ARTIGOS

O pensamento clínico e o manejo psicanalítico em um caso Pediátrico hospitalar


Clinical thinking and psychoanalytic Management in a Pediatric Hospital Case
Gláucia Faria da Silva

RESUMO
Este artigo apresenta cinco anos do percurso de cuidado de Cila*, uma adolescente com diagnóstico inicial de síndrome de Ondine. Todo o seu tratamento foi guiado por esse diagnóstico; ela apresentava traqueostomia, ileostomia e colostomia, além de depressão e obesidade; tentou duas vezes o suicídio. Em dado momento, surgiu a suspeita de síndrome de Münchausen por procuração. Em inumeráveis detalhes, constatou-se que a conduta materna, invariavelmente, predispunha a filha a intervenções invasivas e complexas, criando uma relação simbiótica com Cila e uma relação ambivalente com as equipes. Nesse cenário, a equipe de Psicologia participou da condução do caso em três momentos distintos. Este artigo enfrentou o desafio de reconstruir um atendimento institucional de longa duração e buscou sublinhar a qualidade e o manejo da transferência com a dupla mãe-filha e seus efeitos, sem perder de vista a participação do sistema de saúde na organização dos sintomas. O objetivo específico é refletir sobre como o pensamento psicanalítico se traduziu em manejo clínico e quais foram seus limites e alcances. Como conclusão, a configuração do atendimento ambulatorial em cuidados paliativos proposta – médica e psicanalista – possibilitou participar do coração da simbiose para, a partir dessa perspectiva, agir de forma a proteger o corpo de Cila. Nesse esboço de pertencimento, a voz de Cila pôde surgir por um momento.


Palavras-chave: Psicologia hospitalar pediátrica, Síndrome de Münchausen por procuração, Caso clínico, Psicanálise, Cuidados paliativos pediátricos.

ABSTRACT
This article presents five years of a clinical case within a pediatric hospital. Cila*, a teenager with an initial diagnosis of Ondine syndrome, had her treatment and surgical procedures based on this diagnosis and she presented tracheostomy, ileostomy and colostomy, depression, obesity and two suicide attempts. At a certain point a suspicion of a parental psychiatric symptom (Münchausen syndrome by proxy) arose. In various details, it appears that the maternal conduct predisposed her daughter to increasingly complex surgical and medication interventions, creating a symbiotic relationship with Cila and an ambivalent relationship with the professional teams. In this scenario, the Psychology Team participated in the case at three different moments. This clinical case report faced the challenge of building a long-term institutional case and sought to highlight the quality and management of transference with the mother-daughter couple and its effects. The objective of the article is, therefore, to reflect on how psychoanalytic thinking has been translated into clinical management and what were its limits and reaches. Our conclusion suggests that the configuration of outpatient care in palliative care (physician and psychoanalyst) enabled us to participate in the core of the symbiosis to, from there, act in a way to protect Cila’s body. In such place, Cila’s voice appeared for a moment. Finally, it reflected on both the uniqueness of the case and the participation of the health system in the organization of the mentioned psychiatric symptom.



Keywords: Pediatric hospital psychology, Münchausen syndrome by proxy, Clinical case, Psychoanalysis, Pediatric palliative care.


Introdução

 

Ring the bells that still can ring

Forget your perfect offering

There is a crack in everything

That’s how the light gets in[i]

 

Este trabalho apresenta o percurso de tratamento de Cila*,[ii] adolescente atendida em um hospital pediátrico durante sete anos. Passaremos pelo diagnóstico do quadro orgânico da síndrome de Ondine, as intervenções, a suspeita da síndrome de Münchausen por procuração (sintoma psiquiátrico materno) e a complexa condução do caso, com maior atenção para o ano de 2019, preparatório para a transição de Cila do hospital pediátrico para o de adultos, em especial, os quatro últimos encontros ambulatoriais.

A escolha do caso foi impulsionada pela sensação de resposta subjetiva inaugural de Cila, em dezembro de 2019. Só depois de bem adiantado o trabalho, percebi a armadilha: o caso Cila é exceção, complexo e grave sob qualquer perspectiva. Ele expõe a força aprisionante da relação mãe e filha, a iatrogenia dos cuidados em saúde, a força e a fragilidade da psicanálise em equipe multiprofissional. Assim, o objetivo do artigo é iluminar antes o manejo da psicanalista na condução do caso do que a resposta imaginada.

