ARTIGOS

Aspectos Psicossomáticos e Adoecimento Ocupacional: Estudo de caso Judicial à Luz do entendimento do Tribunal Superior do Trabalho


Psychosomatic Aspects and Occupational illness: A Judicial case Study In The Light of The Understanding of The Superior Labor Court
Thaísa Mara Leal Cintra Rodrigues
Profa. Dra. Rita de Cássia de Marchi Barcellos Dalri

RESUMO
Relato do caso judicial de uma trabalhadora, cuja decisão do Tribunal Superior do Trabalho - TST foi fundamentada à luz dos fatores psicossomáticos. Nesta proposta, é realizada a descrição do processo de somatizações das reações físicas e psíquicas que desencadearam o adoecimento durante a vigência do contrato de trabalho, causando à trabalhadora incapacidade laboral temporária em decorrência das condições de trabalho. Tais fatores constituíram concausa, isto é, contribuíram de forma substantiva para o aparecimento e o agravamento dos sintomas físicos, quais sejam, Lesões por Esforços Repetitivos e/ou Distúrbios Osteomoleculares Relacionados ao Trabalho, hipertensão, problemas cardíacos, distúrbios digestivos, dores generalizadas e sintomas psicológicos, como a depressão. A prova pericial médica, produzida na ação judicial, relatou o complexo quadro sintomático da trabalhadora sob a perspectiva do conhecimento holístico da medicina psicossomática, que tem Lipowski como seu precursor, frente à visão integrada do ser humano. Toda pessoa é um complexo biopsicossocial, ou seja, tem potencialidades biológicas, psicológicas e sociais que respondem, simultaneamente, às condições da vida humana em todos os aspectos. Abordou-se ainda, neste estudo, o referencial teórico da psicodinâmica do trabalho. O caso judicial em destaque, ademais, revela a importância do Poder Judiciário Trabalhista como interventor e garantidor dos direitos da saúde e integridade do trabalhador no ambiente de trabalho.

Palavras-chave: Medicina Psicossomática, Saúde Holística, Saúde do Trabalhador, Psicofisiologia.

ABSTRACT
Report of the judicial case of a female worker, whose decision of the Superior Labor Court was based on psychosomatic factors. In this proposal, the description of the somatization process of the physical and psychic reactions that triggered the illness during the term of the employment contract, causing the worker temporary incapacity to work due to working conditions, is performed. Such factors constituted concause, that is, they substantially contributed to the appearance and worsening of physical symptoms, namely, Repetitive Strain Injuries and/or Work-Related Osteomolecular Disorders, hypertension, heart problems, digestive disorders, generalized pain and symptoms of psychological disorders such as depression. The medical expert evidence, produced in the lawsuit, reported the complex symptomatic picture of the worker from the perspective of holistic knowledge of psychosomatic medicine, which has Lipowski as its precursor, in the integrated view of the human being. Every person is a biopsychosocial complex, that is, they have biological, psychological and social potentials that respond simultaneously to the conditions of human life in all aspects. This study also addressed the theoretical framework of the psychodynamics of work. The highlighted court case, furthermore, reveals the importance of the Labor Judiciary Power as an intervener and guarantor of workers’ health and integrity rights in the workplace.



Keywords: Psychosomatic Medicine, Holistic Health, Occupational Health, Psychophysiology.


Introdução

 

A saúde do trabalhador sob o prisma dos aspectos psicossomáticos

 

Estudos de diferentes países já demonstraram que a saúde física e mental dos trabalhadores está associada a diversos fatores externos e internos, a depender das atividades e dos riscos psicossociais a que são submetidos. A Organização Mundial da Saúde (OMS) alerta que os transtornos depressivos serão as doenças mais incapacitantes do mundo até 2030 (BBC NEWS, 2018).

A lista de doenças ocupacionais da Previdência Social, constante do Anexo II dos Decretos n. 3.048/99 e 6.042/07, indica o Grupo V da CID-10, correspondente aos "transtornos mentais e do comportamento relacionados com o trabalho", em que aponta, como agentes etiológicos ou fatores de risco de natureza ocupacional, os problemas relacionados a emprego; desemprego; condições de trabalho deficientes; ritmo de trabalho penoso; dificuldades físicas e mentais relacionadas com o trabalho; reação após acidente do trabalho grave ou catastrófico ou após assalto no trabalho; mudança de emprego; ameaça de perda de emprego; desacordo com patrão e colegas de trabalho; má adaptação à organização de jornadas de trabalho, assédio moral, transtornos relacionados às reações ao "stress" grave e a transtornos de adaptação; episódicos depressivos; neurastenia (inclui a fadiga); outros transtornos neuróticos especificados (inclui neurose profissional) e Síndrome de Burnout. (BRASIL, 1999; BRASIL, 2007).

