia-se na psicose, porém, conforme já descrito, observa-se no fenômeno o status transestrutural, ou seja, sujeitos de quaisquer estruturas podem ser acometidos por afecções psicossomáticas. Passamos então da observação de uma foraclusão fundamental da metáfora paterna ao FPS como uma "foraclusão local" (NASIO, 1993), que ocorre potencialmente em qualquer lugar da cadeia significante, desafanisando não o todo do sujeito, mas uma parcialidade, uma dessubjetivação local no real do corpo.

Uma foraclusão local implica em uma letra descolada do significante. A esse respeito, em "O seminário sobre ‘A carta roubada’", Lacan (1998 [1957]) usa como figura o conto de Edgar Allan Poe sobre uma carta perdida que continha segredos que poderiam comprometer a rainha. A carta, passada de mão em mão, desgastada e suja, chega aos policiais sem ser reconhecida como tal. Nesse sentido, o jogo de palavras "a letter, a litter"[2] esclarece a dupla função da letra: a transmissão da mensagem e o suporte material do significante. A letra holofraseada perde sua relação com o significante, passando à escrita indecifrável.

Soler aponta que

 

A única coisa com a qual a psicanálise se afronta propriamente é aquilo a que Lacan chama no final de "o acontecimento do corpo", o qual não é acontecimento do sujeito, mas do corpo que ele tem e não que ele é - o evento de gozo do corpo que também é do real. (SOLER, 2018, p. 27)

 

Assim, enquanto a histeria e a fobia deslizam os significantes como uma forma de organização através do simbólico, tem-se nas manifestações holofrásicas, como a psicossomática e também o trauma, uma desordem no real, com a diferença de que o segundo é proveniente da realidade, e o primeiro, letra materializada no corpo.

 

Entre a letra e o significante

 

Retomando a regra de três combinada com os aspectos estudados, construímos o seguinte esquema:

 

                                          Histeria                     Fobia

                          (Afecção do corpo                    (Pavor através

                      através da metáfora)                    da metáfora)  

                                                FPS                    Trauma

                          (Afecção do corpo                    (Pavor através

                     através da holófrase)                    da holófrase)

 

A regra de três matemática consiste no uso de três valores conhecidos e com relações entre si para que se revele um quarto valor, desconhecido, mas também relacionado. Neste raciocínio, nossa proposta da regra de três apresenta os quatro acontecimentos psíquicos mencionados e inter-relacionados para que se possa lançar luz sobre a problemática do FPS.

A histeria é relacionada ao FPS pela afetação do corpo, porém, seu fator de historicidade não pode ser considerado no algarismo inferior da regra. Em outras palavras, ambos se aproximam pela afetação do corpo, mas diferem na função da letra, estando a histeria com letra e significante trabalhando juntos na produção de sentido, enquanto no FPS letra e significante estão descolados. Ambos, FPS e histeria, seguem a mesma dinâmica: ao longo da cadeia endereçam a pulsão ao corpo, porém, enquanto a conversão historiciza, o FPS permanece estrangulado.

À frente da histeria está a fobia, outra forma de organização sintomática e histórica, que move não a conversão, mas o pavor ao significante. Ambos são deslizamentos da cadeia significante, orientados pelo desejo na estrutura neurótica. Abaixo da fobia está o trauma. Trauma e fobia manifestam o pavor, mas a distinção está na causalidade. Se a fobia é orientada pela historicidade, o trauma é efeito de causa inesperada, de um encontro com o excesso pulsional externo, ou, em outras palavras, do encontro com o real.

Por fim, a aproximação dos algarismos da regra de três leva-nos ao estudo do paralelismo entre FPS e trauma. Ambos estão na esfera do real, de um descolamento entre letra e significante. Se o FPS é a afetação parcial do corpo, "o trauma é o congelamento da palavra"[3]; se o FPS está na esteira do delírio, o trauma começa por uma "entrada temporária na psicose" (FERENCZI, 2011 [1930]).

A relação homóloga entre trauma e FPS coloca um mesmo funcionamento psíquico nas manifestações do pavor e do corpo propriamente ditas, paralisando o sujeito no gozo da holófrase. A questão é que, no caso do trauma, esse funcionamento é diferente em termos de temporalidade. Na proposta do trauma como confusão de língua, o traumatismo, o evento desencadeador do trauma, é de fato uma entrada na psicose como descrito, porém, Ferenczi (2011 [1933]) aponta para um segundo tempo, no qual o sujeito busca o outro em um apelo para que essa experiência possa ser testemunhada e legitimada. Poderíamos dizer que o sujeito busca no outro, através de seu clamor, a autorização para sofrer, um reconhecimento de que essa letra existe.

