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Para Wilma Swarc, por ver a crise como passagem



Em final de janeiro de 2020, eu tive um colapso. O fato é que, pela primeira vez, interrompi por uma semana meus atendimentos e, medicada, fui descansar até que a crise estivesse controlada. A finalização de um livro e seu encaminhamento para publicação, uma filha grávida de 8 meses e uma filha indo viajar pela primeira vez para o exterior sozinha e uma filha perdendo seu cão tão amigo, que a havia acompanhado por 12 anos, foram alguns desencadeantes pessoais. Eu me pergunto se algum sinal, alguma notícia do mundo, a parte antenada do meu inconsciente captou e fez sentir uma angústia real por um perigo de vida que eu estava pressentindo e que não era apenas pessoal. Quando a pandemia chegou, eu já não tomava medicação, mas essa crise abissal foi vital para que eu estivesse preparada para toda a angústia realística que se seguiria para mim e para os analisandos que eu seguia. Minha filha que foi viajar por 10 dias ainda não voltou, mas fez um renascimento na sua vida. Minha neta nasceu em março de 2020, e eu não estava lá para ajudar minha filha, como havia planejado. Iria conhecê-la ao vivo 6 meses depois, no aniversário de 7 anos da outra neta, primeira vez em que saí de casa, ainda sem vacina. Minha filha direcionou seu luto para um lindo trabalho comunitário, em plena pandemia. Deus ri de quem faz planos. Do ponto de vista pessoal, a pandemia tem sido uma análise dos resquícios de minha onipotência materna. Mãe, definitivamente, é muito, mas não é Deus. Analista também é muito, mas justamente porque não é Deus.

Decidi recusar e adiar todos os convites de escrita, fala, participação em lives, etc., que só foram retomados a partir do segundo semestre de 2020. Foi uma sábia decisão. A partir do dia 11 de março de 2020, minha organização pessoal e doméstica sofreu um giro e passei a alternar o trabalho com todas as tarefas domésticas junto com meu marido. O aprendizado foi grande. Aprendi com minhas filhas que não é preciso passar roupa, que a casa pode ficar um pouco menos limpa, e o consumo diminuiu drasticamente. Estou em plena sintonia com as necessidades de mudança urgente e rápida do funcionamento do planeta, que as mudanças climáticas e a possibilidade de escassez dos recursos naturais exigem de cada um de nós.

Do ponto de vista coletivo, lembro-me do meu crescente horror com o número de mortos, primeiro na Europa, de onde tínhamos notícias de meus enteados que moram lá, e depois no Brasil. Lembro-me da dor quando o número de mortos atingiu o de Brumadinho, a tragédia brasileira de 2019. Mal sabia eu que as mortes diárias chegariam a 10 vezes mais esse número. O coração oprimido da tristeza real que atravessava o país, o mundo e todos os analisandos. Engajei-me em contribuir financeiramente e divulgar projetos para minorar a fome e fornecer recursos para o distanciamento social.

Do ponto de vista do autocuidado, retomei a prática de Ashtanga yoga em casa, guiada por um vídeo que meus enteados, professores de yoga, disponibilizaram ao público. Dias depois, o diretor da OMS colocou a prática de yoga e da meditação como um dos caminhos para suportar melhor o lockdown. Retomamos em casa a ingestão diária, em jejum, de suco verde e nos concentramos em fazer uma boa refeição com comida orgânica ao final de todo dia.  Assim, um ritmo e uma rotina foram dando forma aos novos tempos, distanciados dos filhos e amigos, minorados pelo contato virtual frente a um mundo externo ameaçador.

Para minha surpresa, encontrei essas ideias em uma das últimas notas de Ferenczi, de 22/12/1932, em "A disciplina do Yoga":

 

1. Em primeiro lugar, tratar o corpo. Corpo-espírito-universo. Espírito-corpo. Esse é um círculo benigno vicioso.

2. Em seguida, depois simultaneamente, o espírito. Desabituar-se dos maus hábitos. Habituar-se aos bons hábitos do corpo e do espírito.                        

3. Desprazer do corpo suportado. Prazer do corpo aprofundado pela expiração e inspiração e pela posição.

4. Reforço uretral e esfincteriano: desabituar-se das ações musculares debilitantes que negligenciam a autorregulação (contração esfincteriana da uretralidade, relaxamento esfincteriano da analidade. Movimentos intestinais).

5. Como consequência: capacidade aumentada para ações contra o princípio do prazer (suportar a sede, a fome, a dor, suportar os pensamentos, os desejos, as emoções, as ações, recalcados em virtude do desprazer). Anulação do recalcamento. Agravamento, redução, extroversão das reações narcísicas e profundidade da análise. (FERENCZI, 2011, p. 321)  

 

Desde o susto do começo da pandemia, a morte e o respirar passaram a ser os significantes diretores do planeta. E o contato com as necessidades básicas de sobrevivência e com aquilo que era necessário para supri-las passou a vigorar acima de qualquer coisa. Estivemos em meio a uma crise profunda, que fez o mundo parar e sacudir o tempo e, paradoxalmente, ter no distanciamento social e no isolamento o desejo de salvar a vida em si e no outro, uma inclusão inédita do social por meio de uma tecnologia que vem salvando as redes de relação e de trabalho.

