ARTIGOS

Reflexões Críticas sobre Psicossomática e Manejo Clínico, Contemplando a Medicina e a Psicanálise


Critical Reflections on Psychosomatics, the Clinical Management Contemplating Medicine
Mailza Rodrigues Toledo e Souza

RESUMO
Este trabalho busca tecer algumas considerações sobre psicossomática do ponto de vista psicanalítico, por meio de reflexões que emergiram da observação da sintomatologia de uma paciente atendida por mim, em uma clínica particular, cujas patologias físicas mostraram uma melhora consistente quando os protocolos médicos usuais praticados na medicina tradicional foram integrados à abordagem psicanalítica. Este não é um ensaio clínico formal, mas um breve relato de caso em que a inter-relação entre a situação clínica do corpo e o estado emocional da paciente tornou-se particularmente importante para este estudo. O manejo teve como base os preceitos contidos na obra de Sándor Ferenczi e Daniel Kupermann.

Palavras-chave: Psicossomática, Trauma, Psicanálise, Corpo, Sintoma.

ABSTRACT
This paper seeks to weave some considerations about psychosomatics from a psychoanalytic point of view, through reflections that emerged from the observation of the symptomatology of a patient, seen by me in a private clinic, whose physical pathologies showed a consistent improvement when to the usual medical protocols practiced in traditional medicine was associated the psychoanalytic approach. This is not a formal clinical trial, but a brief case report in which the interrelation between the clinical situation of the body and the emotional state of the patient became particularly important for this study. The management was based on the precepts contained in the works of Sándor Ferenczi and Daniel Kupermann.

Keywords: Psychosomatics, Trauma, Psychoanalysis, Body, Symptom.


Introdução

 

O termo psicossomático significa ‘mente’ (psique) e ‘corpo’ (soma), portanto, o ser humano é naturalmente psicossomático. Ao longo dos anos, nenhuma teoria acerca dos "distúrbios psicossomáticos" sustentou-se à prova do tempo, ou seja, dentro do próprio campo da psicossomática há várias vertentes que divergem em alguns aspectos, pois sua conceptualização segue ainda em desenvolvimento, mas de modo geral podemos afirmar que a "Psicossomática, em síntese, é uma ideologia sobre a saúde, o adoecer e sobre as práticas de Saúde, é um campo de pesquisas sobre estes fatos e, ao mesmo tempo, uma prática - a prática de uma Medicina integral" (MELLO FILHO, 2010, p. 29). Sendo assim, atualmente, o termo psicossomático restringe-se a um movimento ideológico em torno das pesquisas sobre as relações mente-corpo e os processos de adoecimento, em especial aos fenômenos de estresse.

Comumente, as doenças são de caráter psicossomático, porém é errôneo estabelecer um sintoma físico de um órgão específico a um determinado conflito psíquico, ou seja, em um paciente adulto, todas as patologias sempre acabarão envolvendo mente e corpo, e mesmo em bebês, como se constata no estudo do clássico "Caso Monica", realizado pela equipe do Rochester Hospital. Esta pesquisa apresenta uma abordagem psicossomática psicanalítica para observar as alterações da intensidade de secreção de HCl (ácido clorídrico) em diferentes situações de estados emocionais. Embora no "Caso Monica" se tenha comprovado a relação intrínseca entre os estados físicos, mentais e emocionais na abordagem dos distúrbios aparentemente apenas físicos, a própria equipe alerta sobre a necessidade de ter cautela a fim de evitar generalizações.

O mais importante é, portanto, pensar a psicossomática como um estudo sistemático das relações entre os processos sociais, psíquicos e corporais, ou seja, articular os saberes das Ciências Biomédicas, Humanas e Sociais para compreender as complexidades do processo de saúde e doença, afinal, o ser humano é um ser biopsicossocial.

 

Psicanálise e Psicossomática: o sintoma como simbolização afetiva

 

Foram necessários longos anos de análise com determinados pacientes para compreender que era nas situações de stress que eles se revelavam alexitímicos ou operatórios. Isso me levou a pensar que essas reações eram como medidas draconianas para enfrentar dores mentais impossíveis de elaborar ou angústias psicóticas. (McDOUGALL, 2013, p. 27)

 

Nas observações de McDougall (2013), ao analisar seus pacientes psicanalíticos e pesquisar os trabalhos e artigos dos analistas psicossomáticos, ele constatou, com base em sua experiência clínica, que tanto o analisando quanto o analista, em algum momento, tendem a somatizar, e que, geralmente, esse fenômeno coincide com o fato de estarem em condições de estresse que mobilizam emoções fortes, como cólera, angústia e separação. Tais condições ultrapassam sua capacidade de tolerância psíquica habitual, no entanto, seus pacientes raramente relatavam o mal-estar físico por não compreenderem que havia também uma motivação psicológica.

