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Reflexões sobre o Trauma e a Somatização na Sindemia



Epidemias e pandemias são doenças de massa, que ameaçam não apenas a sobrevivência humana, mas também a ordem social e coletiva. Richard Horton, editor da revista The Lancet (2020), publicou um editorial chamando atenção para o fato de que, na Covid-19, duas categorias de doença intercruzam-se: uma síndrome respiratória aguda, Sars-Cov-2, e um grupo de doenças não comunicáveis, associadas à desigualdade a que diferentes grupos sociais estão submetidos na sociedade. A reunião desses dois fatores exacerba a influência das dimensões biopsicossociais nos processos de adoecimento e morte, configurando não uma pandemia, mas uma sindemia.1 

A Covid-19 nos inseriu em uma situação traumática e regressiva em escala mundial. Fomos de uma hora para outra remetidos ao universo do irrepresentável, onde o medo do desconhecido passou a namorar o conhecido não pensado de Bollas (1987). Através de excessos da ordem do traumático nos acostumamos a uma rotina em que predominam excessos: ora pelo aumento do trabalho clínico na modalidade virtual, ora por intermédio de uma inebriante participação em palestras e reuniões on-line, que invadem vorazmente nossas noites e fins de semana. Além disso, fantasias onipotentes de cuidado e suporte psicossocial inflamam o coração de analistas que, diante da miséria que assola o mundo, exploram os alcances e limites dos tratamentos analíticos. Contudo, os excessos da sindemia revelaram alterações no equilíbrio psicossomático das pessoas, que, diante da crise sanitária, experimentam no corpo e no espírito a produção e os efeitos de novas configurações somatopsíquicas (VOLICH, 2010). Ansiedade e angústias variadas revelam o cansaço e, por vezes, prenunciam a síndrome de burnout. Devaneamos então em ilhas desertas, em um mundo sem WhatsApp ou notícias diárias desconcertantes.  

No início da pandemia, as estatísticas relativas à quantidade de óbitos eram assustadoras. Hoje, a experiência traumática diante da contagem dos mortos deu lugar a uma fugidia tristeza, prima-irmã da anomia. Contudo, a psicanálise nos ensinou que, diante da necessidade de evitação da dor psíquica - Seelenschmerz [dor da alma] (FREUD, 1976 [1926]) -, defesas maníacas se instalam na tentativa de barrar ansiedades depressivas diante do medo da morte e da perda do objeto, mas também diante do luto frente às perdas reais (KLEIN, 1996 [1940]). Por vezes não nos damos conta de que, na correria do trabalho duro e do lazer reduzido, oscilamos entre experimentar uma profunda "dor da alma" diante das perdas e do desamparo que a realidade nos impõe e nos deixarmos levar, pela ação das defesas maníacas, para momentos de onipotência e negação da realidade, em que nos arriscamos em encontros potencialmente "fratricidas" nas casas, nos bares e nas praias de tantas cidades.

Após um ano e meio de sindemia, prosseguimos impactados por experiências traumáticas que atravessam e misturam dimensões pessoais, institucionais e sociais, afetando a vida inconsciente de pessoas, grupos e sociedades (HOPPER, 2019). A literatura aponta que, em situações de trauma massivo, ocorre uma interpenetração entre universo pessoal e coletivo, responsável por efeitos psicossociais de longo prazo nas populações (BOHLEBER, 2010). Embora não estejamos vivenciando uma guerra, a situação político-social do Brasil e as informações controvertidas no combate à sindemia aumentam a confusão e o desamparo. Como cidadãos e analistas, oscilamos entre razão e desrazão, típicas do Dr. Simão Bacamarte, personagem de O alienista (2019 [1882]), de Machado de Assis, ou nos surpreendemos com sentimentos de estranhamento e desrealização similares aos experimentados pelo Dr. Rieux em A peste (2017 [1947]), de Camus.

A psicanalista romena Ilany Kogan (1995; 2007), que hoje vive em Israel, reuniu reflexões clínicas sobre o tratamento analítico em momentos em que analista e paciente se encontravam em situações de risco relacionadas a situações de trauma social em seu país. Nesses contextos, ela observou que o interjogo entre realidade externa e realidade interna e seu impacto nas relações de transferência e contratransferência da dupla analítica possibilitam uma espécie de laboratório para o reexame da teoria e da técnica psicanalítica. Os questionamentos de Kogan trazem importantes insights para os tratamentos que hoje realizamos na sindemia.