Assim, o adoecimento físico e biopsicossocial pode decorrer de diferentes fatores, sob o prisma holístico e sistêmico. Embora criticado por alguns estudiosos, o holismo, observado por Aristóteles e Platão, é um conceito filosófico associado à totalidade de corpo-mente. Platão (428-347 a.C.) reflete que a alma se originou e se encarcerou num corpo, que apresenta uma dimensão inferior, limitada, contraposta à perfeição, eternidade e imutabilidade da alma. Assim sendo, as atividades relacionadas ao intelecto eram consideradas nobres, reservadas à aristocracia, fomentando o chamado "ócio prestigioso" e relegando às classes inferiores os trabalhos braçais (LIPOWSKI, 1984; DUMONT e PRETO, 2005).  

Por outro lado, Aristóteles (384-322 a.C.) afirma que a alma tem a forma do corpo e influencia o empirismo, ao admitir que o corpo interage perfeitamente com este mundo a partir de suas percepções sensoriais: os sentidos, a intuição e a consciência (DUMONT e PRETO, 2005).

Essa nova concepção, que relaciona os aspectos biológicos e psicológicos da saúde, tem servido de base para a formulação do que Lipowski (1977, 1984) chama de medicina psicossomática, que reconhece a interdependência fundamental entre o corpo e a mente em todos os níveis de saúde e doença, ou seja, todos os distúrbios são, em última análise, psicossomáticos: não existe um distúrbio puramente psicológico que não se reflita no corpo, assim como nenhuma doença é puramente orgânica, sem nenhum reflexo ou componente psicológico. Toda doença envolve uma interação contínua do corpo com a mente. Embora, naturalmente, existam variações ao infinito, no sentido de que uma doença apresenta um caráter predominantemente orgânico ou psíquico, ambos estão inter-relacionados (LIPOWSKI, 1977, 1984).

Sob outro enfoque, Franz Alexander (1943) entende os fatores psicossomáticos como transtornos orgânicos psicogênicos, ou seja, como agentes causais da morbidade. A Teoria da Especificidade, defendida por ele, expõe a ideia de cadeia causal linear, que direciona as emoções à doença, sendo o processo de adoecer um evento causal, cujas concepções psicogênicas e cartesianas predominam na construção do conhecimento da medicina psicossomática (ALEXANDER, 1943).

No cenário empresarial, os valores sobre saúde e doença são construídos nas organizações, sob os princípios que se adotam sobre responsabilidade social, cultura organizacional e a valorização das pessoas inseridas nessa realidade, que interagem com suas próprias crenças e histórias, formando uma dinâmica psicossocial (LIMONGI-FRANÇA e RODRIGUES, 1999).

Dentre os fatores que contribuem para as vivências de prazer e sofrimento no ambiente laboral, algumas podem configurar estressores psicossociais no contexto do trabalho: sobrecarga e trabalho excessivo; tarefas são realizadas sob pressão; rigidez na exigência do cumprimento das normas; defasagem entre a carga de trabalho e o número de trabalhadores que compõem a equipe, inexistência de quadro de pessoal suficiente para atender à demanda do trabalho; falta de flexibilidade; centralização de poder e burocracia; falta de autonomia; pressão por resultados, dentre outros (MERLO e MENDES, 2009).  

Em suma, a teoria retrata o trabalho real, priorizando aspectos relacionados à organização do trabalho, tais como, ritmo das atividades, jornada de trabalho, hierarquia e subordinação, responsabilidade, controle e pressão que são submetidos os trabalhadores, dentre outras; pautando-se em aspectos organizacionais do trabalho. Introduz o conceito de sofrimento psíquico, considerando uma vivência subjetiva intermediária entre a doença mental descompensada e o bem-estar psíquico (DEJOURS, 1994, MERLO e MENDES, 2009; SELIGMANN-SILVA et al, 2010).