Para se ter noção da complexidade, entre 2015 e 2019, em 60 meses, foram 57 idas de Cila ao hospital, 35 longas internações e duas tentativas de suicídio. Mas o espanto tem outra origem: o diagnóstico clínico não justifica esses números.

Cila, a personagem mitológica, é objeto do amor e da indignação de um deus diante da rejeição de seu amor. Em sua fúria, Glauco pede um castigo à bruxa Circe. Rejeitada pelo rejeitado, quando enfeitiça Cila, Circe faz surgir de sua cintura seis bestas monstruosas.[iii]

Essa é nossa Cila: jovem de 17 anos e 11 meses, cheia de vontades, diagnosticada com síndrome de Ondine[iv]  aos 7 anos. Em poucas horas, ela pode parecer uma menininha de 91 quilos que exige uma boneca Baby Reborn[v] para comer, uma mocinha com olhos de desamparo ou ainda uma adolescente emburrada. Apresenta fácies de deficiente mental e grande atraso escolar/cognitivo.

Essa também é Cila: insuficiência respiratória crônica, traqueostomia, convulsão, bexiga neurogênica, ileostomia e colostomia, hiperinsulinismo, hipoglicemia, infecção do trato urinário de repetição, duas tentativas de suicídio, depressão e obesidade.

Foram tantas as intervenções, tão tortuosos os caminhos, tão árido conter a fúria pulsional das relações que consideramos o hospital como peça fundamental na arquitetura psicopatológica. Por outro lado, a única possibilidade de encontro dessa família com um analista foi no hospital.

Como psicanalista e coordenadora da Equipe de Psicologia naquele momento, pretendo refletir sobre o efeito analítico comentado, entendendo que a composição do olhar médico e da escuta psicanalítica na equipe de Suporte e Cuidados Paliativos possibilitou à dupla experimentar uma transferência corporal, ambivalente e primitiva, para então vislumbrar outra, mais constitutiva e narrativa. Desejo, então, iluminar os caminhos para o surgimento dessa centelha terapêutica e da analista possível nessa particular configuração institucional. Creio que a analista será encontrada no árduo manejo para forjar e sustentar um enquadre capaz de preservar o corpo de Cila.

 

 

Apresentação do caso

 

Os dados foram coletados do prontuário e dos incontáveis encontros de Cila com várias equipes. Trata-se de um desafio narrativo, um recorte que jamais se aproximará da complexidade do que acontece no hospital.

Os pais, João* e Maria*, têm por volta de 40 anos. Tiveram duas filhas, Cila (17 anos e 11 meses) e Cláudia*, já falecida. João trabalha em uma fábrica à noite e participou episodicamente do tratamento da filha. Maria e Cila não falam sobre ele, não reclamam, ele inexiste no discurso. Os relatos de depressão e alcoolismo paternos apareceram apenas no final de 2019. Maria não trabalha. Parece simples e passiva, não falta a uma única consulta, mas a sensação da equipe é de que "se faz de tonta" e "nos faz de tontas". Não se nega a nada e não segue nada. Faz acompanhamento de Cila em vários centros de referência, com equipes que não se conectam. Quando demandada a falar da filha, fala de Cila e Cláudia indistintamente, ou de seus próprios sintomas.

Cláudia era a filha caçula, quatro anos mais nova que Cila, falecida aos 3 anos de idade, quando Cila tinha 7 anos. Ela teve pausas respiratórias desde os 40 dias de vida e epilepsia, com traqueostomia e gastrostomia. Foi diagnosticada com síndrome de Ondine e faleceu em 2009. Esta é versão 1 da história (prontuário: março/2016). Na versão 2 (dezembro/2019), Maria contou que Cláudia teve anóxia neonatal, convulsões, foi intubada 18 vezes, e que não tinha síndrome de Ondine.

Cila, por sua vez, apresentou infecção intestinal com dois meses de vida, crise convulsiva com um ano e meio, sendo medicada até os 3 anos. Aos 7 anos, após a morte da irmã, teve episódios de "parada comportamental". Nessa época, após quatro meses internada por "pausas respiratórias e sudorese durante o sono", foi levantada a hipótese de síndrome de Ondine. A partir de 2012, encontraram-se registros de tratamento em nosso hospital. Para facilitar, foi construída uma linha do tempo.

