MONOGRAFIA

Uma Visão Ampliada Sobre a Noção de Mentalização


An Expanded View on The Notion Of Mentalization
Andreia Rocha de Vasconcellos

RESUMO
O artigo apresenta a noção de mentalização, considerando a relevância dessa ideia para a clínica psicossomática. Em sua primeira parte, expõe o conceito difundido pela escola psicossomática de Paris, e, num segundo momento, expande a noção de mentalização a partir da escola psicanalítica inglesa. Enfatiza a importância das primeiras relações objetais para a constituição somatopsíquica do sujeito.

Palavras-chave: Psicossomática, Mentalização, Escola psicossomática de Paris, Escola psicanalítica inglesa, Relações de objeto.

ABSTRACT
The article presents the notion of mentalization, considering the relevance of this idea for the psychosomatic clinic. In its first part, it exposes the concept spread by the psychosomatic school of Paris, and, in a second moment, it expands the notion of mentalization based on the English psychoanalytic school. It emphasizes the importance of the first object relations for the subject’s somatopsychic constitution.

Keywords: Psychosomatic, Mentalization, Paris psychosomatic school, English psychoanalytical school, Object relations.


 

A representação corporal com seus aspectos temporal e espacial oferece uma confirmação valiosa da concepção que o indivíduo tem de si próprio, e acredito que não há um lugar indiscutível para a mente. Mesmo assim, na prática clínica, encontramos a mente como uma entidade localizada, em algum lugar, pelo paciente. Um estudo mais aprofundado do paradoxo que "A mente, de fato, não existe como entidade", faz-se, portanto, necessário.

(WINNICOTT, 1949/1984)

 

O trabalho do pensamento vem primeiro do corpo. "Pensar é um ato de carne."

(AISENSTEIN, 2002)

 

 

Introdução

 

Meu interesse pela clínica psicossomática foi despertado, como não poderia deixar de ser, por questionamentos sobre funcionamentos psíquicos de alguns pacientes muito doentes, cujos aspectos mórbidos apareciam na forma de adoecimentos orgânicos.

Fui em busca de uma especialização que me ajudasse a organizar as minhas questões, pois era preciso saber fazer as perguntas, antes de ir atrás de respostas, ou, como preferimos, hipóteses. Assim, como aluna do Sedes Sapientiae, instituição na qual fiz minha primeira formação como psicanalista, no Departamento de Psicanálise, fiquei sabendo do curso de especialização Psicossomática Psicanalítica - Corpo e Clínica Contemporânea. Pleiteei uma vaga e fui aceita.

Na minha escolha, é claro, havia o que não poderia ficar de fora: a transferência com a instituição e com um ou outro professor que conhecia de leituras de suas produções, que muito me ajudavam no meu percurso curioso, intuindo que iria encontrar algo, mesmo sem saber ainda o quê.

Reconheço que não dei muita atenção a respeito do que o curso falava sobre "Escola Francesa de Psicossomática", mais especificamente a Escola de Psicossomática de Paris. Estava lá. E foi cumprido o que prometeram. Entretanto, a grande surpresa foram as minhas resistências, assim como as transferências, fundamentais de serem observadas em um trabalho de sondagem e construção.

Em muitos momentos, eu pensava: "mas esse pensamento eu já li ali, essa outra ideia acolá", e, assim, a construção da trama foi acontecendo. É preciso tempo e, também, companhia para nos tornarmos e continuarmos nos tornando psicanalistas. Buscamos nossas próprias metáforas, para que o que vamos aprendendo faça sentido, afinal, é mesmo apenas recordar, repetir e elaborar? O que estamos repetindo? Qual a extensão da minha escuta desses pacientes? No caso da escuta do adoecimento psicossomático, sabemos que não se trata "apenas" de compreender a metapsicologia de algumas escolas; fazer interpretações astutas que podem estar mais a serviço do narcisismo do analista e suas defesas e resistências, tentando "apenas ser" - não que essa sustentação não seja importante, ao contrário, é preciso ser capaz de ser si mesmo como psicanalista -, em vez de possibilitar estar com seu paciente de forma verdadeira. É esse estar com que nos possibilita a experiência de continuidade de ser. Vale dizer, continuidade que nada tem a ver com aquelas que observamos em defesas tais quais as evidenciadas no pensamento operatório, muitas vezes atuadas pelos pacientes com distúrbios psicossomáticos, pois, nesses casos, o processo secundário pode estar anunciando o desligamento silencioso de processos primários essenciais para o existir criativo e a subjetivação de um ser humano.