A partir desta seara, as tendências mais comuns podem ser evidenciadas ante a complexificação de dois grupos de sofrimento, adoecimento, incapacidade ou morte de trabalhadores na atualidade: (i) o grupo das "patologias da sobrecarga e do desgaste" (fadiga física e mental; LER/Dort, Síndrome de Burnout, e mortes por exaustão e excesso de trabalho, entre outras) e o grupo das (ii) "patologias da solidão ou silêncio" (transtornos mentais depressivos e suicídio relacionado ao trabalho, dentre outras) (DEJOURS, 1994; MENDES, 2020).

No mundo do trabalho contemporâneo, o adoecimento mental do trabalhador, desencadeado, muitas vezes pelo sofrimento humano velado, parece ultrapassar a compreensão desafiadora de um novo olhar para a complexidade e dinamismo das relações de trabalho. A construção do estudo da Psicodinâmica do Trabalho indica não apenas produzir uma investigação e novos conhecimentos, outrossim, revela-se um instrumento de intervenção, prevenção e transformação de processos de trabalho agressivos à saúde psíquica, sob a perspectiva humanista e holística, o que pode ser uma das maiores contribuições científicas deste campo, revelando-se aos novos desafios do mundo contemporâneo do trabalho e a saúde mental do trabalhador (DEJOURS, 1994; BOUYER, 2010).

É fato que os trabalhadores de alguma forma buscam satisfação nas suas atividades laborais, tais como, recompensa material; progresso na carreira; reconhecimento; status na comunidade; valorização do seu trabalho; conciliação da vida social, pessoal e familiar; boas condições de saúde e segurança no trabalho (LIMONGI-FRANÇA e RODRIGUES, 1999). Tais condições levam o trabalhador a desenvolver estratégias de enfrentamento para lidar com o sofrimento advindo do trabalho, já que ele pode ser considerado um ser biopsicossocial, que sofre as influências biológicas, psicológicas e sociais no seu ambiente externo social, impactando as suas formas de existência ao incorporá-las não só no trabalho, mas também na sua vida privada e familiar (LIMONGI-FRANÇA e KANIKADAN, 2006).

Esta concepção reforça as dimensões biológica, psicológica e social do trabalhador, consistente na inter-relação do indivíduo com o meio ambiente. Em função da integração dessas dimensões, o organismo, diante de cada reação desencadeada pelos inúmeros estímulos a que está submetido, gera impactos internos e externos que deixam marcas e modificam as pessoas, inclusive seus corpos, tal como as reações ao estresse gerado por fatores externos, oriundos do ambiente, ou por situações internas/íntimas do ser humano (LIMONGI-FRANÇA e RODRIGUES, 1999).

Diante do exposto, este estudo de caso objetivou analisar o discurso do Judiciário Trabalhista fundamentado nos aspectos psicossomáticos inseridos no processo de adoecimento físico e mental de uma trabalhadora. Na decisão, foram destacadas as condições de trabalho, as atividades desenvolvidas por ela, as condições de saúde (sintomas, transtornos mentais, diagnóstico, fatos desencadeantes, dentre outros), os diferentes aspectos da vida pessoal da trabalhadora, eventuais medidas adotadas pelo empregador e os aspectos psicossociais gerais do trabalho.

 

Método

O presente trabalho é um estudo de caso analítico, descritivo e retrospectivo, em que se utilizou a metodologia de análise jurisprudencial. O caso apresentado, com base em documento público e oficial (decisão judicial), disponibilizado pela internet, foi analisado no período de setembro a novembro de 2020, com o objetivo de compreender os diferentes fenômenos sociais, em que não há uma definição substancial sobre os limites entre o fenômeno e o contexto (YIN, 2015).

O caso judicial, proveniente de uma decisão do TST, publicada em 11 de setembro de 2020, pautou-se pelo adoecimento físico e mental de uma trabalhadora, sob o prisma dos aspectos psicossomáticos enfrentados durante a vigência do seu contrato de trabalho. O discurso do Julgador Relator descreve os fatos, as provas documentais e periciais médicas produzidas, bem como seu entendimento jurídico e legal, frente ao contexto apresentado nos autos da ação judicial.

