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Onde queres fuzil sou passarinho



Escrever este texto me faz pensar a psicossomática psicanalítica sob o prisma de um país que segue às cegas, desorientado e, sobretudo, devorado por um governo desestruturado e desestruturador em suas políticas públicas. A ciência subordinada a falácias, para além da instabilidade política, promove um profundo abismo de desigualdade social. Somos, hoje, um país cindido entre imperativos da economia e da saúde (BIRMAN, 2020). Um país que se utiliza do discurso armado contra a "escória marginal", apoiado no racismo estrutural, na banalização da violência de gênero, na demonização dos LGBTQIA+. Uma nação que mata e mutila seus povos originais, que queima suas florestas e seu cerrado, penso, só pode adoecer silenciosamente (BIRMAN, 2020).

Nesse cenário catastrófico, somos assujeitados por referências ambíguas e perversas; contudo, seguimos, ora cambaleantes, ora deprimidos, ora fortalecidos, agarrados a esperanças frouxas ou, quem sabe, esperanças advindas do verbo esperançar, como dizia Paulo Freire (1987 [1970]; 2021 [1992]). Sentimentos inéditos e confusos atravessam diretamente a atuação clínica, que se revisita e, sobretudo, se refaz em tempos de pandemia (FIGUEIREDO, 2021).

A clínica psicossomática psicanalítica, de acordo com Pierre Marty (1993), é a clínica da dor representada no corpo, lugar da manifestação dos sintomas, consequências da má mentalização - falta de recursos mentais do paciente. É a clínica da estagnação da energia libidinal, que, em algum momento, transborda no funcionamento somático. Pacientes operatórios não fazem ligações com a atividade fantasmagórica, não estabelecem conexões com sonhos, apresentam pouca ou nenhuma intimidade com as palavras ou, comumente, as trocam. Pacientes somáticos caracterizam-se por um modo de funcionamento psíquico distinto daquele apresentado por neuróticos e psicóticos (VOLICH, 2000). São sujeitos que fazem associações focadas exclusivamente na materialidade, isto é, pacientes cuja simbolização é empobrecida, precária diante da vida, podendo apresentar uma falha na dinâmica pulsional.

Nesses quase dois anos de pandemia, penso que nós, pacientes e analistas, fomos duramente afetados pelo inimigo (in)visível, aquele que mata, tira emprego, amigos, comida, trabalho e, fundamentalmente, leva ao desamparo frente à possibilidade de morte. Frente ao imponderável, a angústia do real se sobrepõe ao psiquismo. Os traumas cotidianos, sobretudo a sensação de descontinuidade e de ameaça à integridade do ego, evocam uma imensa variedade de situações perturbadoras. A experiência traumática que acomete milhares de brasileiros, diante da perda concreta ou fantasmagórica, é representada pela angústia indizível, ao mesmo tempo que exige um trabalho interno exaustivo para que se adapte ao novo.

Se, por um lado, há um alto grau de investimento libidinal exigido para a conciliação das pulsões de vida e morte, sobrevivência psíquica, por outro, segundo Volich (2000), a desorganização somática segue na contramão da descarga das excitações da direção evolutiva: orgânica, motora e de pensamento. Diante de uma situação traumática, um indivíduo com melhor metalização apresentará recursos internos mais elaborados, podendo, possivelmente, desenvolver patologias de ordem mental, enquanto um indivíduo cujo funcionamento mental é mais precário estará mais vulnerável a desenvolver disfunções somáticas.   

Em tempos de pandemia, somos expostos ao excesso. A energia libidinal do objeto recai sobre o ego, identificando-se com ele. O ego fusionado ao objeto perdido passa a ser alvo de ataque, o martírio de si mesmo, tornando-se seu próprio algoz, em um jogo complexo em que a libido retirada do objeto é devolvida maciçamente a ele. No entanto, sem ser utilizada, ela fica livre e, sem ser nomeada, instala-se como uma sombra no ego.

Estados melancólicos podem durar por anos, caracterizando-se pela extrema autocrítica, baixa autoestima, culpabilização de si mesmo; assim, o ego, fragilizado e empobrecido, tende à autodestruição. Diante da catástrofe pandêmica que vivemos, somada ao descaso político sanitário, penso que um dos impactos da pandemia na saúde mental do povo brasileiro poderia ser uma futura geração de melancólicos.

Por outro lado, lembro a importância do luto, que, para Freud (1974 [1915]) evoca o trabalho de elaboração, lugar em que o objeto amado é perdido, mas não se mistura com o ego. O sofrimento é destinado ao mundo externo, e, desta maneira, o ego é protegido, havendo um contorno definido entre o eu e o outro. A elaboração do luto prevê a reorganização psíquica, a ressignificação da perda do outro amado, ou seja, o sujeito simboliza e dá sentido ao episódio. 

