ARTIGOS

Relações inter-raciais no campus: Desconstruindo Pactos Denegativos


Race relations on campus: Deconstructing Negative Pacts
Anne Egídio
Maria Aparecida Miranda

RESUMO
As ações afirmativas reparatórias, entre elas as cotas raciais, fizeram com que uma parcela da população (negros, indígenas, alunos de escolas públicas), até então alijada de espaços universitários, começasse a circular por eles. O convívio dessa população com aqueles que habitualmente circulam por esses espaços universitários tem revelado uma face, até então pouco explícita, de tensões presentes na sociedade brasileira, que sempre se viu com os olhos da democracia racial. A presença dos alunos negros e indígenas nas universidades públicas ou naquelas consideradas de ponta tem nos brindado com situações de racismo em vários momentos. Acompanhando direta e indiretamente situações de racismo em algumas universidades, que culminaram em suicídios e tentativas de suicídio de alunos negros, nos demos conta de que algo precisaria ser feito. Assim, inserimo-nos em um programa de uma universidade pública em São Paulo, onde vimos uma oportunidade de abordar as relações raciais no campus universitário. Como método de trabalho foram realizados encontros, por meio de rodas de conversa, com um grupo de estudantes formado por alunos de diferentes graduações, e este grupo, em particular, foi composto por futuros profissionais das áreas de saúde, majoritariamente, por estudantes de Medicina, mas também de Fonoaudiologia e Biomedicina. O objetivo da roda de conversa era propiciar um lugar para falar, pensar, refletir, elaborar, ressignificar e agir, criando um espaço psíquico em que a solidão e o silenciamento perdessem terreno a cada encontro. Este artigo tem como objetivo apresentar um trabalho realizado entre 2017 e 2019 e trazer alguns questionamentos sobre o racismo no Brasil. Mais especificamente, o racismo no espaço universitário, que, como lugar de saber e supostos saberes, expõe e reproduz diversas e diferentes relações de assimetrias, dentre elas as relações inter-raciais. No plano individual, uma preocupação das autoras era o efeito do racismo no equilíbrio psicossomático dos alunos que foram, em alguma medida, encaminhados para atendimentos psicoterápicos. O presente artigo realiza ainda um paralelo com o filme M8, A vida socorre a morte, por tratar de uma realidade muito semelhante àquela vivenciada pelos alunos que frequentaram as rodas de conversa.

Palavras-chave: Racismo, Psicossomática, Cotas, Grupo, Objeto Mediador.

ABSTRACT
Affirmative reparative action, including racial quotas, has allowed a segment of the population (black people, indigenous people, public school students) previously excluded from university spaces to move within them. These encounters have revealed a previously unexplained face of the tensions in Brazilian society, which has always been seen through the eyes of racial democracy. The presence of these students in public universities or in those considered top universities has confronted us at different times with situations of racism. Faced with direct and indirect situations of racism at some universities, culminating in suicides and suicide attempts by black students, we realized that something had to be done. So, we joined a program at a public university in São Paulo that aims, among other things, to study the effects of racism on physical and mental health. We saw this as an opportunity to approach race relations on campus. The group of students is made up of students from different degree programes and this group was particularly made up of future health professionals. It was mainly made up of medical students, but speech therapy and biomedical students were also represented. To provide a place to talk, think, reflect, elaborate, reframe and act, to create a psychic space where loneliness and silencing lose space at each meeting. The group unit, with a weekly frequency of one hour, coordinated by two psychoanalysts and a trainee, sometimes uses photographs as mediating objects, helping the naming of affects and sometimes allaying fears. The group was a space that encourage encounters, the formation of alliances and the elaboration of strategies for confronting racism inside and outside the university.

Keywords: Racism, Psychosomatics, Quotas, Group, Mediating Object.