Linha do Tempo: Histórico Clínico de Cila

 

Legenda

Em preto: fatos antes de conhecermos Cila

Em azul: fatos descritos em prontuário em nossa instituição

Em verde: momentos em que a equipe de Psicologia acompanhou o caso

 

2002

 

Nascimento de Cila. Infecção intestinal

2006

4 anos

Nascimento da irmã

 2009

7 anos

Falecimento da irmã

 

 

"Parada comportamental". Pausas respiratórias. Síndrome de Ondine. BIPAP.[vi] Nunca foi à escola. Provável home-care 24 horas

2010 - 2012

8-10 anos

6 internações. Conduto Malone[vii] e ileocistoplastia[viii]

2015

13 anos

2 internações. Traqueostomia.[ix] Refeitas as cirurgias abdominais: colostomia[x] e sonda Mitrofanoff[xi]

2016

14 anos

6 internações. Sonda (SNE)[xii] para alimentação

 

 

PSICOLOGIA. Conselho Tutelar: suspeita síndrome Münchausen por procuração

2017

15 anos

10 internações. Sonda para alimentação

2018

16 anos

9 internações. Sonda para alimentação. Luta da equipe contra gastrostomia[xiii]

 

 

PSICOLOGIA na Equipe de Suporte e Cuidados Paliativos

2019

17 anos

8 internações. 2 tentativas de suicídio

 

 

PSICOLOGIA no ambulatório de Cuidados Paliativos.

Cila e seu diagnóstico

A síndrome de Ondine foi um diagnóstico clínico, ou seja, nunca recebemos exame genético comprobatório. Cada profissional tinha uma versão dos fatos, inclusive os cirúrgicos. Quando chegou à nossa instituição, em 2012, Cila tinha um histórico de  cirurgias abdominais que "nunca deram muito certo", e foram refeitas em 2015.

Apesar dos termos técnicos, é importante que o leitor acompanhe o árduo terreno subjetivo-corporal da história de Cila, visto que, para além das datas, surpreende a tentativa de comunicação direta, presente nas ostomias.[xiv]

Antes de 2012, Cila já possuía o conduto de Malone, que visava solucionar uma dificuldade de evacuação. Esse "buraquinho na pele" já tinha fechado por falta de uso, pois "Cila se recusava" a utilizá-lo. A situação intestinal se agravou, e o vazamento repetido de fezes pelo orifício motivou a realização da colostomia (2015). Na parte geniturinária, também antes de 2012, Cila passou por uma ileocistoplastia, causa das inúmeras infecções do trato urinário e internações. Para melhorar esse sintoma, em 2015, foi colocada uma sonda Mitrofanoff, dispositivo que obriga a passagem de sonda vesical quatro vezes ao dia. Cila passou a ter, então, duas técnicas diferentes para cuidar do intestino e duas para a urina. Ficou claro que não era apenas "Ondine" o que se via olhando para o corpo de Cila. Das perfurações das ostomias ao olhar com que ela nos acolhia, havia um mais além incontornável.

Do ponto de vista psicanalítico, é preciso sublinhar a função imaginária de posse do corpo da filha que a intenção de comunicação direta pode representar. Não bastasse uma, Cila tinha cinco vias artificiais abertas. Desde os 10 anos, ela não controlava os esfíncteres, até que, aos 14 anos, ela se recusou a comer e exigiu a abertura do último ponto de autonomia: a gastrostomia. Esse foi um marco. À cirurgiã, a família pediu a gastrostomia "nem que fosse só para medicação". A não realização dessa intervenção gerou uma batalha de quase três anos. Em 2018, Cila quase convenceu a equipe de que voltaria a comer se ganhasse uma boneca Baby Reborn. A queda de braço custou a Cila a deformidade de seu corpo (ela saiu da luta com quase 100 quilos), e, à equipe, a perda definitiva do conforto da "orgânica" síndrome de Ondine para o caos da psiquiátrica síndrome de Münchausen por procuração.

