ÁGORA
TEMA

Ninguém está imune



Neste breve ensaio, desenvolvo algumas reflexões com base em minha prática clínica durante a pandemia de covid-19. Ao longo desse período, um tema me assombrou: a imunidade e a fragilidade de nossas defesas. Acompanhei o aumento de manifestações somáticas, descargas no comportamento e o incremento dos quadros de pacientes com doenças autoimunes, o que me levou ao seguinte questionamento: O que de fato sabemos sobre a imunidade?

Imune, no sentido figurado, é aquele que não se deixa atingir. O contrário é o sujeito que se encontra exposto, desprotegido e pode se defrontar com o invisível e o insidioso. A pandemia deixava rastros, restos e vestígios no cotidiano do tempo dos excessos, nas mentes e nos corpos que, marcados pelas desorganizações, denunciavam tanto a falha quanto o uso excessivo das defesas.

Vivíamos dias intermináveis e repetitivos; isso satura, acumula e amedronta. Como no filme Groundhog day [Feitiço do tempo], em que um repórter meteorologista se vê preso em um dia que se repete infinitamente, o Dia da Marmota. Vimo-nos confinados em espaços grandes ou pequenos, pouco importava, pois o confinamento era interno, como se paredes ruíssem por estarmos com nossos excessos, conosco, com o outro, íntimo e tão estranho.

Com os olhos e os ouvidos colados nas mídias e nas telas, acompanhávamos a repetição da tragédia, dos números que se materializavam e se avolumavam em corpos mortos e em olhares exaustos e apavorados. Como tão bem descreveu Ferenczi, em "Reflexões sobre o trauma", "O ‘choque’ é equivalente à aniquilação do sentimento de si, da capacidade de resistir, agir e pensar com vistas à defesa do Si mesmo (Soi)" (2020, p. 125). Vivíamos a ilusão de estarmos seguros quando tudo aconteceu, porém o perigo era real. Pelo efeito do choque, dos excessos pulsionais, não tínhamos a possibilidade de fazer a representação do vivido. Desse modo, os sentimentos de agonia e pavor se alastraram, infiltraram-se, causando rachaduras e fissuras no casco humano. As palavras foram insuficientes. Sabe-se que a palavra gesta uma ideia, que pode ou não se ligar, formando uma cadeia de significados. Além disso, ela é uma tentativa de reter o fluxo, de estabilizá-lo. As palavras estavam naquele momento como as lacunas, os brancos e os vazios. Onde encontrar os sentidos quando o fluxo é interrompido?

O mundo sempre foi uma experiência incongruente, mas, do alto de sua onipotência, o homem achava que sabia. As certezas foram diminuindo. O mundo gritava urgências, enquanto cientistas, pesquisadores e médicos clamavam por tempo. O tempo das experimentações, dos testes e das novas aptidões para lidar com o vírus.

Na clínica havia um movimento intenso, por vezes insano. Lidávamos com marcas recentes, não verbais e inacessíveis, e com outras profundas, reativadas. Eram jorros de falas, silêncios, lágrimas, angústias difusas, irritação, intolerância, distúrbios de sono, agonias, compulsões alimentares ou pelo álcool, pelas dietas e exercícios incansáveis/descargas no comportamento, outros vícios, pensamentos que se repetiam sem saída, pavor do toque, do encontro, o medo da contaminação. "O vírus estava no outro, não em mim." A mente em busca de algum escoamento originava corpos que esperneavam como bebês, quando todas as defesas falharam, quando o ambiente lhes foi hostil. As doenças de pele, quadros de asma adormecidos, alergias, eczemas, escamações aumentaram ou surgiram, novas e pulsantes. As peles estavam tão frágeis quanto a pele esgarçada do mundo.

Escutava dos pacientes as dificuldades e regressões de comportamento que seus filhos estavam apresentando, e eles sentindo-se impotentes, apavorados. O psiquismo não conseguia ser sustento para o enredo traumático com que fomos confrontados; de fato, não havia enredo, a construção da narrativa era feita hora a hora. Havia, sim, a ruptura traumática. Era um tempo de menos interpretações e mais ligações associativas, de nomear para depois representar, pois um caminho fora bruscamente interrompido.

Os pacientes com doenças autoimunes que acompanho tiveram uma exacerbação dos quadros, sem exceção. Faziam exames clínicos, buscando respostas nos dados de laboratório que justificassem a piora. Medidores alterados, corpos em desordem. Voltavam-se para a terapia, inconformados com a revolta do corpo; invadidos pelo ataque externo, viam desfazer-se suas já precárias ou insuficientes defesas.

Algo se repetiu ao longo da pandemia. A vulnerabilidade e a certeza da falibilidade. A noção de que tudo poderia acabar a qualquer segundo e que, apesar de já terem feito tanto, havia uma falta. A falta primordial reaparecia, ganhava cores de Frida Kahlo, estampada a olho nu. Dor. Frida se pintava tentando alinhavar as partes de si, e as pessoas buscavam nos exames algo que lhes garantisse que tudo ia bem com seu corpo.