A psicanalista, espantosamente, surpreendeu-se também ao perceber que, de algum modo, inconscientemente, esses pacientes vivenciavam o adoecimento físico como uma espécie de transbordamento do psíquico, como uma saída ou mesmo uma defesa ou controle no soma daquilo que na psique era incognoscível, portanto, mais angustiante que a dor física; trata-se de um fenômeno inconsciente, no qual a paciente busca aniquilar a experiência emocional que gera o sofrimento, estabelecendo, desse modo, uma "economia do afeto" (McDOUGALL, 2013, p. 99), ou seja, uma desafetação, pois a dor psíquica extrapola a resistência egoica e a possibilidade de comunicação verbal, então o corpo "grita" por meio de uma representação sintoma/adoecimento visível e cognoscível. 

Nesse aspecto, o manejo clínico deverá ser conduzido de modo que o paciente consiga verbalizar o que, para ele, fora do espaço analítico, é incognoscível, indizível e, portanto, impossível de ser simbolizado. Para lidar com o sintoma da alexitimia, conforme McDougall, citada anteriormente, a voz que outrora fora silenciada se faz ouvir no adoecimento do corpo, onde a dor seria mais suportável do que no âmbito psíquico. 

Sobre o lugar da psicanálise neste contexto, bem nos aponta Eksterman:

 

A psicanálise é o lugar de criação permanente e o psicanalista é o espectador privilegiado desse momento. Conforme Freud expôs em sua teoria estrutural: é o momento em que a carne se faz verbo, ou seja, em que o id se transforma em ego (ou o isso se transforma em mim). Nada tão absolutamente psicossomático quanto essa transformação e nada tão decididamente psicanalítico quanto o conhecimento dessa transformação. Eis o ponto chave da interseção da Psicanálise com a Medicina Psicossomática. (EKSTERMAN, 2010, p. 93-134)

 

A citação acima é bastante elucidativa acerca da situação clínica que vou relatar nesta parte do trabalho. Trata-se de uma paciente que vou chamar de Sílvia. Ela é uma jovem senhora de 34 anos, que veio em busca de tratamento psicanalítico após ser atendida quase que diariamente na UPA (Unidade de Pronto Atendimento) de sua cidade, com crises severas de asma brônquica.

A asma brônquica é uma doença inflamatória crônica do trato respiratório, que está associada à hipersensibilidade dos brônquios. Isso leva a um estreitamento dos brônquios, com desconforto respiratório relacionado às crises. Em muitos casos, uma reação alérgica está envolvida no aparecimento da asma, porém sobrecargas emocionais frequentemente desencadeiam ou pioram as crises. O quadro clínico varia de ataques ocasionais de asma leve a casos graves, com dificuldades respiratórias persistentes e dificuldade respiratória com risco de morte. 

Em comorbidade com esse quadro clínico, a paciente já tinha sido diagnosticada como portadora de fibromialgia, doença mais comum em mulheres em idade fértil, cujos sintomas são: dores em vários pontos-gatilho, a saber, músculos, tendões e estruturas periarticulares, especialmente no pescoço, nos ombros, na musculatura paravertebral, nas coxas e na linha da cintura. É frequentemente associada a síndrome ansiosa, fadiga, depressão e várias queixas vegetativas, como distúrbios do sono, síndrome de intestino irritável, dormências nas mãos, nos pés e no rosto e bexiga hiperativa. Em nenhuma outra patologia torna-se tão evidente a relação entre fases de maior conflito emocional e eclosão de novas crises dolorosas, ou piora das dores vigentes em paralelo com a intensidade dos conflitos emocionais em curso.[1]

Feita a descrição do estado clínico físico da paciente, apresento como se desenvolveu sua narrativa quando chegou ao consultório para a primeira consulta psicanalítica. No momento em que a questionei sobre o motivo que a trouxera para um tratamento com uma psicanalista, ela disparou a falar:[2]

_ Nem sei, doutora, eu só sinto ódio, parece que tenho uma panela de pressão no peito. Eu queria mesmo é morrer, mas não posso, porque tenho de cuidar do meu filho. O pai dele é que me trouxe aqui e está pagando o tratamento, mas sei que não vai adiantar nada, já passei por psicólogos e eu sei que vou me sentir assim para sempre... (choro convulso)

Perguntei-lhe:

_ Você pode me dizer o que e por que você sabe, e como sabe que é para sempre?