A síndrome de Münchausen por procuração, descrita pela primeira vez em 1951 (PIRES e DALLE MOLLE, 1999), é uma forma grave de abuso da infância, definida como desordem psiquiátrica no DSM-IV (GATTAZ, 2003). A expressão mais comum é a mãe exacerbar, falsificar ou produzir evidências laboratoriais, causando lesões e induzindo a hospitalizações. A mãe costuma demonstrar envolvimento excessivo com o filho, e 50% dos casos combinam doença orgânica com a simulação materna. Os efeitos sobre a criança são perigosos, com taxa de mortalidade estimada em 9%. A longo prazo, as crianças ficam dependentes das mães e da doença, em uma relação de simbiose. Outras sequelas são ansiedade, depressão e hiperatividade. As hospitalizações levam à perda educacional, cognitiva e da interação social, fechando o ciclo de simbiose e exclusão.

 

A condução do caso

 

Nos anos de acompanhamento, três momentos marcantes colocaram a psicologia na linha de frente do caso, com três profissionais nessa função.

Momento 1: 2016. Tentamos estabelecer laço, contudo, a simpatia inerte da mãe e da filha e a demanda por procedimentos desnecessários nos levaram a ratificar a notificação do Conselho Tutelar e, assim, perdemos a confiança da dupla para o seguimento do trabalho. Junto das equipes, muito ambivalentes, tentamos um corte como intervenção e nos ausentamos do caso por um ano. Nenhuma abertura se configurou, seja na equipe, seja na família.

Momento 2: Em 2018, a psicologia retornou ao caso como parte da equipe de Suporte e Cuidados Paliativos. O fardo para as equipes era palpável diante da repetição do sintoma de uma mãe sempre "preocupada", que dizia que "Cila aprontou" e pedia "conselho". Nós nos dedicávamos à repentina cumplicidade da "demanda", absolvidos da impotência diante do corpo de Cila. É provável que a única coisa que importava fossem nossos olhares, capazes de legitimar a mimesis de uma dupla mãe-filha "normal".

Momento 3: No começo de 2019, confiantes na transferência com a médica paliativista (Tinker Bell) e na estabilidade clínica de Cila, o caso inaugurou o Ambulatório mensal de Suporte e Cuidados Paliativos. Na consulta de maio, Cila relatou falta de ar, desconforto com a traqueostomia, tristeza e dificuldade em ter vida normal. A médica indicou, entre outras recomendações, que ela poderia assumir a responsabilidade por seu autocuidado. Nessa mesma noite, Cila deu entrada no PS por intoxicação medicamentosa, com intenção de suicídio.

Vamos nos deter nesse momento que começa com a tentativa de suicídio (maio de 2019) e culmina com o desligamento de Cila da instituição (dezembro de 2019). Passado o susto da tentativa de suicídio, o discurso retomou o modelo "Cila aprontou/Maria preocupada", que funcionava desde que estivessem juntas e junto de nós. Sem a garantia da nossa presença (minha e de Tinker Bell), a dinâmica sintomática descortinava sua arquitetura gozosa de fixação de lugares dessubjetivantes, e nem mesmo essa mimesis as reassegurava. A cada mínimo movimento de Cila ou de Maria, a outra se insurgia, anulando o acontecimento. O que se destruía, então, não era apenas qualquer vivência de prazer. Visto que o prazer necessita de um sujeito que o experimente, esse esboço subjetivo as remetia à impossibilidade de separação e acionava o gatilho conhecido: internação. No hospital, o sofrimento e a passividade restabeleciam a ordem simbiótica, que impunha sua face sombria e violenta.

Ao final da internação de julho, nos atendimentos ambulatoriais entre agosto e dezembro de 2019, visando que mãe e filha experimentassem novas redes de pertencimento, entendemos que a separação possível seria que uma fosse ouvida pela médica e outra por mim, na mesma sala de atendimento. O objetivo era trabalhar a separação entre elas, bem como preparar a finalização do trabalho no hospital.

Nos atendimentos, Cila, invariavelmente, recebia a mim ou à médica com a menção, entre elogiosa e fascinada, dos nossos "lindos olhos azuis". Uma cena banal, que se repetia de forma idêntica e à qual a mãe fazia coro. Vale pensar: mais do que demanda de "olhar", o fascínio era pelo "olho". O verbo, imobilizado, se fazia carne, revelando a qualidade pétrea das identificações em jogo. Contudo, lentamente, a transferência apoiada em nossos corpos foi imantada ora pela escuta médica, ora transferencial, ora lúdica, porém sempre permeável à delicada dinâmica da dupla. Creio que essa foi a sustentação que garantiu a Cila cinco meses sem internação.