Eu, durante esse tempo, era tela, não mais em branco, pois estava tingida pelas cores do mesmo drama: angústias, medos, afetos atrapalhados, maior sensibilidade, como se minha própria pele também estivesse esgarçada. O manejo da transferência e contratransferência tornou-se um sensível dedilhar de cordas. Quais eram os novos limites, já que agora, através das telas, podíamos adentrar a casa de nossos pacientes, e eles, a nossa?

Foi necessário desenvolver inventividade, apreender a psicanálise com um novo olhar e o fazer analítico por meio de outros dispositivos, os virtuais. Tornou-se comum conhecer os filhos, que entravam no meio da sessão chamando a mãe, o pai na sala ou batiam na porta do banheiro, onde o paciente se escondia em busca de alguma privacidade. Por vezes, a rua se tornou o abrigo para a sessão de terapia, quando os espaços eram todos invadidos e compartilhados. O setting analítico teve sua moldura alterada; não éramos mais somente paciente e analista. O enquadre precisou ganhar elasticidade no espaço físico e no enquadre interno do analista.

Como analista, senti-me exposta. Vivenciando o mesmo que meus pacientes, muitas vezes, eu sentia minha energia sendo drenada e terminava o dia sem vontade de emitir palavra. Precisava de um tempo, em silêncio ou com a música, antes de voltar ao convívio. Em pouco tempo de pandemia, não precisava escutar mais notícias; a gravidade já estava em mim. Eu, que pratiquei yoga por muitos anos, me vi incapaz de buscar a serenidade dentro de mim; achei curioso quando percebi que a permanência exigida pelas posturas me irritava, meus movimentos precisavam se expandir. Às vezes, não queria que som algum saísse, como se já tivesse oferecido o que podia, talvez além. Descobri que o WhatsApp e as telas nos expunham mais do que protegiam. E notei algo que, em minha opinião, vale ser estudado: com alguns pacientes, a tela funcionava como uma segunda pele, garantindo uma proteção extra. Eles se punham mais à vontade do que nas sessões presenciais; a postura corporal era relaxada, o tom de voz era outro, experimentavam timbres, mutar (silenciar) a tela, aumentar o som até que minha voz gritasse dentro deles. Aproximavam o próprio rosto da tela em direção ao meu, perscrutando-o, como se me vissem pela primeira vez. Em alguns casos, talvez fosse a primeira. Eram tantas e muitas novas experiências de encontro.

Quando um vento diferente soprou, e as vacinas assinalaram uma possibilidade de continuar com a vida, de algum novo modo, a busca pela imunidade, por qual vacina seria a mais eficaz, passou a ser a tônica do momento, e as pessoas sofriam por não serem as primeiras da fila, com medo de morrer na fila, com mais medo de morrer, pois agora havia uma alternativa. Quem merece ser o primeiro? Quem precisa ser protegido? Quem está bem de saúde ou quem está doente? Os idosos, os mais novos, os doentes? Escutei horrores, a razão, os que achavam que tinham razão. Só existia lugar para um, como um corpo para um, um de cada vez, cada um no seu tempo. Sujeitos assombrados pelo que o outro poderia tirar dele ou passar para ele.  

E, quando se alcançou a proteção, os vacinados correram atrás de mais vacina, de mais imunidade. Era a vacina boa, a vacina eficaz, a vacina que possibilita sair. Qual vacina? Quantas vacinas? De que garantias o homem precisa para se sentir imunizado? De que imunidade falamos?

O que parece nos garantir uma imunidade, nossa possibilidade de defesa, está no princípio da vida. No laço. Em mim e no outro.

Estamos na mesma canoa? Tenho para mim que estamos no mesmo mar, porém, cada um na sua canoa!


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ano - Nº 3 - 2021
publicação: 20-11-2021
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Autor(es)
• Daniella Bauer
Departamento de Psicossomática Psicanalítica do Instituto Sedes Sapientiae

 Formada em Psicologia pela Unip. Especialista em Psicologia Clínica pelo Hospital do Servidor Público Estadual de São Paulo. Participante do Centro de Estudos da Relação Mãe-Bebê-Família. Mestre em Escrita Literária pelo Instituto Vera Cruz Especialização em Psicossomática Psicanalítica pelo Instituto Sedes Sapientiae. Membro do Departamento de Psicossomática Psicanalítica do Instituto Sedes Sapientiae.

Referências bibliográficas

AUSTER, Paul. Todos os poemas. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

 

FERENCZI, Sándor. Reflexões sobre o trauma. In: Obras completas: Psicanálise IV.

2. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2020.

 

GROUNDHOG day. Direção: Harold Ramis. Produção: Trevor Albert e Harold Ramis. Los Angeles: Columbia Pictures, 1993. 1 DVD (103 min), widescreen, color.                                                                      


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