Introdução



A cultura brasileira é soterrada por camadas da colonização e da escravatura. Camadas de uma espessura tão grande que cobrem nosso tecido social até os dias de hoje, de certo modo estruturando o racismo à brasileira. No dizer de Rosane Borges, no prefácio do livro O racismo e o negro no Brasil: questões para a psicanálise, trata-se de "camadas sedimentadas que solidificam estruturas e nos acomodam a formas de existências por vezes tidas como insuscetíveis de questionamentos e tensões" (BORGES, 2017, p. 8).

Quando falamos de racismo no Brasil, podemos falar de racismo individual, institucional e estrutural, segundo Silvio Luiz de Almeida: "O racismo como processo social e político cria as condições sociais para que direta ou indiretamente grupos racialmente identificados sejam discriminados de forma sistemática" (ALMEIDA, 2020).

As ações afirmativas reparatórias, entre elas as cotas raciais, vêm fazendo com que uma parcela da população (negros, indígenas, alunos de escolas públicas), até então excluída de espaços universitários, comece a circular por eles.

Esses encontros têm revelado uma face até então pouco explícita das tensões presentes na sociedade brasileira, que sempre se viu com os olhos da democracia racial, do país miscigenado, da harmonia social. Um país "abençoado por Deus e bonito por natureza".

Ao ingressar em uma universidade em busca da consolidação de uma escolha profissional, os jovens adentram esse espaço cada um com sua história individual, com suas subjetividades, a partir da vivência de cada um em seus respectivos meios (família, religião, valores éticos e morais), que foram internalizados ao longo de suas vidas.

Assim como cada um desses sujeitos, a universidade também é permeada por sua história, missão, valores e crenças, necessitando, portanto, de uma adaptação por parte desses alunos, que terão de lidar com as características ali existentes, independentemente de suas vontades (ABUD, 2011, p. 8).

A presença de alunos negros, indígenas e pobres nas universidades públicas ou naquelas consideradas de ponta tem nos brindado com situações de racismo e discriminação racial em vários momentos, como cenas de pichações em banheiros ou muros de campi universitários, publicadas em redes sociais com enunciados explicitamente racistas. Isso nos levou a buscar em René Kaës (2011) uma possibilidade de pensar, metapsicologicamente, a questão do racismo estrutural, que, ao nosso ver, se aproxima do conceito de "aliança ou alianças" inconsciente(s).

 

Chamei de aliança inconsciente uma formação psíquica intersubjetiva construída pelos sujeitos de um vínculo para reforçar em cada um deles e estabelecer, na base de seus vínculos, os investimentos narcísicos e objetais de que eles têm necessidade, os processos, as funções e as estruturas psíquicas que lhes são necessários e que resultaram do recalque ou da denegação, da rejeição e da desautorização. A aliança se forma de tal modo que o vínculo assume para cada um desses sujeitos um valor psíquico decisivo. O conjunto assim ligado (o grupo, a família, o casal) deriva sua realidade psíquica das alianças, dos contratos e pactos que esses sujeitos estabelecem e que seu lugar no conjunto os obriga a manter. As alianças inconscientes se inscrevem de maneira fundamental na formação psíquica do vínculo intersubjetivo, são o cimento da matéria psíquica que nos liga: elas produzem efeitos além dos sujeitos, das circunstâncias, constituem o agente e a matéria de transmissão da vida psíquica entre gerações e entre contemporâneos. O conceito de aliança fornece um conteúdo preciso para qualificar a lógica do vínculo: "não há um sem o outro, e sem o vínculo que os une e contém". (KAËS, 2011, p. 198-199)

 

Kaës nos conta que as alianças inconscientes "são conservadoras", e mais, que "ela permite que sejam identificados os excluídos: eles estão fora da aliança, da comunidade, do grupo. Ela é então um princípio da discriminação" (KAËS, 2014, p. 14).