O papel do Poder Judiciário consiste em aplicar a lei ao caso concreto, atuando como gerador do comportamento dos agentes diretamente envolvidos em suas decisões, especialmente quando se trata de medidas coercitivas impostas pelos julgadores, de maneira a minimizar os efeitos causadores dos agravos à saúde que se relacionam com as atividades laborais, já que o cumprimento dos direitos dos trabalhadores é insuficiente, e tampouco é eficaz o cumprimento do comando constitucional de proteção à saúde do trabalhador. Por consequência, tal desproteção tem acarretado reflexos judiciais, derivados do ajuizamento de ações pleiteando direitos previdenciários e trabalhistas, gerando um grande número de demandas judiciais que caracterizam a "judicialização da saúde do trabalhador".

O Poder Público, representado pelos julgadores do Poder Judiciário Trabalhista, com base nas provas produzidas, sejam elas documentais, testemunhais ou, especialmente, periciais, tem o papel essencial de buscar a solução dos conflitos por meio de suas decisões, em especial aquelas concernentes à proteção da vida, da saúde e da integridade física e psíquica do trabalhador (SILVA, LIMA e LORENZO, 2011).

 

Descrição do caso - Análise judicial

 

Após o debate teórico, cabe transportar tais elementos à realidade fática do caso judicializado, que aborda o adoecimento da trabalhadora durante a vigência do contrato de trabalho, bem como os aspectos somáticos envolvidos, revelando, pois, a aplicação de conhecimento dos fatores biopsicossociais na decisão judicial do TST:

 