Contudo, a força da dimensão pulsional frente a uma situação de trauma não encontra caminhos para traduzir a experiência, portanto, não há elaboração, não há representação da dor (VOLICH, 2000). A função transformadora da simbolização se esvazia de sua capacidade associativa viva e circulante, e, dessa maneira, nos aproximamos de lugares mais arcaicos de nossas experiências. 

Pacientes e analistas, afetados pelo inominável, em algum momento experimentam o trauma, aproximando-se de um estado de pobreza mental, sem registro, sem tradução. Ao cairmos no vazio, sem o alcance da linguagem, sem sentido ou identificação, passeamos por lugares que nos chamam a revisitar experiências sombrias da infância e adolescência, aquelas sufocadas, que não foram representadas psiquicamente. Deslizamos para estados mais primitivos, em uma espécie de movimento contraevolutivo, chamado de regressão, e, na tentativa de sobreviver, nos agarramos a cicatrizes deixadas ao longo da vida (VOLICH, 2000 e 2016).

Sobreviveremos? 

Sim, sobreviveremos à desorganizada e desorganizadora pandemia, à privação de liberdade, ao transbordamento do excesso de realidade, à cegueira momentânea, ao medo e ao desamparo.  

A clínica na pandemia convoca analista e analisando a se despirem de antigas couraças e se jogarem em inéditas situações, como trapezistas sem rede de proteção. A relação transferencial, protegida pelo setting, agora é mediada pela tela, que determina o caminhar da sessão, apagando-se ou emudecendo quando bem entende. As sessões passam a depender dos caprichos das empresas de telecomunicações, que, imperativamente, respondem por nossas vidas. A relação paciente-terapeuta convoca outros lugares, espaços diferentes de trabalho, exigindo grande esforço para garantir o sigilo, a constância e o conforto (FIGUEIREDO, 2021).

Alguns pacientes, diante da falta de privacidade em suas casas, passaram a fazer sessões em cenários inusitados: banheiro, garagem, cozinha, dentro do carro. Uma nova realidade no enquadre vai para além de um grau de intimidade cujo manejo pede uma profunda delicadeza, cuidado e respeito. Marteladas de reformas de vizinhos, choros de bebês, a presença de crianças, pais, avós, sons de telefones, inesperadamente, invadem a sessão, interrompendo o curso do sonho, do jogo alucinatório, da criação, da simbolização, da atenção flutuante.

O manejo clínico agora implica reconhecer novas relações no enquadre, sem perder de vista a sutileza da observação dos sinais corpóreos, sensoriais, mnêmicos do paciente, assim como ele responde ao espelhamento. A relação transferencial, que, tradicionalmente, passa pela circulação do intrapsíquico e intersubjetivo na relação entre analista e paciente, convoca o analista, cada vez mais, para um olhar crítico e questionador de si mesmo e do mundo. Uma outra experiência emocional e uma nova representação do sentido convidam analista e analisando para uma inédita costura nos buracos da simbolização, na busca de outras possíveis associações. O enquadre interno do analista, nesses tempos, funciona como uma espécie de farol sinalizador, orientador do vínculo transferencial, atento à medida necessária de aproximação ou afastamento; à distância no manejo clínico, ora mais frouxo, ora apertado. 

Penso, finalmente, que a clínica em tempos de pandemia significa, fundamentalmente, o engajamento político do analista, sensível, atento às transformações sociais e implicado nelas. O analista, flexível às mudanças, se dispõe a sair do sossego de suas antigas certezas, tornando-se, assim, um pouco artista, palhaço, passarinho, ponte de sua criatividade, a simbolização do paciente. 


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ano - Nº 3 - 2021
publicação: 20-11-2021
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Autor(es)
• Helena Marques
Departamento de Psicossomática Psicanalítica do Instituto Sedes Sapientiae


Assistente Social, Psicóloga e Psicanalista. Terapeuta de família e casais pela PUC SP. Sexóloga pela FMUSP. Especialista em Psicossomática Psicanalítica pelo Instituto Sedes Sapientiae. Membro do departamento de psicossomática do Instituto Sedes Sapientiae. E-mail:helenaamarquespsi@gmail.com

Referências bibliográficas

BIRMAN, J. O trauma na pandemia do coronavírus. Suas dimensões políticas, sociais, econômicas, culturais, éticas e científicas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2020.

FIGUEIREDO, L. C. A mente do analista. São Paulo: Escuta, 2021.

FREIRE, P. (1970). Pedagogia do oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

FREIRE, P. (1992). Pedagogia da esperança. 28. ed. São Paulo/Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2021.

FREUD, S. (1915). Luto e melancolia. Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1974. v. XIV.

MARTY, P. A psicossomática do adulto. Porto Alegre: Artes Médicas, 1993.

VOLICH, R. M. Psicossomática: de Hipócrates à Psicanálise. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2000.

VOLICH, R. M. Psicossomática. Clínica psicanalítica. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2016.

 


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