Acredito que são muitas as experiências da clínica que, a duras penas, vão nos tornando mais experientes para o importante lugar de agentes de ligação. Principalmente no exercício da clínica psicossomática, vamos alcançando a posição de verdadeiros construtores de fundações. Aos poucos, locomovemo-nos na clínica com mais vigor e, ao mesmo tempo, menos onipotentes. Vamos nos defrontando com os nossos limites e os de nossos analisandos; por muitas vezes, adoecemos juntos; é literalmente um "corpo a corpo" que se dá nos encontros analíticos. "O corpo - erótico, doente, renegado ou excluído - é o cerne da cura. Em toda análise existe um corpo a corpo." (AISENSTEIN, 2003, p. 154)

Porém, pensando em certos adoecimentos, é preciso assumir que lidamos justamente com o que está aquém das capacidades e possibilidades de expansão do sujeito, do ser em harmonia com o seu existir criativo. A tarefa será árdua para permitir que o paciente conquiste um equilíbrio psicoafetivo articulado ao seu equilíbrio físico biológico. (MARTY, 1993)

Desde os primórdios da psicanálise, a psicossomática esteve presente de forma destacável nas descobertas de Freud. Ao termos contato com sua obra, de imediato deparamos com os desdobramentos que nos são apresentados na relação entre o corpo e o psiquismo. Percorrendo sua teoria da libido, fica claramente destacado o aspecto evidente de como a vida mental de um sujeito é afetada, desde o seu nascimento, pelas intensidades pulsionais do(s) corpo(s) vivo(s); sendo, portanto, o desenvolvimento psíquico indissociável dos efeitos das forças corporais inatas e das forças libidinizadoras do ambiente. Como disse Winnicott, em 1949: "Suponho que a palavra psique, aqui, signifique elaboração imaginativa dos fragmentos, sentimentos e funções somáticas, isto é, da vivacidade física." (WINNICOTT, 1984, p. 244; grifos do autor).

A relação inseparável entre a psique e o soma foi se tornando cada vez mais um desafio; com o passar do tempo, com base em observações clínicas, os aspectos de ligação dessa amálgama foram se tornando mais enigmáticos, pela constatação de aspectos extenuantes da força vital apresentados nas afecções psicossomáticas. Freud iniciou essa jornada ao apontar diretamente para o corpo em seus estudos sobre as conversões histéricas - sintomas somáticos que representavam o conflito entre instâncias internas do psiquismo -, sobre a histeria[1] e, em seguida, em seus trabalhos sobre as neuroses atuais.

A psicossomática psicanalítica é, sem dúvida, um campo da psicanálise que tem muito a ser explorado. Assim como o conjunto de ideias forma seus respectivos conceitos, as teorias vão se entrelaçando cada vez mais e se expandindo nesse compartilhamento, suscitado a partir das necessidades prementes que surgem no dia a dia da clínica. É fácil observarmos, com base em apontamentos de muitos pensadores da psicanálise, as transformações ocorridas nas relações teórico-clínicas do fazer psicanalítico. Ogden, por exemplo, que nos presenteia constantemente com suas leituras criativas de clássicos da literatura psicanalítica, em "Psicanálise ontológica ou ‘O que você quer ser quando crescer?’", sugere uma classificação para diferenciar modos de uso da teoria psicanalítica. Ele nos aconselha a pensar em uma psicanálise epistemológica, que visaria o conhecimento e a compreensão, e uma outra, voltada para o desenvolvimento do ser e do tornar-se. "O enfoque mudou das relações inconscientes de objetos internos para a luta de cada um de nós por tornar-se mais pleno e as experiências mais reais e vivas" (OGDEN, 2020, p. 24). Em seu artigo, o próprio autor nos alerta que não existe essa classificação de forma pura, mas ambas existem lado a lado sempre, ou seja, "são modos de pensar e de ser - sensibilidades, não ‘escolas’ de pensamento analítico, conjuntos de princípios ou técnicas analíticas" (OGDEN, 2020, p. 24).