A autora, na inicial, alegou que foi contratada em 07/03/1988, que exerceu a função de Escriturária, nessa função digitava, fazia fichas, batia máquina de escrever, cadastros no computador em jornadas excessivas, por aproximadamente três anos, sendo que após esse período foi promovida a caixa na qual exerceu até 2000 (época do afastamento) sempre com jornadas além do permitido em Lei e Convenções Coletivas de Trabalho. Em 13.11.2000, com 36 anos de idade e com 12 anos de Banco, sempre tendo gozado de ótima saúde, foi obrigada a afastar-se do trabalho, conforme cópia do Comunicado de Acidente do Trabalho (CAT) em anexo, para tratamento de lesões, inchaços e dores, diagnosticados pelo INSS como Lesões por Esforços Repetitivos (LER) e/ou Distúrbios Osteomoleculares Relacionados ao Trabalho (DORT), equiparadas a Acidente de Trabalho, conforme a Lei 8.213/1991. [...] a prova pericial produzida é de incomodativa clareza, dando conta que a Reclamante é portadora de enfermidade agravada ou permanentemente instalada em razão do ambiente ou das condições de trabalho, o que, do ponto de vista legal, caracteriza o denominado nexo de causalidade. [...] Ao contrário do pretendido pelos Reclamados, a afirmação pericial no sentido de que a doença apresentada pela Reclamante tem conteúdo psicossomático não afasta ou prejudica a conclusão de que se trata de doença profissional, assim entendida, frise-se novamente, aquela decorrente, agravada ou instalada permanentemente pelo ambiente ou pelas condições de trabalho. Enfermidades psicossomáticas não são, propriamente, devaneios ou distúrbios mentais, mas, sim, sensações e distúrbios físicos com forte carga emocional e afetiva, segundo definição de Ana Cristina Limongi-França e Avelino Luiz Rodrigues (em Stress e Trabalho: Uma Abordagem Psicossomática. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2002), tais como, hipertensão, problemas cardíacos, distúrbios digestivos, dores generalizadas. [...] Na hipótese dos autos, o estado da saúde mental da trabalhadora, estresse, problemas na vida pessoal etc., todos estes componentes podem e devem ter contribuído para a somatização dos sintomas, o agravamento de seu estado de saúde ou a demora no processo de cura. Nada obstante, definitivo é que as condições e o ambiente de trabalho constituíram concausa, isto é, contribuíram de forma substantiva para o aparecimento, o agravamento e a instalação permanente dos problemas de saúde apresentados pela parte autora. [...] Evidente que da doença da qual foi vítima a Reclamante resultou incapacidade provisória para o trabalho, dano à trabalhadora, uma vez que a mesma permanece até a presente data afastada de suas atividades profissionais, com redução significativa de sua capacidade laborativa, conforme atesta a prova pericial produzida (veja-se resposta aos quesitos 11, 12, fl. 703/704, e, quesitos 24 e 25, fl. 709). Em sendo assim, incidentalmente, reconheço a origem profissional da moléstia da qual se encontra acometida a trabalhadora. Realizada a perícia, concluiu-se pela existência de "sugestivo elemento concausal no caso da lide". [...] Penso que o perito foi diligente, ao proceder aos exames clínicos, além de ter examinado todos os demais documentos constantes dos autos. O fato de ter sido relacionada a doença do trabalho a fatores psicossomáticos decorrentes de estresse tanto na vida profissional quanto na vida pessoal da autora não altera o deslinde da controvérsia. Por certo, a saúde mental da autora contribuiu para o agravamento da situação. No entanto, não é o único ou o principal fator desencadeante. [...] O perito, respondendo aos quesitos, informou: ’A autora teve dois filhos durante o período em que trabalhava para a empresa Ré; a segunda gestação foi mais difícil, separou-se de seu companheiro e viu-se sozinha, desenvolveu quadro de distúrbio bipolar e tem quadro depressivo e de ansiedade, todos os fatores que podemos considerar extralaborais às atividades desenvolvidas na empresa Ré’; ’A venda do Banco e sua reestruturação contribuíram para o agravamento de suas dores’; ’O quadro depressivo foi o que mais pareceu comprometer a sua capacidade de trabalho e a sua vida social. As dores na coluna cervical e no ombro não se mantiveram, podendo ter sido agravadas naquela época em que se deu o afastamento do trabalho’; ’Há espasmos musculares próximo a coluna cervical, tensão na fala e apreensão emocional ao dar o seu depoimento. O quadro é sugestivo de somatização do agravamento das dores pelo comprometimento psicológico’. Ademais, a perícia confirmou o abalo psicológico sofrido pela trabalhadora: ’O quadro depressivo foi o que mais pareceu comprometer a sua capacidade de trabalho e a sua vida social’; ’[...] o fator estabilidade no trabalho e a condição psicossomática, considerando os comprometimentos psicológicos, devem ser prioridades no tratamento para sua recuperação e aptidão normal de trabalho’; ’O quadro é sugestivo de somatização do agravamento das dores pelo comprometimento psicológico’; ’A condição diagnosticada ’bipolar’ talvez seja a que mais demore para haver a cura e muitas vezes isso pode não ocorrer, fazendo com que a Autora use medicação para o resto de sua vida’; ’[...] a Autora foi diagnosticada como Bipolar, fazia tratamento para ansiedade e depressão e teve esse quadro agravado pelas condições organizacionais da época na empresa Ré’; ’[...] o fator mais evidente de comprometimento no caso da lide foram os fatores psicossomáticos, e as patologias alegadas de depressão, ansiedade e o fato de a Autora ser Bipolar’; ’A Autora apresenta comprometimento da sua capacidade laborativa de acordo com o seu estado psicológico em dado momento. A condição Bipolar permitiu a patologia porque a Autora não sabia que em alguns momentos se manifestava dessa forma, assim psicologicamente abalada - ela não era capaz de perceber que se manifestava assim’; ’O problema mais sério é a falta de identificação de hipomanias prévias dos deprimidos. Os efeitos causam sofrimento clinicamente significativo ou prejuízo no funcionamento social ou ocupacional ou em outras formas importantes em outras áreas da vida do indivíduo’ (fls. 702/710). A dor física suportada pela bancária, quando no curso de sua jornada precisava necessariamente utilizar os braços para executar suas tarefas como caixa, o desconforto com os inúmeros procedimentos médicos a que se submeteu (consultas, exames, perícias), as limitações físicas, o estado de espírito abalado pela incapacidade plena, a baixa autoestima lhe geraram a dor psicológica justificadora da indenização por danos morais. É justamente o fato de não poder viver uma vida com normalidade produtiva e social que ampara a indenização postulada, pois são evidentes as alterações no seu estado psicológico. Some-se, ainda, o fato de não estar trabalhando, o que lhe retira a valorização social. Conforme bem observado pelo MM. Juízo primeiro (fls. 752/753): ’Na hipótese dos autos restou inequívoco que, em virtude do ato culposo do empregador, a Reclamante sofreu incapacidade total e provisória para o trabalho, com as desvalias social e moral daí decorrentes, porquanto é evidente que o trabalho não é apenas meio de subsistência, mas também meio de garantia de valorização social e pessoal. [...] Além disso, inúmeras foram as dores físicas pelas quais passou a trabalhadora, com tratamentos médicos, medicações etc. [...] Diante de todo o quadro relatado, indiscutível a dor física e psicológica suportada pela autora. É impossível dizer que, durante tantos anos de sofrimento, não tenha a autora passado por sérios momentos de angústia e depressão, afetando duramente seu ânimo de viver [...]. (Subseção I Especializada em Dissídios Individuais, Relator Ministro Breno Medeiros, DEJT 11/09/2020, p. 4-10).