Nesse período apareceu o endereçamento de demandas não médicas à médica. Cila pode pintar o cabelo? Elas podem adotar um "irmão"? Podem mudar de casa? Tais demandas remetiam a um movimento subjetivo que os versos da música "Quereres"[xv], de Caetano Veloso (1984), podem iluminar. A poesia não fala em "desejo", mas em "quereres". Os versos apresentam a lógica do contraste: diante de alguém que quer algo, o Eu poético quer o contrário. O verso "bruta flor do querer" faz pensar. "Flor" remete à frágil montagem subjetiva de dependência do outro para traçar um esboço de si mesmo. "Bruta" pelo mesmo motivo: como o "querer" não tem o Eu como eixo, este ocupa uma posição especular para se constituir. O sujeito da poesia está preso em uma armadilha subjetiva labiríntica.

Diante de constatações que não se organizavam como perguntas, nosso laço era insuficiente para conter os acting outs:[xvi] Cila quis ir à escola: a família se mudou para uma casa em que ela teria mais companhias. Cila estava triste: a mãe lhe comprou a boneca Baby Reborn. Dias depois desse presente, Maria escreveu para a médica contando que Cila fez nova tentativa de suicídio, "cortando" os pulsos.

Na consulta seguinte, o pai compareceu, inaugurando sua presença. Sua primeira fala, contudo, evocou a morte de Cláudia e provocou uma reação de indiferença e profunda tristeza em Cila. A conversa em família, no entanto, assumiu o tom efusivo das demandas não médicas à médica e, entre sonhos tortos, permissões e impossibilidades, Cila declarou que queria ir à escola. Os pais colocaram empecilhos, e então Cila decidiu "entregar": a boneca Baby Reborn era da mãe. Maria comprou berço, roupas e cadeirão para a "bebê", onde colocava a boneca para arrotar. Assim terminou o jogo de demandas imaginativas, e a mãe silenciou o encontro, retomando o assunto de medicação e infecções com a médica.

No último encontro (do ano e naquele hospital), eu e Cila falávamos sobre os pesadelos maternos e sobre o "encontro dos Ondines", do qual participou, e perguntei: "Como você se identifica? Você é Ondine ou tem Ondine? Quem é você, quantas Cilas pode ser? A que o pai vê e sonha, a que a mãe guarda tantos medos?" Cila, então, contou sobre a irmã e disse: "minha irmã morreu de C.I.L.A.". Ela não sabia o significado da sigla. Apressadamente, resolvi usar a voz da médica para fazer uma marca nessa fantasia dolorosa, lugar inóspito para o sujeito. Perguntei à médica o que é C.I.L.A. (o nome real de Cila remete a uma sigla que, de fato, nomeia a causa do óbito). Ela explicou e, enquanto falávamos, Maria encerrou o assunto.

E assim terminamos. No último encontro nos deparamos com a tão esperada abertura: teria a irmã morrido de uma afecção que tem o seu nome? Terminamos sem nos separar: eu me apressei, ela se recolheu, a mãe ignorou e, a esse encontro tão profícuo, seguiram-se duas longas internações de Cila. Em janeiro de 2020, após cinco meses sem internação, Maria retomou toda a sua fúria. Afirmou que Cila era incapaz de enfrentar escola, sol, subir escadas, sair sem ambulância ou respirar. Voltou a atacar a equipe e a defender o diagnóstico da síndrome de Ondine. Aglutinou retalhos de falas de vários médicos para compor um cenário de perigos iminentes. Perdeu-se a contenção transferencial. O sujeito que transpareceu no último encontro submergiu no corpo emudecido.

 

Discussão: os cordões da transferência e da contratransferência

 

O trabalho estaria apenas começando se Cila não tivesse completado 18 anos. Nos capítulos que vivemos juntas, a fala de Cila, ato final inaugural, foi uma conquista duramente buscada, surgida da reorganização das fronteiras, dos corpos, dos olhares, dos quereres. Passaremos por três pontos dessa montagem sintomática: Cila, Maria e o sistema de saúde, para então concluir o relato.