O meu objetivo com este trabalho é apresentar, de forma breve, com a limitação que esse exercício comporta, pensamentos psicanalíticos de origens diferentes para refletirmos sobre a clínica psicossomática.

Como fio condutor para a organização das minhas ideias, escolhi pensar sobre a noção de mentalização, ideia primordial para aprofundarmos os fundamentos psicanalíticos da clínica psicossomática.

Assim sendo, este trabalho contemplará um exercício teórico. Farei um sobrevoo sobre os principais pontos desenvolvidos pela "Escola de Psicossomática de Paris" e, em seguida, dissertarei sobre algumas ideias com base no texto da psicanalista americana Judith L. Mitrani, "‘Unmentalized’ experience in the etiology and_treatment of psychosomatic asthma" [2] (1993).

 

Psicossomática Psicanalítica - A Escola de Paris

 

A psicossomática psicanalítica francesa trouxe importantes contribuições para a clínica psicanalítica, entre elas, a noção de mentalização, que será pensada em concordância com os conceitos de pensamento operatório, depressão essencial e desorganização progressiva.

 

Se a ideia de uma insuficiência fundamental [profunda] ou passageira do funcionamento mental, durante a tomada de "distância efetiva" em relação ao objeto não figurava, então, a porta se encontrava aberta à concepção posterior das neuroses de comportamento e de certos aspectos das neuroses mais ou menos mal mentalizadas. (MARTY, 1993, p. 13; grifos meus)

 

 

O pensamento operatório, a depressão essencial e a desorganização progressiva

 

Ao longo da construção teórico-clínica, pode-se observar que indivíduos dotados de recursos intelectuais robustos apresentavam, em algum momento de suas vidas, extravasamentos do seu aparelho psíquico que sobrecarregavam de maneira intensa o corpo, podendo ou não dar vazão a desorganizações mais amplas, o que nos leva a inferir que uma movimentação regressiva é uma tentativa de autocura a partir de outras criações defensivas que não somente as referidas nas psicopatologias clássicas.

 

Percebemos assim que o ser vivo não é apenas objeto de organizações, de hierarquizações e de associações, mas também objeto de movimentos regressivos e destruição e de desorganização. A Patologia também faz parte dos meios do indivíduo para regular sua homeostase, ou suas relações com o meio. (VOLICH, 2016, p. 29)

 

O pensamento operatório, ou "vida operatória", pensado por Pierre Marty e Michel de M’uzan (1994), está ligado à dificuldade da passagem da excitação corporal para o psíquico, isto é, a insuficiência de representações ou até mesmo a ausência de figurabilidades que permitam o fantasiar, o sonhar e o brincar, necessários às integrações das demandas pulsionais sexuais e agressivas.

Os trabalhos do fantasiar e do sonhar assumem papéis de suma importância, assim como o trabalho do brincar - tão bem desenvolvido pelo psicanalista inglês Donald Winnicott, ao longo de vários de seus trabalhos clínico-teóricos -, na clínica psicossomática psicanalítica, pois tanto o fantasiar e o sonhar como o brincar estão fortemente comprometidos nesses pacientes.

Qualquer ser humano reconhece, por experiência, a relação entre dormir bem e sentir-se disposto para a vida, mas a ligação com o sonhar bem não tem o mesmo alcance de importância. Parafraseando o dito popular, sugiro pensar: "conta-me como sonhas que eu te direi quem és". Nada dessa frase diz respeito a uma avaliação moral; o que eu gostaria de propor é que possamos pensar em como sonhas. Relacionar esse modo de sonhar com as funções dos sonhos nos permite extrapolar a ideia importante de Freud, segundo a qual a função do sonho é ser o guardião do sono. O pensamento operatório é desprovido da elaboração secundária inerente ao trabalho do sonhar. São indivíduos, ao que tudo indica, carentes de construção de processo primário; assim, ficam impossibilitadas as construções de representações imprescindíveis para as integrações pulsionais. A resposta a essa não construção simbolizante é o adoecimento somático.