Falas como: "fora professor macaco!"; "voltem para a África"; "negros o lugar de vocês não é aqui", dentre outras tantas que circulavam e circulam, ainda, nas redes sociais, apontam para o que René Kaës denominou como uma das três categorias de aliança inconsciente, o pacto denegativo:

 

É uma metadefesa baseada em mecanismos como recalque, denegação, rejeição, etc. é necessário a formação do vínculo e cria neste o não significável, não transformável, zonas de silêncio, bolsas de intoxicação que mantêm os sujeitos de um vínculo estranhos a sua própria história e à história dos outros. As alianças inconscientes são um ponto de ligação entre estruturas intersubjetivas inconscientes de um grupo e estruturas individuais, uma vez que construídas grupalmente associam-se a formações e processos inconscientes já estabelecidos em cada um dos sujeitos. (KAËS, 2011)

 

O artigo "O trabalho do negativo e a transmissão psíquica", de Garcia e Penna (2010), com suas referências a alguns autores que tratam desses conceitos (Green, Kaës, Aulagnier, Guillaun, Missenard e Laplanche), auxiliou-nos, nesse momento, a pensarmos sobre o pacto denegativo e como este aparece nas relações intersubjetivas e inter-raciais no campus universitário. Para as autoras,

 

[...] a negatividade descrita por Kaës designa aquilo que, dentro do espaço psíquico, tem o estatuto do que não está, que não é, deixando-se representar pelas figuras do branco, do desconhecido, do vazio, da ausência e do não ser. Refere-se então à categoria do impossível, do que não está no espaço psíquico. Em última instância designa algo que não está ligado e que continua sendo não ligado de uma forma irredutível. A ideia de negatividade radical implica o ataque a qualquer tipo de vínculo." (GARCIA e PENNA, 2010, p. 76)

 

Assim, por pacto denegativo compreende-se um tipo de aliança inconsciente que se impõe entre os laços intersubjetivos e se relaciona com o negativo em suas várias formas. Está presente no núcleo da origem e do fundamento da família, do grupo social, das leis e do sujeito singular (TRACHTEMBERG, 2005).

Acompanhando direta e indiretamente situações de racismo em algumas universidades, que culminaram em suicídios e tentativas de suicídio de alunos negros, nos demos conta de que algo precisaria ser feito.

Este artigo tem como objetivo apresentar um trabalho realizado entre 2017 e 2019 e trazer alguns questionamentos sobre o racismo no Brasil. Mais especificamente, o racismo no espaço universitário, que, como lugar de saber e supostos saberes, expõe e reproduz diversas e diferentes relações de assimetrias, dentre elas as relações inter-raciais. No plano individual, uma preocupação das autoras era o efeito do racismo no equilíbrio psicossomático dos alunos.

O presente artigo estabeleceu ainda um paralelo com o filme M8, A vida socorre a morte, por tratar de uma realidade muito semelhante àquela vivenciada pelos alunos que frequentaram as rodas de conversa.



Rodas de conversa

 

Em 2017, inserimo-nos em um programa de uma universidade pública de São Paulo que teria como um de seus objetivos pesquisar os efeitos do racismo na saúde física e mental, no equilíbrio psicossomático dos alunos. Vimos aí uma oportunidade de abordarmos as relações inter-raciais no campus universitário.

Porém, mesmo entre nós, enquanto equipe, não se tratou de uma conversa fácil, uma vez que o silenciamento nos atingia, explicitando o quanto o pacto denegativo nos atravessava a todos. Após alguns debates, foi possível iniciar um trabalho junto aos alunos, futuros profissionais negros em áreas até então consideradas inacessíveis a eles como a Medicina.

Optamos por um dispositivo grupal, a roda de conversa, que foi construído visando a escuta de como se dariam as relações inter-raciais no campus, se haveria ou não tensões em decorrência do acesso às universidades públicas de alunos afrodescendentes, a priori, e também para entender e garantir suas permanências no campus, auxiliando-os a pensar os atravessamentos de uma cultura que os tem mantido fora das universidades. As rodas de conversa não tinham a pretensão de ser psicoterapêuticas, ainda que isso pudesse acontecer enquanto efeito colateral.