 

Em um momento em que a guerra e a destruição fazem parte da vida cotidiana e a nossa segurança está cada vez mais ameaçada, uma das perguntas que nós, analistas israelenses, nos fazemos é: qual é o lugar da psicanálise em tal mundo? Munidos de boa-fé, podemos propor a prática da psicanálise em situações de crises crônicas? Podemos, em face dos efeitos do terrorismo, sustentar nossas identidades como psicanalistas? (KOGAN, 2007, p. 177)2

 

As autorreflexões de Kogan sobre a psicanálise e o papel do analista em situações de trauma social apontam para uma atenção redobrada aos aspectos contratransferenciais no trabalho clínico, mas também conduzem, mesmo que inadvertidamente, ao encontro e ao reencontro com aspectos desconhecidos de nossas próprias biografias. Compartilhamos com os pacientes o desamparo e o medo da morte diante do inelutável da experiência traumática da sindemia. Nessas condições, a partir do encontro analítico, somos levados a revisitar momentos primitivos de nossas subjetividades, reativando lutos arcaicos, angústias sem nome, núcleos encapsulados, marcas sem registro psíquico, outrora silenciadas, transmitidas inter e/ou transgeracionalmente (HOPPER, 2019). Defesas e sintomatologias variadas fazem-se presentes no corpo e no espírito, trazendo cansaço e adoecimento, mas também novos questionamentos. Não é à toa que nos sentimos exaustos!

Contudo, não parecem ser apenas a falta de contato físico, a tela plana das sessões on-line e tudo o mais que tanto temos discutido. Os dias repetitivos devido ao confinamento da sindemia têm levado muitos de nós a indagar, ao despertar: Que dia é hoje?  A pergunta, proferida entre o sono e a vigília, nos convida a mais um dia de trabalho clínico virtual. Tal desafio nos remete à citação de Freud na abertura de Interpretação dos sonhos - Flectere si nequeo superos, acheronta movebo! ["Se não posso dobrar os céus, moverei o inferno!"] (1972 [1900], p. xiv) -, pois, diante de tantas limitações, processos inconscientes entram em movimento, adquirindo voz, frente à impossibilidade de dobrar os céus sindêmicos.

Uma viagem do inferno ao céu parece muito longa para quem tem passado os dias em frente do computador. Contudo, acompanhados pelos esforços de Freud nos primórdios da psicanálise e pelas viagens de Kogan às profundezas de seu inconsciente, prosseguimos. Hoje, estamos cientes de que o maior desafio proposto a um psicanalista em tempos de crise parece ser, em alusão às experiências de guerra de Bion (1970 [1961]), a manutenção da capacidade de pensar sob fogo, "think under fire".



1 A noção de sindemia foi cunhada na década de 1990, pelo antropólogo Merrill Singer, que apontou para a interdependência entre pré-disposições, comorbidades e estados sócio-econômico-culturais que concorrem para o aumento da susceptibilidade de pessoas à contaminação e a morte em doenças de massa (HORTON, 2020, p. 874).

2 Tradução da autora.


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ano - Nº 3 - 2021
publicação: 20-11-2021
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Autor(es)
• Carla Penna*
Doutora em psicologia clínica pela PUC-RJ, psicanalista do Círculo Psicanalítico do RJ, membro da Group Analytic Society International. Ex-professora visitante de psicologia médica da FCM/UERJ e ex-presidente da Sociedade de Psicoterapia Analítica de Grupo do Estado do Rio de Janeiro. Publicou em 2014 o livro Inconsciente Social, pela Casa do Psicólogo e publica em 2022, The Crowd: Reflections from_Psychoanalysis and_Group Analysis, London, Routledge.
Email:drcarlapenna@gmail.com


Referências bibliográficas

ASSIS, M. de. (1882). O alienista. Rio de Janeiro: Princeps, 2019.

BION, W. (1961). Experiências com grupos. Rio de Janeiro: Imago, 1970.

BOHLEBER, W. Destructiveness, intersubjectivity and_trauma: The identity crisis of modern Psychoanalysis. London: Karnac, 2010.

BOLLAS, C. A sombra do objeto. Psicanálise do conhecido não pensado. São Paulo: Escuta, 1987.

CAMUS, A. A peste. (1947). Rio de Janeiro: Record, 2017.

FREUD, S. (1900). Interpretação dos sonhos. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1972. vol. IV. p. xiv-360.

FREUD, S. (1926). Inibição, sintoma e angústia. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1976. vol. XX. p. 95-203.

HOPPER, E. "Notes" on the Theory of the fourth basic assumption in the unconscious life of groups and_group-like social systems. Group, v. 43, n. 1, p. 9-17, 2019.

HORTON, R. Offline: Covid-19 is not a pandemic. The Lancet, 396, p. 874, 2020.

KLEIN, M. (1940). O luto e suas relações com os estados maníaco-depressivos. In: KLEIN, M. Amor, culpa, reparação e outros trabalhos 1921-1945. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 387-412.

KOGAN. I. The cry of mute children. London: Free Associations, 1995.

KOGAN, I. Struggles against mourning. New York: Jason Aron, 2007.

VOLICH, R. M. Psicossomática: de Hipócrates à psicanálise. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2010.

 


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