 

O pensamento operatório parece desconsiderar, ou levar a um curto-circuito, toda atividade fantasmática elaborativa, para articular-se com as formas iniciais das pulsões, as quais podem retornar inesperadamente ou dar lugar a somatizações ou ainda se manter sob aparências rudimentares numa predominância da tensão atividade-passividade tão comum nos doentes psicossomáticos. (MARTY e DE M’UZAN, 1994, p. 171; grifos meus)

 

A essa tensão atividade-passividade podemos acrescentar a enorme movimentação/não movimentação que caracteriza a "depressão psicossomática": "um elemento maior [...] o apagamento, em toda a escala, da dinâmica mental, de funções capitais" (MARTY, 1993, p. 19). Ou seja, elementos essenciais à constituição do processo primário - que nutre a capacidade de fantasiar e sonhar - e do processo secundário - que estabelece os processos de pensamento - extinguem-se. O pensamento operatório instala-se na tentativa do sujeito de se defender dessa mudança em sua economia libidinal; ocorre um empobrecimento de suas demandas pulsionais e de suas elaborações.

A depressão essencial, ou "depressão sem objeto", relacionada a uma escassez de trabalho mental, também se expressa pela diminuição do afluxo de energia libidinal, tanto objetal quanto narcísica. Igualmente, nesses casos, constatamos a impossibilidade das ligações das quais depende a formação das representações mentais, para que seja possível o posterior trabalho de simbolização.

 

[...] o fenômeno é comparável ao da morte, onde a energia vital se perde sem compensação. Menos espetacular que a depressão melancólica, sem dúvida leva mais certamente à morte. O instinto de Morte é o Senhor da depressão essencial. (MARTY, 1993, p. 19)

 

Ou seja, não observamos nesses pacientes a possibilidade de reatamentos libidinais narcísicos ou objetais, como ocorrem nos trabalhos de luto, por exemplo.

Essa intensidade destrutiva fatalmente pode ir pela direção do que Marty denomina de desorganização progressiva ou fragmentação somática, diferentemente dos adoecimentos somáticos, que, dentro de um determinado espaço de tempo, visam um restabelecimento do potencial de eros, reorganizando os processos de ligação e contenção dos elementos psíquicos.

Sem dúvida, a noção de mentalização é imprescindível para a observação da clínica psicossomática. É um fenômeno extremamente importante, que nos oferece maior ancoragem para acompanharmos os desdobramentos clínicos.

Claude Smadja, em seu artigo "A noção de mentalização e a oposição neuroses atuais/neuroses de defesa" (1990), considera as ideias de Freud sobre as neuroses atuais e as neuroses de defesa a partir da formação de um novo modelo para pensarmos os adoecimentos psicossomáticos, nomeando-os como "neuroses mal mentalizadas e neuroses bem mentalizadas."

 

Queremos, imediatamente, colocar que existe, para nós, uma continuidade de concepção entre as neuroses atuais de Freud e as neuroses mal mentalizadas dos psicossomaticistas; do mesmo modo, entre as psiconeuroses de defesa de Freud e as neuroses bem mentalizadas dos menos psicossomaticistas. Ainda que as épocas sejam diferentes, que os pacientes tratados não estejam afetados pelos mesmos males, não se pode deixar de estar interessado, até mesmo perturbado, pelas concordâncias entre esses dois modelos. (SMADJA,1990)

 

Não me deterei de maneira minuciosa na importante construção feita por Smadja a respeito da importância da organização mental como guardiã do corpo.[3] O que para nós importa, neste momento, é a apreciação da ideia de continuidade das descobertas clínicas e as possibilidades de expressão de novas concepções, a partir da observação próxima da dinâmica analista/analisando na clínica psicossomática psicanalítica.

Não se trata apenas de atribuir e valorizar um diagnóstico irrefutável partindo da metapsicologia dos elementos intrapsíquicos do paciente adoecido, mas, principalmente, de atentar aos aspectos intersubjetivos e, por sua vez, terapêuticos, na prática clínica. No fundo, é a conexão somatopsíquica que nos interessa, mas, para isso, temos de nos debruçar sobre o que Freud (1898) chamou de "qualidade e extensão do trabalho do espírito".

Após essa breve apresentação dos principais conceitos da Escola Francesa de Psicossomática, gostaria de fazer uma sucinta explanação sobre um outro ponto de vista relacionado aos estados não mentalizados proposto pela psicanalista Judith L. Mitrani, cujas raízes estão fincadas em trabalhos de outros pensadores da psicanálise, como Melanie Klein, Wilfred Bion e Donald W. Winnicott.