Cila. Cila pedia nosso olhar. Não um olhar qualquer: era preciso ver o corpo e o afeto brutos que habitavam os encontros. O convite comportava uma ameaçadora sedução: "Que olhos lindos você tem". Quem era o Lobo e quem era a Chapeuzinho?

A primeira tentativa de suicídio, ainda que uma esperança, escancarou a arquitetura da repetição. Elas estavam felizes no hospital, sob o foco de todos os olhos azuis, aderidas em espelho às jovens profissionais, oferecendo o corpo de Cila embalado por um canto de sereia em forma de elogios. A segunda tentativa foi uma denúncia: nem irmão adotivo, nem boneca adotiva poderiam tamponar o terremoto subjetivo que trincou essa família desde a morte de Cláudia.

Cila pedia meu "olho azul", o substantivo, não o verbo. "Seu olho é tão lindo!" foi a frase que mais ouvi de Cila. Não histórias, não os procedimentos, o diagnóstico, a dor, mas meu corpo, uma idealização coagulada na cor dos meus olhos. Ela, então, me olhava profundamente e se perdia em um olhar fusional, sem palavras. Penso que seu pedido era o de um lugar para existir (ROUSSILLON, 2003) em segurança. Era um olhar-boca, voraz, petrificado, olhar que fazia corpo no meu corpo e a remetia ao meu colo ou ao abismo. Ali era preciso ir em seu socorro, ajudar a esboçar palavras, me fazer presente. Por vezes, eu conseguia desdobrar uma pergunta, e Cila narrava algo sobre si mesma, enquanto eu dava algum espaço para a mãe ser mamãe, única estratégia capaz de conter Maria antes que ela arrebatasse Cila para seu discurso asfixiante.

Trabalhar com Cila não parecia especialmente difícil. Mas era. Os movimentos sedutores da "menina mimada", os olhares, o desamparo, a sede por identificação, a "adolescente sequestrada", tudo isso não seria empecilho, caso nossa ninfa não tivesse se banhado nas águas envenenadas. Durante três anos, a própria Cila demandou a gastrostomia. O estômago era o último ponto sem comunicação direta entre a mãe e as vísceras da filha. Se o sujeito capitulasse ali, haveria trabalho possível?

Outro ponto realmente difícil era receber sua demanda e ver todos os esforços se dissolverem. Difícil era viver com ela a impotência, assistir às internações, vê-la morrer dentro do corpo. O maior desafio foi aceitar que, para cuidar, teríamos que participar de seu aprisionamento, manejar a repulsa e a fúria que tomavam a contratransferência e assumir o risco de conivência com a loucura familiar.

Em dado momento, um mantra nos ajudou a ultrapassar resistências: "Cila vai caber em nosso coração".[xvii] Quando aceitamos estar onde elas estavam, sustentar o corpo a corpo violento dos atendimentos, conseguimos estabelecer um "cordão de isolamento transferencial", pronto para proteger a voz e os quereres de Cila da paranoia materna. Mas, a cada abertura, tentativas de tamponamento desteciam toda e qualquer construção.

Maria. Cila pedia, mas Maria exigia o olhar. Sem ele, o acting out era a internação da filha. Maria "se fazia de tonta" e, em sua insistência passiva, exigia soluções. Maria "nos fazia de tontas": entrava nas madrugadas e saía com o remédio ou a intervenção que queria. Maria convocava nossos "conselhos" para ignorá-los.

Em seu eterno retorno ao hospital, Maria nos fazia ver e rever o corpo corrompido de Cila. Esse elemento "irreparável" parecia parte integrante do sintoma. Creio que, em sua fantasia, o "olhar médico" maculou as filhas perfeitas e seria o único antídoto capaz de devolver algo de seus ideais. Algo das perdas ligadas à morte de Cláudia e ao diagnóstico de Cila parecia ressurgir a cada entrada no hospital. Diante da impossibilidade de luto, o corpo de Cila se tornou palco e receptáculo do objeto melancólico, uma cripta (ABRAHAM e TOROK, 1995 [1972]) do eu "fora" do eu. A relação mãe-filha, que sempre nos pareceu simbiótica, era um aprisionamento.