Com isto em mente, observamos em Kaës (2011, p. 69) as características morfológicas do grupo, notadamente o face a face, por ser uma disposição que

 

mobiliza as modalidades de comunicação não verbal e os investimentos do olhar encontram no espaço do grupo uma cena privilegiada para os jogos especulares das identificações, a necessidade de dizer, a respeito do que se passa aqui e agora na cena do grupo, abre caminho para as representações de palavras e para a fala proferida e ouvida. (KAËS, 2011, p. 71)

 

Em função da dinâmica do campus, pensamos em um grupo aberto, a priori, multirracial, com um encontro semanal, no horário do almoço, visando contemplar um número maior de estudantes. O panfleto de divulgação continha o chamamento ou convite para a roda de conversa sobre relações inter-raciais, o dia da semana, o horário, o local e o nome das coordenadoras (duas psicanalistas e uma estagiária de Psicologia). O convite foi feito a todos os alunos do campus. O trabalho era semanalmente supervisionado.

Outro recurso utilizado em nossa metodologia foi a Fotolinguagem como objeto mediador, usado de forma pontual, em momentos que o grupo trazia conteúdos de muita violência e muita dor. Como coordenadoras do grupo, também vivemos cotidianamente a violência sofrida pelos alunos, que, por muitas vezes, nos deixavam sem palavras. A Fotolinguagem é um método que tem como características: fazer circular a fala, propiciar um apoio figurativo paras pulsões violentas, além de auxiliar na simbolização dos afetos, dentre outras funções (ABUD, 2014). De forma que esse método nos ajudou a atravessar períodos de maior turbulência emocional do grupo.


Rompendo o silêncio

 

O grupo se iniciou no segundo semestre de 2017. Conforme descrito alhures, a proposta-convite para a Roda de Conversa foi dirigida para todos os alunos da universidade, no entanto, apenas alunos/alunas negros e negras atenderam ao chamado.

A configuração era de maioria de alunos pretos e pardos (somente em duas ocasiões, participaram do grupo alunos orientais e indígena), maioria de mulheres e nem todos eram cotistas. Tratava-se de futuros profissionais negros da área de saúde tais como fonoaudiólogos e médicos, dentre outras.

Durante os encontros muitas falas atestaram o impacto do racismo na vida de alguns dos alunos presentes nos encontros, conforme constam a seguir:

"vim porque é um assunto que não se costuma falar por aqui. Só daquela vez que veio aquele professor negro, convidado"; "...nossa!! foi muito bom ...foi da hora!"; "nunca houve no campus um espaço para discutir isso"; "meu receio é que fique cheio de brancos e a gente continue minoria" e "eu não vejo problema na participação de outras pessoas, mas tem isso, a gente ter que escutar coisas do tipo: ‘olha como eu não sou racista!’" ... "no dia da competição chamaram a gente de macacos" ... "perdemos a competição e colocaram a culpa nas cotas"

"Acho bom para que eles saibam como a gente se sente... de que não gosto que fiquem pegando no meu cabelo"; "Quando a gente tá nos espaços que tem mais negros, a gente se sente bem, se sente acolhida, é tão bom"; "Talvez fosse o caso de deixar só a gente, deixar o grupo crescer primeiro para depois pensar em abrir"

"Me dá um sentimento de insegurança"; "Quando saiu o resultado que eu tinha passado, nem consegui ficar alegre... não consegui comemorar até hoje"; "Me disseram que era só eu arrumar o cabelo que eles nem iam perceber que eu era negra, por causa da cor da minha pele"; "Um professor falou em aula que era contra as cotas, nos sentimos humilhados"; "Penso em parar a faculdade, não me sinto pertencente"; "Passo muitas horas na condução para vir e voltar de casa, não tenho tempo para estudar"

O espaço se mostrou muito potente na promoção e prevenção da saúde mental desses estudantes. Eles mencionaram que as discussões os faziam rever suas histórias, desnaturalizando processos de opressões por eles vividos e sentidos, porém não reconhecidos como tal. Relataram, ainda, a naturalização de fatos e acontecimentos que sempre os acompanharam, mas que, quando postos em circulação através da fala e da escuta, têm sido desnaturalizados e reconhecidos como sofrimento decorrente da opressão racial vivenciada e silenciada.