 

Psicossomática Psicanalítica - A Escola Inglesa

 

Ao apresentar seu texto "‘Unmentalized’ experience in the etiology and_treatment of psychosomatic asthma", Mitrani (1993) faz uma minuciosa retrospectiva, partindo dos estudos de Freud sobre as relações entre as manifestações somáticas e os aspectos psíquicos que as envolvem.

Mitrani inicia seu texto falando sobre a capacidade de conversão dos pacientes histéricos. Lembra-nos que Freud compreendia as conversões como sintomas somáticos: a transformação de uma excitação interna em inervações somáticas. Esses caminhos representavam os pensamentos incompatíveis entre o desejo e a boa conduta, que evitariam sofrimentos posteriores, ou seja, o conflito entre a descarga das excitações libidinais e agressivas e as defesas egoicas da repressão (FREUD, 1893-1895). Mais adiante (1905), ele acrescenta que esses pensamentos diziam respeito aos impulsos sexuais infantis em relação aos seus objetos primordiais de cuidado.

Portanto, dado o seu caráter simbólico, as angústias observadas no "modelo de conversão" apresentado na histeria puderam ser estudadas como distintas daquelas apresentadas nas manifestações corporais provenientes de adoecimentos, que Freud denominou "equivalentes de angústia" (1895).

No caso da angústia da neurose "atual", os sintomas somáticos resultaram das excitações somatossensoriais que não puderam aceder ao aparelho psíquico. Podemos definir esse fenômeno como falha no processo de mentalização, isto é, quando nenhuma representação ou expressão psíquica é produzida. Ou seja, o sintoma orgânico da angústia neurótica, nas neuroses atuais, é a formação direta de uma excitação sensório-motora não mentalizada.

O contato com a literatura da psicossomática nos permite observar que as pesquisas e subsequentes formações teóricas, que sucederam às formulações freudianas, procuraram enfatizar a qualidade das primeiras relações objetais do indivíduo. Por exemplo, as relações de dependência e independência nos casos de adoecimentos alérgicos e do sistema respiratório denunciam angústias de separação. Outros estudos apontam para o trauma da cena primária em relação a fantasias sadomasoquistas e ataques ao corpo. As rejeições inconscientes daquele que exerce a função materna também podem produzir um corpo sobrecarregado no bebê, mas, insistindo na vida, apesar dos ataques do abandono. Podemos reconhecer, nesse campo, as contribuições da escola inglesa, que, a partir de Melanie Klein, expandiu a compreensão dos estados primitivos da mente e acrescentou um lugar de destaque para os elementos protomentais,[4] o que viria a possibilitar um contato mais próximo e profundo com as experiências arcaicas e pré-verbais da mente.

Neste caso, o conceito de fantasia inconsciente se torna importante para pensarmos certos adoecimentos somáticos. Mitrani define as fantasias como processos bastante vivos na mente do bebê, antes que possam ser representadas na forma simbólica ou verbal, e acrescenta ainda que as primeiras fantasias são exibidas no modo "somatossensual", como sensações corporais, e só a partir daí como ação motora.

 

O bebê, num estado de máxima vulnerabilidade e mínima capacidade verbal e motora, emprega a fantasia como um meio de defesa para inibir e controlar seus impulsos instintivos, para a expressão de suas vontades e desejos, bem como para a satisfação destes. O caráter onipotente destas fantasias está diretamente proporcional ao grau com que essa vulnerabilidade é experienciada pelo bebê. À medida que as angústias primitivas aumentam, as fantasias que constituem as táticas pré-históricas de autossobrevivência da infância proliferam, empregando os sentidos, as vísceras e os órgãos do corpo a serviço de serem expressas. (MITRANI, 1993, p. 319 

 

Seguimos na formulação que ela vai desenvolvendo do conceito de mentalização. Em diálogo com Susan Isaacs, Mitrani nos apresenta, primeiramente, a ideia de que, em sua concepção, a conversão histérica é uma manifestação corporal que evidencia fantasias primordiais pré-verbais. Mitrani sugere que, se há "fantasias sem palavras", como evidenciado pela conversão histérica, o equivalente de angústia deve ser considerado como "fantasias sem pensamento".