_ Eu fui abusada sexualmente por um tio, dos 9 aos 12 anos de idade, e, quando contei para minha família, disseram que era mentira e, mesmo que fosse verdade, eu era sem-vergonha, que tinha gostado porque demorei para falar. Depois, quando tinha 14 anos, um primo tentou me estuprar e de novo falaram que a culpa era minha. Eu vivo com aquela gente que diz que é minha família, mas me odeia, me obrigam a fazer comida para aquele homem (o tio paterno abusador). A psicóloga já me falou que toda mulher que é abusada quando criança fica assim.

Esta narrativa é bastante ilustrativa do que Kupermann (2017) estabelece acerca do trauma:

 

O trauma propriamente dito ocorreria em dois tempos entrelaçados, porém distintos: o tempo da violação da criança pelo adulto cego à dissimetria existente entre suas posições, ou seja, passional na sua relação com a diferença do outro; e o tempo da "desautorização" de seu testemunho, decerto o mais decisivo e o mais funesto para a constituição da cena traumática [...] A desagregação psíquica adviria quando, justamente, aquele que testemunha encontra o abandono, na forma da desautorização da sua tentativa de produzir uma versão própria para aquilo que foi vivido como injúria. (KUPERMANN, 2017, p. 51-52)

 

Assim aconteceu com a paciente, que foi desacreditada em seu testemunho. Em uma linguagem mais acessível, perguntei-lhe se foram mesmo as psicólogas que lhe sentenciaram que sofreria assim para sempre ou se havia também um sentimento de culpa dela própria, porque ela havia me relatado, na primeira sessão, que sentia muito nojo quando era tocada. Quando lhe perguntei sobre o que aconteceu aos 12 anos que a fez finalmente denunciá-lo, ela me disse que foi quando menstruou pela primeira vez, então ela sentiu que mantinha com seu tio algo que era errado. Ao que eu perguntei: "Sentir nojo é certo?". Ela chorou muito e confessou que sentia uma sensação agradável, que parecia que era errado, mas ao mesmo tempo ela sentia uma outra coisa que não entendia, ao que perguntei: "Seria prazer?". E ela negou com veemência: "Não! Nunca!".

Expliquei-lhe, então, que era comum a criança, nessas situações, obter uma certa sensação agradável, ou seja, o seu corpo responder com uma descarga de prazer libidinal, pois a criança também tem sexualidade, ou simplesmente ter a sensação de se sentir mais amada, já que seu pai (segundo relato dela) era um homem duro e que jamais manifestava gestos de carinho. No entanto, nada disso exime a responsabilidade do adulto sobre o ocorrido. Não fazia sentido, portanto, ela se sentir culpada. Havia sido, sim, vítima de quem deveria cuidar dela.

Disse-lhe que, porém, agora, ela já era uma mulher e não precisava perpetuar o seu sofrimento como um "ato de denúncia" que jamais seria ouvido pelos outros, porque eles também estavam envolvidos em uma dinâmica neurótica doentia. Muito provavelmente, eles também sofriam, mas nada poderiam fazer, nem mesmo se permitirem acreditar nela, pois dependiam da ajuda financeira do abusador. Sendo assim, era mais cômodo para a família, principalmente o pai, "não acreditar em sua denúncia" e manter-se em negação.

O ódio que ela sentia da família era perfeitamente compreensível, pois, ao manter-se em negação, eles ignoravam a sua dor e o seu trauma. Por mais que ela sofresse, sua família não abriria mão dessa neutralidade, pois desacreditá-la era um mecanismo defensivo para aliviar a culpa que, muito provavelmente, eles também sentiam.

O manejo clínico apreendido neste caso ancorou-se, principalmente, mas não de modo exclusivo, nos preceitos contidos nos seguintes textos de Sándor Ferenczi: "A criança mal acolhida e sua pulsão de Morte" (2011 [1929]); "Análise de crianças com adultos" (2011 [1931]); "Confusão de línguas entre os adultos e a criança" (2011 [1933]), e o artigo póstumo "Reflexões sobre o trauma" (2011).  

Nesses quatro ensaios, Ferenczi debruça-se sobre as reflexões teórico- clínicas sobre a traumatogênese. No texto de 1929, ele faz uma distinção entre "as neuroses puramente endógenas e as neuroses exógenas, ou seja, as neuroses de frustração" (FERENCZI, 2011 [1929], p. 59). No caso desta paciente, foi possível observar que o sentimento de desamparo que lhe causava tanto sofrimento, provavelmente, deu-se mais em função da indiferença da família diante do seu testemunho sobre o abuso que havia sofrido do que o ato do abuso em si, pois ela foi "posta de lado", porque era conveniente para os adultos que deveriam protegê-la "desmentir" a sua denúncia, em virtude dos favores devidos ao tio abusador.