Teve, também, a função de romper com o silenciamento do sofrimento racial, muito pouco debatido nas universidades até então e, em casa, muitas vezes silenciado. Este silêncio em casa foi pensado como sendo uma estratégia de atenuar a tensão racial que circunda os relacionamentos inter-raciais.

Os alunos traziam para as rodas, com muita frequência, músicas relacionadas com o tema do racismo, como Strange fruit, de Billie Holiday; o videoclipe de Rincon Sapiência, A Volta pra Casa; e filmes como Doze anos de escravidão; Vidas cruzadas e Selma.

Quando o tema sobre o não pertencimento ao campus ficou muito intenso, a ponto de alguns alunos questionarem se continuariam o curso, usamos o método de Fotolinguagem para facilitar a elaboração dessa tensão. Nessa fase do grupo, notou-se, principalmente, a influência dos impactos emocionais do racismo no discurso de alguns participantes, que foram, em alguma medida, encaminhados para atendimentos psicoterápicos. Não notamos desorganização psicossomática nos alunos, que não apresentaram doenças físicas. Do ponto de vista psíquico, eles mostravam-se desmotivados, deprimidos, sem desejo de continuar o curso. No geral, tinham um sentimento de não pertencimento ao campus e ao curso, um sentimento de exclusão.

O grupo respondeu de forma satisfatória às intervenções no sentido de poder nomear sentimentos e simbolizar questões difíceis e costumeiramente não levadas em conta no dia a dia no campus. Este trabalho, no entanto, levou-nos a algumas observações, questionamentos e inquietações.


Discussão

 

À época, deixamos de lado alguns questionamentos que têm como função abrir, provocar e ampliar o debate e as reflexões apresentadas. Hoje temos algumas hipóteses não para tentar justificá-las, mas descrever alguns episódios que começaram a compor a malha social, produzindo um efeito mínimo de uma pequena tensão no pacto narcísico da branquitude.

Este termo foi cunhado por Maria Aparecida Bento (BENTO, 2020), e pode ser definido como um pacto entre iguais, não verbalizado e que assegura aos brancos lugares mais qualificados. Interfere na forma jurídica, na aplicação das leis, fazendo com que brancos tenham penas menos rígidas do que os negros; interfere nos processos seletivos, em que brancos têm maior oportunidade de serem selecionados, através de uma percepção de maior confiança entre brancos, consequência de um imaginário construído ao longo dos séculos de que o branco é o ser humano de referência.

Retomando Kaës, os sujeitos se identificam entre si e com um objeto comum e "põem-se de acordo entre si através de trocas prévias ou paralelas a essas identificações, com concordâncias que se produzem ao mesmo tempo ou à margem da palavra" (KAËS, 2014, p. 13). Podemos notar o quanto os alunos foram atravessados por isso, por exemplo, ao não se sentirem pertencentes ao espaço da universidade, por se sentirem humilhados pelos comentários como o do professor que se dizia contra as cotas, ou de seus colegas nas competições esportivas, ao serem chamados de macacos, o "isso" que se produz, sobretudo, à margem da palavra.

Neste sentido, consideramos que Kaës e Bento dialogam com Grada Kilomba (2019) e Bell Hooks (1989), ao apontar "um fora" ou "à margem", lembrando que Kaës (2014) diz, textualmente, que há um "à margem da palavra" nos acordos atravessados pelas alianças inconscientes. O trabalho com os estudantes da área de saúde é, portanto, uma possibilidade de travessia de um grupo de jovens estudantes, cotistas em sua maioria, que, marcados pelo estigma contido no significante negro, se percebiam "à margem da palavra". Um não dito tão estrondoso que produzia, no grupo e em cada sujeito que dele fazia parte, sofrimentos psíquicos que, semanalmente, eram trabalhados e depositados nos objetos mediadores e no grupo, para que se pudesse produzir simbolização. E, mais ainda, auxiliá-los no processo do desfazimento ou afrouxamento do teor contido no pacto denegativo, de modo a pensar juntamente com os sujeitos do grupo movimentos de adesão, pertencimento, autorização e legitimação de suas escolhas de seguir no processo de formação, fosse de médica/o, fonoaudióloga/o, biomédica/o ou o que mais eles desejassem ser.