Nos encontros ambulatoriais, enquanto eu me dedicava a Cila, a médica "tricotava", angustiada pela perda de função com Maria. Foi assim que se agregou, convincente, a "boa mãe", papel que Maria passou a exercer com Cila e, logo, com a boneca Baby Reborn. Quais bebês renasciam na imagem trágica dessa mãe colocando uma boneca para arrotar? A quantos escombros a boneca remeteu esta mulher ferida? Ficou evidente que Maria dependia de que lhe refletíssemos uma boa mãe, mesmo que na relação com a boneca, objeto que ninguém poderia estragar ou lhe tirar. O que se esboçou na relação transferencial conseguida no ambulatório permitiu que ela soltasse Cila por um momento, segurando-se nesse fio por instantes.

Síndrome de Münchausen e iatrogenia. Gostaria de inverter o espelho e focalizar o sistema hospitalar que participou dessa montagem. O funcionamento do sistema de saúde, as fontes pagadoras a partir de serviços, e não de resultados, a desarticulação das redes pública e privada, os ganhos secundários, as consequências pulsionais da invasão do corpo na infância... São muitas as faces do problema, mas fica a suspeita: a síndrome de Münchausen por procuração também pode ser vista como efeito iatrogênico (GATTAZ, 2003) de um mecanismo maior. Seja como for, o hospital é o lugar onde ouvimos claramente a sua voz. Se ali ela se fortalece, ali deve ser enfrentada.

A indicação de Cila para a equipe de Suporte e Cuidados Paliativos Pediátricos dentro dos muros do hospital foi crucial. Nessa equipe "jovem" começou o processo de absolvição, o resgate da dupla dos porões da doença mental, para apostarmos outra vez "na mãe e na paciente". Assim, do ponto de vista institucional, uma importante conquista foi a implantação do ambulatório multiprofissional de Cuidados Paliativos, capaz de ampliar o espaço de saúde a que pacientes graves podem ter acesso. Outra, anterior, foi o hospital assumir o ônus do atendimento psicológico das crianças e famílias, independentemente do pagamento dos convênios.

 

Considerações finais

 

Por anos, com essa família habitamos apenas o hall de entrada. Não adentramos as portas da esperança, nem os portões do castelo, nem a sala de visitas de alguém desejoso de nossa presença. Conhecíamos bem a sedução resistencial dessa relação de cuidado sintomática e desgastada. Olhando hoje, talvez não tenhamos percebido quando a fresta que tanto desejávamos se abriu. Enquanto buscávamos a trinca no script, experimentávamos desdobramentos da mesma cena: o corpo deformado de Cila, o enredo "mãe preocupada, filha que apronta" e as inúmeras versões do primitivo "que olhos lindos você tem"!

Um "lobo mau" sempre rondava e engolia tudo a sua volta. No entanto, algo aconteceu, e esse algo se compõe do efeito analítico que a sustentação do trabalho pode oferecer. Tenho a sensação final de que algo etéreo e sutil como Gradiva (FREUD, 2001 [1907]) caminhou pela aridez viciada da repetição e, na sombra ingênua das gretas e augustos, revisitou Pompeia. Na luz escaldante do meio-dia, ninguém mais sabia quem ou o que se movia, mas moveu-se, e o milagre aconteceu sem grandes feitos ou testemunhas. Uma ação se deu, o campo inteiro se movimentou ao redor dos corpos petrificados, descortinando perspectivas possíveis e impossíveis. Um lugar de fala se desenhou, e tivemos pouco tempo para habitá-lo.

Preservamos o corpo de Cila por cinco meses, literalmente brincando de casinha com a mamãe preocupada. Protegê-la passou pela aceitação da mimesis e da transferência corporal. Cila não apenas coube em nosso coração. Cila e Maria ficaram em mim, como uma gravidez indesejada. Entre o delírio e a intrusão, este texto representa um parto.

A tantíssimas mãos, o árduo manejo teceu um cordão de proteção em torno de Cila e forjou, no mesmo movimento, um frágil cordão umbilical para mãe e filha. Cila, então, falou. Foi uma faísca, um "triz": a trinca, o quase, o "crack" de Leonard Cohen, a fração de segundo que nos faz vislumbrar as grades que aprisionam e os vazios que convidam, o lugar de onde uma nova ânsia pode relançar o sentido, fazendo surgir, com sorte, o inesperado e o estranho.