 

O pior é realmente a negação, a afirmação de que não aconteceu nada, de que não houve sofrimento ou até mesmo ser espancado e repreendido quando se manifesta a paralisia traumática do pensamento ou dos movimentos; é isso sobretudo que torna o traumatismo patogênico. Tem-se mesmo a impressão de que esses choques graves são superados, sem amnésia nem sequelas neuróticas, se a mãe estiver presente, com toda sua compreensão, sua ternura e, o que é mais raro, uma total sinceridade. (FERENCZI, 2011 [1931], p. 91)

 

De acordo com o autor, o que instaura o trauma e perpetua esse descolamento entre letra e significante é a falta desse Outro em legitimar o sofrimento. Não se trata sequer de simbolizar a experiência, mas de reconhecê-la. Assim, o sujeito passa a sofrer por uma dor inexistente.

Já o FPS, embora demonstre observável agravamento ou recuo frente a condições psíquicas da atualidade do sujeito, não revela uma causalidade inicial entre o trauma e seu evento fundador.

Finalizando, levanta-se a seguinte questão: se o FPS responde à via da letra, fora do sentido, o manejo não deveria tratar de algo na esfera do reconhecimento - da autorização do outro frente à experiência -, e não mais da interpretação propriamente dita?

 

Considerações finais

 

O fenômeno psicossomático é uma questão de entrave na clínica psicanalítica. A técnica de livre associação e interpretação não se mostra eficiente quando se defronta com uma questão como a da letra descolada do significante, afinal, se a letra é isolada como mero suporte material, a ligação significante torna-se improvável.

Embora o FPS se inicie por uma comunicação corpórea, bem como a histeria, seu destino é diferente. Em outras palavras, por meio do estudo comparativo, podemos dizer que a histeria e o FPS começam da mesma forma, a direção da pulsão ao corpo, porém, na primeira a pulsão continua ligada ao significante, permitindo a continuidade da cadeia, enquanto a segunda desliga-se da cadeia no meio do caminho, constituindo-se como resto abandonado, o que pode ser observado na falta de implicação do sujeito atingido frente à afecção psicossomática.

Dessa forma, a continuidade do FPS assemelha-se ao trauma, uma vez que a paralisação do significante na cadeia é comum a ambos, o que abre a possibilidade do uso ou mesmo de uma adaptação do manejo do trauma proposto por Ferenczi como alternativa ao cuidado frente a essa forma de sofrimento.

Um começo pela via da histeria e um final pela via do trauma. Embora a compreensão e o tratamento do FPS pela via da psicanálise continue sendo um grande desafio, o presente estudo abre as portas para a proposta de um método que combine a técnica das construções em análise, usada no manejo da histeria, com a técnica da validação do sofrimento denegado, proposta por Ferenczi como manejo do trauma, para buscar a construção de um manejo possível e efetivo para auxiliar na análise de pacientes com sofrimento decorrente de fatores psicossomáticos, visto que temos na regra de três o início semelhante à histeria e o final semelhante ao trauma.



[1] O estreitamento entre os termos angústia e ansiedade é proveniente da dificuldade de tradução do termo alemão Angst, que pode significar "medo, angústia e ansiedade".

[2] Uma carta / uma letra, um lixo.

[3] Notas de aula de D. Kupermann na Psicologia USP, de 12 agosto de 2019 a 30 de setembro de 2019: A constituição da clínica psicanalítica I: Um percurso histórico-crítico entre Freud e Ferenczi.

 


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ano - Nº 3 - 2021
publicação: 20-11-2021
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Autor(es)
• Marcos de Moura Oliveira
Universidade do Vale do Paraíba; Faculdade Vanguarda de São José dos Campos

Psicólogo pela Universidade Paulista (Unip, 2017). Mestre em Psicossomática pela Universidade Ibirapuera (Unib, 2022). Doutorando em Educação pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Professor do curso de pós-graduação Lato Sensu em Psicanálise: Teoria e técnica da Universidade do Vale do Paraíba (Univap) e da graduação em Psicologia da Faculdade Vanguarda de São José dos Campos.

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