Diante da aridez de 600 mil mortos, já, no Brasil, de acordar todos os dias com a certeza de uma desconcertante tragédia em curso e não conseguir ter muita noção do que é isso, este fato impalpável dos mortos do dia, com a certeza de que eles são muitos, aumenta a sensação de cansaço, como se essas mortes acabassem se tornando um bloco do impensável. Torcer para serem menos, e com tudo isso rearranjar o espaço psíquico interno para a vida e o vivo, o cuidado com o corpo e com a alma, as ligações com o dentro e o fora. Sentir conforto para poder confortar, cuidar do outro, cuidar de si mesmo. Repetir o mantra e a reza coletivos - álcool gel, máscara e distanciamento social -, e sair na rua sem acreditar que não podemos mais ver a expressão dos rostos das pessoas e ter que perscrutar as expressões dos olhos. Manter o espaço autopoiético, criativo, vivo e em ligação com os outros, suportar os momentos de inevitável tristeza e escapar da melancolia sem saída a que o clima de destruição incita. Assim tem sido o dia a dia.

No começo da pandemia, eu utilizei muito para mim, para a família e para os analisandos a palavra hibernação. Autorizando a vontade de dormir de pacientes graves, o meu adiamento de qualquer esforço intelectual por alguns meses e os processos regressivos lentificados e lentificadores, que tinham por objetivo preservar a vida e o vivo da vida através da alimentação, da conexão com o corpo e seus processos de cuidado e autocuidado diante do risco da morte biológica e psíquica pelo impacto de um mundo externo que, de repente, se tornou tão hostil. A hibernação é um período de grande reorganização cerebral, um estado de inatividade e de depressão metabólica em animais de sangue quente. Há um encolhimento do sistema nervoso central, que se recupera na saída da hibernação, deixando as memórias intactas, sobretudo as sociais. Durante a hibernação, há uma autofagia e se destrói o que não é necessário à manutenção.

Mas o susto traumático multifacetado que sofremos coletivamente evoca traumatismos pessoais e singulares e necessita de uma narrativa compartilhada, para que os fantasmas do horror traumático possam se tornar apenas um murmúrio de fundo no processo de resiliência que permite retomar algum tipo de desenvolvimento - apesar de todo o traumatismo e das circunstâncias adversas. Há uma reparação de uma ruptura. A pessoa ferida na alma poderá retomar um desenvolvimento emocional, se puder construir paulatinamente um lugar onde a linguagem possa nascer como forma de curar a dor, resguardada, confinada ao segredo, ultrapassando-a. Os registros dos depoimentos de qualquer um dos traumatismos sociais - pandemia, matança pela fome, pela violência sexual, pelo racismo genocida, pelo terrorismo de Estado que silencia pela morte e confinamento - devem ser feitos publicamente. Devem se constituir em monumentos de circulação institucional e política, denunciando esse horror condenável, inaceitável, a ser combatido, falado, debatido, para que cesse o pacto com a violação de qualquer direito da pessoa e com a vergonha de ter sido vítima.

A vida secreta das palavras é a busca incessante através dos fluxos invisíveis do sangue que corre nas veias, na pulsação dos afetos, dos caminhos de Eros; rio que torna possível, entre o silêncio e as palavras, a busca de uma fala que possa anular momentaneamente a dor e a morte, recuperando o sentido de ser e existir. Fala que é sempre em presença de uma escuta que se faz coparticipante da criação de uma narrativa; uma fala que seja nascente de vida compartilhada no entre-dois e, depois, no entre-muitos, na superação possível do traumatismo.


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ano - Nº 3 - 2021
publicação: 20-11-2021
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Autor(es)
• Renata Udler Cromberg 1 
Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae

 Psicanalista. Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. Formada em
Filosofia e Psicologia. Pós-doutora pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP).
Professora convidada do curso de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae e tam+bém do curso de Teoria
Psicanalítica da Coordenadoria Geral de Especialização, Aperfeiçoamento e Extensão da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (COGEAE/PUC-SP). Membro do Grupo Brasileiro de Pesquisas
Sándor Ferenczi. Autora de Paranoia (Artesã, 2012); Cena incestuosa: abuso e violência sexual (Artesã,
2021); e Sabina Spielrein, uma pioneira da psicanálise - obras completas v. 1 e 2 (Blucher, 2021).

Referências bibliográficas

FERENCZI, S. A disciplina do Yoga. In: Obras completas Psicanálise IV. São Paulo: WMF, 2011. p. 321. 


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