 

Agradecimentos

 

Ao Sabará Hospital Infantil (Fundação José Luiz Egydio Setúbal), onde fundei e coordenei a Equipe de Psicologia Hospitalar por oito anos (de 2012 a 2021). À equipe de Suporte e Cuidados Paliativos, em especial à coordenadora Denise Madureira e à Dra. Cíntia T. Cruz. À Comissão de Admissão de Membros do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae (2018-2020) e à interlocução com Solange Maria e David Calderoni, e ao Nelson da Silva Junior e à Heidi Tabacof, pela companhia à toda prova nessa "clínica do abismo". À Carla Faccin, pela tradução, e à Érica Dantas Brasil, pela revisão.


 


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ano - Nº 3 - 2021
publicação: 20-11-2021
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Autor(es)
• Gláucia Faria da Silva
Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae

Doutora em Psicologia Social pela Universidade de São Paulo. Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. E-mail: glaufaria@live.com

Notas

[i] Versos da música "Anthem", de Leonard Cohen.

[ii] Os asteriscos em Cila, Cláudia, João e Maria indicam que os nomes são fictícios.

[iii] Disponível em: https://mitologiagrega.net.br/glauco-e-Cila/. Acesso em: 10 jan. 2020.

[iv] Síndrome de Ondine ou síndrome da hipoventilação central congênita: erro genético que provoca desautonomia respiratória durante o sono, causa provável de morte súbita em recém-nascidos. Prescreve-se traqueostomia até os 5 anos de idade.

[v] Bebês Reborn: bonecos que se assemelham muito a bebês humanos reais. O nome Reborn significa "renascido". Para dar as características ao boneco, os artesãos importam as partes do corpo ou moldam-nas com base em bebês reais.

[vi] BIPAP (BI-level Positive Airway Pressure): aparelho compressor de ar utilizado para tratar a apneia do sono em grau acentuado.

[vii] Conduto de Malone: abertura de comunicação entre a parede abdominal e o intestino, possibilitando sondagem diária para "lavar" o intestino, devido à dificuldade de evacuação de crianças cuja inervação pode estar prejudicada.

[viii] Ileocistoplastia: reversão de parte do íleo (intestino delgado) para compor o tecido da bexiga, causa provável das infecções urinárias.

[ix] Traqueostomia: via ventilatória alternativa diretamente na traqueia.

[x] Colostomia: via de evacuação alternativa colocada na superfície abdominal. Realizada devido ao vazamento de fezes pelo conduto de Malone.

[xi] Sonda Mitrofanoff: método de esvaziamento da bexiga que visa a prevenção de infecções do trato urinário e preservação da função renal.

[xii] SNE: Sonda NasoEnteral, via alternativa de alimentação.

[xiii] Gastrostomia: via alternativa de alimentação, em que se coloca o alimento diretamente em um orifício no abdômen.

[xiv] Ostomias: Conjunto que abrange diferentes procedimentos cirúrgicos que têm em comum a abertura de um órgão oco para manter uma comunicação direta entre o órgão e o meio externo, exigindo sondagens frequentes.

[xv] Trecho de O QUERERES de Caetano Veloso (1984): Onde queres o ato, eu sou o espírito/ E onde queres ternura, eu sou tesão/ Onde queres o livre, decassílabo/ E onde buscas o anjo, sou mulher/ Onde queres prazer, sou o que dói/ E onde queres tortura, mansidão/ Onde queres um lar, revolução/ E onde queres bandido, sou herói/ Ah! bruta flor do querer/ Ah! bruta flor, bruta flor.

[xvi] Acting out: "quando há passagem ao ato de representação recalcada, desejo ou impulso, e quando esta ação é cega e carregada de impulsividade e de desconhecimento quanto a sua própria origem e sentido, estamos diante de uma repetição que impede uma recordação" (GURFINKEL, 2001, p. 253).

[xvii] O mantra: sugestão da coordenadora do Instituto Casa do Todos, Mirella Viviani, que, com sua equipe, receberam Cila e a mãe.

Referências bibliográficas

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GURFINKEL, D. Do sonho ao trauma: Psicossoma e adicções. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2001.

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PIRES, J. M. A.; DALLE MOLLE, L. Síndrome de Münchausen por procuração: relato de dois casos. Jornal de Pediatria, Rio de Janeiro, v. 75, n. 4, p. 281-6, 1999.

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