 

Estas fantasias mais primitivas são mais precisamente denominadas protofantasias, que parecem estar enraizadas na área protomental da experiência (BION, 1977), que são recordadas como "memórias corporais" (FEDERN, 1952) ou "memórias em sentimentos" (KLEIN, 1957). (MITRANI, 1993, p. 320)

 

Mitrani prossegue, enfatizando que as protofantasias primitivas do bebê são determinadas, em parte, pelas próprias fantasias inconscientes da mãe projetadas no psiquismo do bebê, até mesmo antes de seu nascimento. A outra parte, podemos dizer, diz respeito ao que é inato ao indivíduo, "preconcepções"[5] ou aquilo que é herança filogenética. Seria a partir dessas combinações que se formaria o primeiro sentido de self corporal do bebê.

 

As fantasias provenientes da mãe estabelecem o alfabeto a partir do qual o bebê começa a decifrar o significado da experiência de vida - seus primeiros estados sensoriais e afetivos. O modo ou a forma das fantasias da mãe (assim como qualquer deficiência em sua capacidade para elaboração mental) a respeito de seus próprios estados emocionais, assim como os de seus bebês são, neste sentido, passados pela placenta e no seu leite. (MITRANI, 1993, p. 320)

 

É importante destacarmos aqui a inter-relação entre as fantasias da mãe e as fantasias do bebê. A mãe pode estar imbuída da função transformacional relativa às fantasias próprias do seu bebê, como pode estar tomada por seus próprios medos referentes ao que esse bebê representa para ela, além de seus medos e dores anteriores a ele, como a não capacidade de mentalização de suas próprias angústias primitivas. Esses medos não metabolizados são direcionados ao bebê, transformando-o em um ser ameaçador para sua mãe. Desse modo, "rejeitar" as vulnerabilidades do bebê gera por este uma "identificação projetiva hiperbólica". O colapso na capacidade de continência dessa mãe faz com que o bebê, numa busca desenfreada por um objeto que o contenha, não desenvolva a própria capacidade de continência, elaboração e transformação de suas experiências emocionais. "A experiência somatossensorial permanece sem lugar adequado para ser pensada, restando apenas o lugar para evacuação" (MITRANI, 1993, p. 224).

Mitrani acompanha as ideias de Bion (função-alfa), destacando a importância da mãe capaz de desenvolver o potencial para uma continência materna que possibilite o desenvolvimento psique-soma no bebê. Esse potencial para conter as necessidades do bebê envolve a possibilidade de receber e transformar as projeções vindas do psiquismo do bebê - capacidade de reverie - e, na medida e tempo adequados, retornar a ele esse material "purificado" de elementos nocivos à sua formação somatopsíquica. Ou seja, trata-se da possibilidade de doar ao bebê um bom objeto de continência para suas excitações internas. Para tanto, é preciso que a mãe tenha a percepção de seus próprios limites de self, o que implica ela ter sido primeiro sonhada. Será a viabilidade da experiência nesse percurso que criará condições de possibilidade para que o indivíduo adquira a capacidade própria para pensar suas experiências emocionais, investir em sua curiosidade no mundo e construir e sustentar um viver criativo.

 

O processamento das experiências sensoriais brutas do bebê (elementos-beta), primeiro por meio da função mental da mãe e depois por sua própria, resulta em uma diminuição da somatização relacionada aos intensos estados afetivos e ao desenvolvimento das formações simbólicas. (MITRANI, 1993, p. 320)

 

No que tange às deficiências de holding e continência materna, Mitrani ressalta a ideia da mãe que precisa ser suficientemente boa, pensamento desenvolvido pelo psicanalista Donald W. Winnicott para destacar as falhas do ambiente que não propiciam uma continuidade do ser. Winnicott aponta para a importância do mútuo desenvolvimento dos aspectos psíquicos e somáticos, que permanecem em constante entrelaçamento.