A fala dos alunos era de que as pessoas, em geral, não se dizem racistas ou de que este tema não falado e assumido abertamente na sociedade implica uma questão de saúde mental essencial. Ao não nos assumirmos como sociedade racista, ao não reconhecermos a discriminação contra negros, não legitimamos esse sentimento dos alunos de serem discriminados, de não pertencimento. Desautorizamos, assim, para utilizar um verbete ferencziano, sua percepção de ser discriminado, deixando-os em dúvida se aquilo que percebem é realidade ou não. Está assim traçado um rápido e fácil caminho de enlouquecimento. Como diz Ferenczi (1992 [1933]), sobre as crianças que sofrem abuso sexual, os pais dizerem "isso não é nada" ou "não aconteceu nada" pode ser mais traumático do que o trauma em si. Neste sentido, as rodas de conversa legitimaram a percepção dos alunos, como um testemunho que favorece a sua elaboração.

Notamos em alguns alunos um sofrimento psíquico muito intenso, que as rodas de conversa não dariam conta de elaborar. Realizamos, com esses alunos, encaminhamentos para profissionais da psiquiatria ou psicologia.

 

A arte imita a vida

 

O filme M8 - Quando a morte socorre a vida, do diretor Jeferson De (Bróder), exemplifica o modo de funcionamento do pacto denegativo, apresentado através da perspectiva do personagem Maurício, um jovem negro da periferia do Rio de Janeiro que ingressa na faculdade de Medicina através das cotas. Na trama, o garoto é filho de uma mãe solo, que não mede esforços para que ele tenha uma vida bem-sucedida, mesmo com todos os obstáculos que a vida lhe trouxe. Maurício começará a ter sonhos e alucinações com o cadáver M8, que não tem outra identificação a não ser uma letra e um número e fica disponível para estudo na aula de anatomia.

Por ser um jovem negro, ele tem dificuldade para se encontrar no novo espaço, que está dominado por pessoas brancas e ricas. Nesse lugar, ele tem que lidar com o racismo diário, na maioria das vezes, praticado apenas por olhares. Incomodado em ver em sua aula corpos pretos nas mesas de estudo, Maurício corre atrás de saber o que aconteceu para que tantos corpos pretos chegassem até o local. A partir desse momento, não só questiona sobre os corpos mortos, mas também sobre o seu próprio corpo, estando em um ambiente que o oprime.

Na trama, Mauricio segue uma trajetória institucional solitária. Essa solidão é rompida fora da instituição universitária, ao encontrar mães, em sua grande maioria mulheres negras, que procuram por seus filhos desaparecidos.

O filme dialoga com a experiência que tivemos na roda de conversa, sobre o esforço dos estudantes de não se identificarem com o não lugar e permitirem a possibilidade de se autorizar a pertencer ao campus.

Essa identificação com o não lugar, com o negativo, lembra uma passagem de Garcia e Penna (2010). As autoras conceituam acerca do negativo, com base na observação de que Winnicott não chegou a discutir essa questão, mas que ela pode ser deduzida exemplarmente da definição de objeto transicional enquanto uma possessão do não eu. As autoras afirmam que o aspecto do negativo:

 

Também aparece claramente no caso clínico apresentado na segunda versão de Objetos e Fenômenos Transicionais de 1971 publicada em O Brincar e a Realidade (1971). A paciente - que também foi atendida por Green anos mais tarde - vítima de separações traumáticas e experiências desorganizadoras revela o lado negativo de suas relações quando se evidencia que nela somente o negativo é real ao afirmar: "Tudo o que consegui é aquilo que não consegui" (WINNICOTT, 1971, p. 42) que Winnicott (1971) comenta dizendo: "Temos aqui uma tentativa desesperada de transformar a negativa numa última defesa contra o fim de tudo. O negativo é o único positivo" (p. 42). (GARCIA E PENNA, 2010, p. 70)



Considerações finais

 

No presente artigo, buscamos traçar um paralelo entre o filme mencionado acima e o trabalho desenvolvido na universidade pública em São Paulo. Onde estão os corpos negros nessas instituições de ensino? Como objeto de estudo nas aulas de anatomia? Corpos negros que carregam outros corpos negros (funcionários do campus, enfermeiros, assistentes de enfermagem, agentes funerários, coveiros)? Nesses espaços de formação, seria o negativo o único positivo?