 

 

Identificação dos fatores psicossomáticos

 

No caso relatado, a fundamentação da decisão do TST descreve as evidências do processo de somatização e adoecimento, ao lume da visão holística, "como resposta de um ser humano que vive em sociedade, como parte ativa de uma microestrutura familiar, inserida na macroestrutura social e cultural, situado em um ambiente físico [...]", sob as complexas inter-relações com o ambiente social, inclusive do trabalho, frente aos fatores biopsicossociais que emergem da vida humana (LIMONGI-FRANÇA e RODRIGUES, 1999).

No caso, os fatores físicos, biomecânicos e orgânicos foram descritos como desencadeantes do adoecimento mental (depressão, ansiedade e transtorno bipolar):

 

[...] lesões, inchaços e dores, diagnosticados pelo INSS como Lesões por Esforços Repetitivos (LER) e/ou Distúrbios Osteomusculares Relacionados ao Trabalho (DORT), [...] hipertensão, problemas cardíacos, distúrbios digestivos, dores generalizadas. [...] A dor física, [...] as limitações físicas, o estado de espírito abalado pela incapacidade plena, a baixa autoestima lhe geraram a dor psicológica [...] As dores na coluna cervical e no ombro não se mantiveram, podendo ter sido agravadas naquela época em que se deu o afastamento do trabalho’; ’Há espasmos musculares próximos a coluna cervical, tensão na fala e apreensão emocional ao dar o seu depoimento. O quadro é sugestivo de somatização do agravamento das dores pelo comprometimento psicológico’.

 

Segundo pesquisas, as LER/DORT são um fenômeno multifatorial (fatores biomecânicos, organizacionais e psicossociais) e multidimensional (dimensão individual, grupal e social). Um desafio para a pesquisa é compreender como os fatores interagem entre si para produzir ou potencializar os sintomas e todas as consequências dessa síndrome. A dimensão biomecânica deve ser pesquisada juntamente com a dimensão organizacional e a psicossocial. Portanto, o movimento repetitivo é condição necessária para o surgimento de LER/DORT, mas não é uma condição suficiente. Esse termo já não compreende uma descrição apropriada do fenômeno. Com o desenvolvimento das pesquisas, poderá ser necessário inserir a dimensão psicossocial em uma nova definição dessa síndrome (MORAES e BASTOS, 2013; ZAMBRONI-DE-SOUZA e MORAES, 2018).

Os argumentos da decisão no caso abordaram as alterações imunológicas, no sistema de defesas do organismo e nas funções motoras secretoras e de irrigação dos órgãos (sistema nervoso central), decorrentes de um complexo de estruturas cerebrais denominadas eixo hipotálamo-hipófise e sistema límbico, ou seja, inúmeros estressores podem desencadear reações biológicas, físicas, químicas e biomecânicas, a depender das emoções vivenciadas (LIMONGI-FRANÇA e RODRIGUES, 1999).

Ademais, a abordagem psicossomática sob o enfoque da vida profissional, pessoal e familiar da trabalhadora foi objeto de análise pericial, inclusive:

 

[...] ‘A autora teve dois filhos durante o período em que trabalhava para a empresa Ré; a segunda gestação foi mais difícil, separou-se de seu companheiro e viu-se sozinha, desenvolveu quadro de distúrbio bipolar e tem quadro depressivo e de ansiedade, todos os fatores que podemos considerar extralaborais às atividades desenvolvidas na empresa Ré’; ’A venda do Banco e sua reestruturação contribuíram para o agravamento de suas dores’; ’O quadro depressivo foi o que mais pareceu comprometer a sua capacidade de trabalho e a sua vida social.