A mãe suficientemente boa surge "da mãe devotada comum", e esta, por sua vez, emerge de sua capacidade de adaptação às carências do bebê. A capacidade de adaptação de quem cuida "é tornada possível por seu narcisismo, sua imaginação e suas memórias, que a tornam capaz para conhecer, através da identificação, quais são as necessidades do bebê" (WINNICOTT, 1984, p. 245). Assegurado por essa ambientação, o bebê conseguirá se prover daquilo que lhe faltou, por meio de sua atividade mental. Ele criará uma certa adaptação ao meio, tornando-o um ambiente perfeito, suportável ao ritmo do seu desenvolvimento. Esse processo de origem da mente pode ser despojado de sua cadência natural. As falhas graves do ambiente podem provocar interrupções na "construção em marcha" do ser, ocasionando uma hipertrofia do funcionamento mental.

 

Aqui, no excessivo investimento da função mental em reação a uma maternagem errática, vemos que surge uma oposição entre a mente e o psicossoma, uma vez que em reação a esse ambiente insólito o pensamento do indivíduo começa a assumir o lugar de organizar e cuidar do psicossoma, enquanto na saúde é o ambiente que o faz. Na saúde a mente não usurpa as funções do ambiente, mas permite que ocorra o entendimento e, eventualmente, faz uso de suas falhas relativas. (WINNICOTT, 1984, p. 246)

 

Essa hiperatividade mental sobrepuja a acomodação natural da relação psique-soma. Assim, a mente toma o lugar da psique, formando no indivíduo uma nova configuração, patológica, psique-mente. Segundo Winnicott, esse processo provoca um falso desenvolvimento pessoal e gera-se uma predisposição a uma rápida identificação com os elementos ambientais, que impelem a uma dependência desfavorável ao desenvolvimento psicossomático saudável.

 

O colapso ameaça ou ocorre porque o indivíduo está o tempo todo precisando encontrar alguém que tornará real o seu conceito de "bom ambiente", para que esse indivíduo possa retornar ao estágio do psicossoma dependente, único lugar a partir do qual é possível viver. Neste caso, "não ter uma mente" passa a ser um estado desejado. (WINNICOTT, 1984, p. 247; grifos do autor)

 

Winnicott levanta uma hipótese clínica para os sintomas de certos pacientes, caracterizados por cefaleias, na qual ele estabelece uma relação com o fluxo do desenvolvimento emocional que foi prejudicado pela impossibilidade de estabelecer uma relação entre a psique-mente e o corpo. "Mas a psique-mente é assentada pelo indivíduo, ela é localizada dentro ou fora em uma relação especial com a cabeça, e isso fornece uma importante fonte de pesquisa para dores de cabeça como sintomas" (WINNICOTT, 1984, p. 247).

Entretanto, Winnicott reconhece o valor positivo dos distúrbios somáticos. Continuando as suas formulações, ele chega à conclusão de que o objetivo do adoecimento somático seria uma tentativa de resgatar a psique que estava em posição de refém da mente e devolvê-la ao seu parceiro soma, ajudando-o a dar continuidade ao ser.

Assim, as relações de dependência e independência em relação aos objetos primários poderão ser vivenciadas nas experiências de acolhimento e separação do bebê com seus ambientes; poderão ser vividas de forma tolerável ou não, pois isso vai depender de como a mente da mãe se adapta ao seu bebê, constituindo uma primeira pele. A separação é possível quando o bebê consegue constituir a segunda pele, ou seja, quando ele consegue, dentro do seu próprio ritmo de desenvolvimento, se adaptar às falhas da mãe (MITRANI, 1993).

Mitrani ainda acrescenta que a mãe deprimida tanto pode absorver todo o esplendor do bebê, que acaba de nascer, uma construção em marcha, refletindo de volta elementos de seus "pensamentos impensáveis", como, ao contrário, não conseguir refletir nada.

 

A "morte" de tal mãe é então sentida como que para absorver toda a vitalidade do bebê, sugando ou engolindo suas partes vivas; embora dolorosas, as projeções do bebê ficam sem ressonância e reflexão, levando o bebê a uma experiência de esgotamento e vazio. (MITRANI, 1993, p. 325)

 

Assim, acreditamos que uma mãe devoradora, totalmente oposta à mãe devota de Winnicott, é capaz de provocar uma diminuição das identificações projetivas, importantes para o bebê como meio de comunicação com sua mãe, assim como as introjeções metabolizadas, importantes para a constituição do seu mundo interno. Desse modo, o processo para a instalação da capacidade de uma boa mentalização está rompido.