Maurício identifica-se mais com os corpos negros sem vida, peça para estudo, do que com seus colegas de curso, que também não se identificam com ele ou pensam que aquele não é o seu lugar. Um "colega" lhe diz em uma aula de anatomia, enquanto ele manipula um corpo: "você dará um bom açougueiro", ou quando é abordado por dois policiais, que, sem questionar, o repreendem brutalmente simplesmente por ser negro e estar caminhando em um bairro da elite. Situações muito semelhantes às descritas pelos alunos nas rodas de conversa, que mostram o que Kaës denominou como "pacto denegativo". Diversas falas e cenas que exemplificam o que ocorre todos os dias no Brasil; algumas situações são sutis, e outras, explícitas. O racismo estrutural ou sistemático presente tanto nas falas dos alunos quanto no filme, atitudes hediondas marcam e constrangem a vida dessas pessoas.

Diferentemente do que acontece no filme, em que o protagonista se mantém solitário, os estudantes com os quais trabalhamos buscaram formas de rompimento deste silêncio-silenciamento-isolamento com a criação de um Coletivo de Estudantes Negros. Organizaram duas semanas de recepção de calouros (2018 e 2019), com a apresentação de uma peça de temática racial em um dos principais auditórios da universidade, seguida de rodas de conversa para elaboração e reflexão, coordenadas pelos estudantes do Coletivo. Colocaram-se aí como protagonistas, no entanto, manifestaram medo e ansiedade ao assumir este lugar, este espaço, o positivo. As falas anunciam ou denunciam que estavam se preparando como se estivessem indo para uma guerra.

Podemos pensar aqui o encontro com o Outro, o diferente, o estrangeiro, o estranho, do qual nos fala Freud, em texto de 1919. Aquele que ameaça e por quem se é ameaçado. Aquele que é ao mesmo tempo estranho e familiar, conhecido e desconhecido, próximo e distante, o que não faz parte e também faz parte de nós, como problematiza Souza (1998), em seu texto "O Estrangeiro: nossa condição":

A experiência do estranho parece indicar um momento de ruptura ao tecido do mundo, essa teia de véus, imagens, sentidos e fantasmas que constituem o pouco de realidade que nos é dado a provar. (SOUZA, 1998, p. 157)

Parece que a cortina foi descerrada! Longe de propormos um epílogo, convocamos outras lentes - que não façam uso do filtro do mito da democracia racial - para as cenas das questões enunciadas neste trabalho.


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ano - Nº 3 - 2021
publicação: 20-11-2021
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Autor(es)
• Anne Egídio
Instituto Sedes Sapientiae

Psicanalista. Aspirante a membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.

• Maria Aparecida Miranda
Instituto Sedes Sapientiae

Mestre em Psicologia Clínica pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo – IPUSP. Psicanalista. Aspirante a membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.

Referências bibliográficas

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GARCIA, C. A.; PENNA, C. M. P. A. O trabalho do negativo e a transmissão psíquica. Arquivos Brasileiros de Psicologia, Rio de Janeiro, v. 62, n. 3, p. 1-114, 2010. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org. Acesso em: 28 mar. 2021.

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KILOMBA, G. Memórias da plantação: Episódios de racismo. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.

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SOUZA, N. S. O Estrangeiro: nossa condição. In: KOLTAI, C. (Org.). O Estrangeiro. São Paulo: Escuta, 1998. p.155-163.

TRACHTEMBERG, A. et al. Transgeracionalidade: de escravo a herdeiro, um destino entre gerações. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2005.


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