 

A decisão conclui, sob o prisma do adoecimento físico e mental, com os seguintes argumentos:

 

[...] a doença apresentada pela Reclamante tem conteúdo psicossomático [...] agravada ou instalada permanentemente pelo ambiente ou pelas condições de trabalho. Enfermidades psicossomáticas não são, propriamente, devaneios ou distúrbios mentais, mas, sim, sensações e distúrbios físicos com forte carga emocional e afetiva [...] o estado da saúde mental da trabalhadora, estresse, problemas na vida pessoal, etc., todos estes componentes podem e devem ter contribuído para a somatização dos sintomas, o agravamento de seu estado de saúde [...]. O fato de ter sido relacionada a doença do trabalho a fatores psicossomáticos decorrentes de estresse tanto na vida profissional quanto na vida pessoal da autora [...]. Diante de todo o quadro relatado, indiscutível a dor física e psicológica suportada pela autora. É impossível dizer que, durante tantos anos de sofrimento, não tenha a autora passado por sérios momentos de angústia e depressão, afetando duramente seu ânimo de viver [...]

 

Os destaques da decisão do caso, acertadamente, revelam a extensão e a forma de analisar as organizações na esfera biopsicossocial, que se fundamentam na constituição do homem e do trabalho como corpo-mente-ambiente. Aplicadas as contribuições da abordagem psicossomática, que partem do princípio totalizante do mundo do trabalho, procurando desvelar suas variáveis e entender os processos que estabelecem as inter-relações entre as partes que compõem a organização - homem-trabalho-(ambiente/empresa) -, reafirma-se a importância da reflexão holística no processo saúde-doença no ambiente laboral.

 

Reflexão final

 

Do ponto de vista biopsicossocial, o ser humano e suas manifestações, sob a perspectiva da saúde ou da doença, estão coerentes com a definição prescrita pela Organização Mundial de Saúde: "o completo bem-estar biológico, psicológico e social, e não apenas a ausência de doença ou enfermidade"(WHO, 1948).

Nesta linha, acredita-se que o ser humano é um ser biopsicossocial, mente-corpo-ambiente. A psicossomática explica os processos de desencadeamento e desenvolvimento de sintomas de patologias, ressaltando que as doenças psicossomáticas são difíceis de serem detectadas, pois causam sintomas físicos, porém sem causas orgânicas, constituindo-se por causas emocionais, por exemplo, situações estressoras podem causar dor de estômago, cefaleia, dores osteomusculares, dentre outras.

Os fatores da organização do trabalho, principalmente as pressões psicológicas, como desvalorização pessoal, falta de autonomia, descaso dos líderes e sobrecarga, podem ser fatores que colaboram para o surgimento de diversos sintomas, logo considerados como psicossomáticos.

A Escola Psicossomática de Chicago, cujas principais referências foram Joyce McDougall e Christophe Dejours, contextualiza que o fenômeno psicossomático é compreendido em uma linha divergente, relacionando a formação do sintoma a conflitos inconscientes que são simbolizados na doença.

Quando não observadas as condições mínimas para a qualidade de vida no trabalho, os aspectos mais relevantes influenciam o surgimento da doença psicossomática. A organização do trabalho é, por vezes, causa de uma fragilização somática que pode acarretar conflitos, potencializando os efeitos patogênicos das más condições físicas, químicas, biológicas e psicológicas do trabalho.

Sob este prisma, a Psicodinâmica do Trabalho reconhece a subjetividade do trabalhador e seu papel na adaptação e na fluência e qualidade do processo de produção, sugerindo um novo olhar nas ciências do trabalho, ao propor a criação de espaços de discussão em que os trabalhadores dialoguem, expressando seus sentimentos, sofrimentos e as contradições do contexto do trabalho.

Ante o caso exposto, é certo que a construção do conhecimento da psicossomática encontra-se sob constante investigação. O enfrentamento do processo de somatização e adoecimento do ser humano inserido num contexto tríade (corpo-mente-ambiente), ainda que criticado, ilumina a reflexão de que o estudo dos fenômenos psicossomáticos contribuiu e contribui, significativamente, para o olhar integral do humano face à complexa compreensão dos deslindes das evidências científicas.


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ano - Nº 3 - 2021
publicação: 20-11-2021
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Autor(es)
• Thaísa Mara Leal Cintra Rodrigues
EERP-USP
Ribeirão Preto – São Paulo


Advogada. Mestre e Doutoranda em Ciências pela EERP – Universidade de São Paulo – USP.

• Profa. Dra. Rita de Cássia de Marchi Barcellos Dalri
EERP-USP
Ribeirão Preto – São Paulo


Enfermeira. Pós-Doutora em Ciências pela EERP – Universidade de São Paulo – USP.

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