Todos os processos que descrevemos acima nos fornecem elementos importantes para continuarmos nossas pesquisas no campo da psicossomática, pois o mau desenvolvimento dessas relações primárias acarretará a impossibilidade de mentalização das experiências sensoriais não metabolizadas, que, naturalmente, continuarão se expressando pela via somática.

Mitrani prossegue, chamando a atenção para a importância das formações dos símbolos: "A formação simbólica é o pré-requisito necessário no progresso que vai da evacuação para a capacidade de pensamento (mentation) e do somático para a ação psíquica" (MITRANI, 1993, p. 326).

Como vimos, os conflitos do self nascente com seus primeiros objetos cuidadores provocarão confusões entre as formações de símbolos e o objeto a ser simbolizado.

Mitrani nos diz que:

 

Isso é um problema relevante dos sintomas somáticos em geral, as angústias que não puderam ser trabalhadas por meio do contato com a mãe permanecerão no nível da concretude, talvez encontrando expressão unicamente na esfera somática. De forma extrema essa questão pode ser observada no que se denomina de alexitimia: pessoas para as quais faltam palavras para nomear estados afetivos e expressam tais estados de forma somática. (MITRANI, 1993, p. 327)

 

Assim sendo, ela ainda afirma que, em alguns casos, "os sintomas não são símbolos ou metáforas criadas com o propósito de comunicar o sofrimento, mas são coisas concretas usadas para tapar buracos e lacunas na pele psíquica" (MITRANI, 1993, p. 328). Ou seja, o simbólico permanece igualado ao objeto e não atinge o estatuto de formação simbólica, imprescindível ao processo de uma boa mentalização, capaz de transformar as experiências emocionais, dando um novo sentido a elas.

 

Considerações finais

 

Há muito tempo, o paradigma epistemológico mecanicista de pensar o sujeito foi rompido, se é que um dia isso realmente pôde ser experimentado de forma tão purificada, já que os próprios cientistas, como indivíduos, experimentavam suas paixões e os destinos delas na relação com seus objetos de estudos. O corpo é, no fundo, psicossomático. Cada indivíduo é uma unidade somatopsíquica. Assim, é imprescindível pensarmos nos primórdios dessa composição e em como ela vai se desenvolvendo ao longo de sua existência.

Existir é, antes de tudo, ser capaz de criar caminhos para as pulsões emergidas da organização somática. Penso que essa ideia se insere no conjunto de precedentes que compõem a matéria bruta para o que iremos chamar de formação psíquica, e a necessidade de estruturação por meio do desenvolvimento da capacidade de simbolização das experiências emocionais. Podemos definir esse conjunto como um grande complexo de fenômenos vivenciados nos primórdios da vida psíquica em suas intervivências com seus objetos primários, que irão determinar formas de existir no mundo e, por consequência, seus adoecimentos psicossomáticos.

É preciso reconhecer um movimento de imbricação entre mente e corpo que está além das relações físico-químicas, bem como das classificações das escolas psicanalíticas.

Ter feito contato com um rico e extenso material para a elaboração deste trabalho despertou em mim o desejo de explorar novos caminhos da psicossomática psicanalítica, nas mais variadas vertentes que ela nos oferece.

 

[1] Em coautoria com Josef Breuer.

 [2]  Experiência não mentalizada na etiologia e tratamento da asma psicossomática.

[3] Aqui as teorias freudianas topográfica e estrutural da mente se juntam para ressaltar a importância do pré-consciente e do desenvolvimento e a constituição de um ego fortalecido para garantir um equilíbrio psicossomático.

[4] Noção desenvolvida por Bion para designar os estados primitivos da mente.

[5] Termo utilizado por Bion para nomear a expectativa inata de encontrar o bom objeto.


 


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ano - Nº 3 - 2021
publicação: 20-11-2021
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Autor(es)
• Andreia Rocha de Vasconcellos
Departamento de Psicossomática Psicanalítica do Instituto Sedes Sapientiae
Núcleo de Psicanálise do Serviço de Psicoterapia do Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP- IPq-HCFMUSP Membro Filiado à Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo - SBPSP


 Psicanalista pelo Instituto Sedes Sapientiae e pelo Instituto de Psicanálise da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.
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Referências bibliográficas

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