Conforme os preceitos ferenczianos, é recomendável que o analista acolha o testemunho desta criança que ainda sobrevive no neurótico adulto e introduza "impulsos positivos de vida e razões para continuar existindo" (FERENCZI, 2011 [1929], p. 59); só depois, com muito tato, que o ajude a rever os acontecimentos, de modo a eliminar as resistências e despertá-lo para uma realidade rica em frustrações e, ao mesmo tempo, despertar-lhe a faculdade de desfrutar as possibilidades presentes em sua vida atual.

Em "Análise de crianças com adultos" (2011 [1931]), segundo Kupermann,[3] a tradução mais adequada para este texto de Ferenczi seria "A análise da criança no ou do adulto", ou seja, mais uma vez cabe ao analista auxiliar o paciente a revisitar sua criança interior e resgatá-lo desta situação afetiva regredida.

 

É uma vantagem para a análise quando o analista consegue, graças a uma paciência, uma compreensão, uma benevolência e uma amabilidade quase ilimitadas, ir o quanto possível ao encontro do paciente. Cria-se desse modo uma base graças à qual pode-se lutar até o fim na elaboração dos conflitos, inevitáveis a um prazo mais ou menos curto, e isso na perspectiva de uma reconciliação. (FERENCZI, 2011 [1931], p. 85)

 

Em relação a minha paciente, esses preceitos foram fundamentais, pois, embora adulta, consciente do abuso que havia sofrido e sabedora de que não era culpada do ocorrido, era comum, em algumas de minhas intervenções, ela responder: "Eu sei! Mas aqui... aqui eu não sei"; o "aqui" ela quase gritava, batendo no peito e chorando. Nessas ocasiões, eu lhe oferecia um copo com água e esperava, pacientemente, ela se acalmar, mantendo-me em silêncio para que ela retomasse a fala de onde havia parado ou simplesmente começasse outro assunto, geralmente trivialidades do dia a dia, ou seja, vislumbrando e reagrupando imagens mnêmicas, ressentindo e reelaborando o traumatismo psíquico da infância ou criando resistência.

No texto de 1933, "Confusão de línguas entre os adultos e a criança", o psicanalista húngaro observa:

 

O paciente sem consciência é afetivamente, em seu transe, como uma criança que não é mais sensível ao raciocínio, mas, no máximo, à benevolência (Freundlichkeit) materna.

Se essa benevolência vier a faltar, a criança vê-se sozinha e abandonada na mais profunda aflição, isto é, justamente na mesma situação insuportável que, num certo momento, a conduziu à clivagem psíquica e, finalmente, à doença. Não surpreende que o paciente não possa fazer outra coisa senão repetir exatamente, como quando na instalação da doença a formação dos sintomas desencadeados por comoção psíquica [...] em primeiro lugar, pude confirmar a hipótese já enunciada de que nunca será demais insistir sobre a importância do traumatismo e, em especial, do traumatismo sexual como fator patogênico. (FERENCZI, 2011 [1933], p. 115-116)

 

No decorrer das sessões, fui percebendo uma série de equívocos que criaram vários traumas nesta paciente: dificuldades de estabelecer confiança, de vivenciar um relacionamento amoroso mais duradouro, anorgasmia, desinteresse sexual, baixa autoestima, desinteresse de cuidar do próprio corpo, entre outros.

Acolher minha paciente com empatia e ofertar-lhe uma escuta sensível o bastante para ouvir até o não dito, ou seja, perceber as mudanças em sua expressão corporal em determinados momentos de sua narrativa, foi fundamental para que ela se sentisse à vontade para falar de sua sexualidade e admitisse que, na verdade, o seu desinteresse sexual não era apenas pelo que lhe havia ocorrido na infância, e sim porque a pessoa por quem mantinha um certo interesse era casada, e ela sentia muita vergonha de se sentir atraída por um homem casado e, além disso, saía às vezes com ele e depois se sentia muito mal. No decorrer do processo analítico, retomamos essa questão relacionada ao seu interesse por homens comprometidos ou de índole duvidosa, considerando a possibilidade de que esse comportamento poderia ser, também, um dos sintomas de seus traumas. Em um estágio bem mais avançado da terapia, em que ela se sentiu à vontade para falar de seus relacionamentos, utilizou a expressão "Tenho dedo podre para escolher homens". Embora neste texto eu não avance até essa etapa, penso que seja relevante citá-la, para ressaltar que a paciente não se tornou "assexuada" em virtude do abuso sofrido na infância, mas, inicialmente, ela tentou passar-me esta impressão.

Quando a questionei sobre como era sua relação com o pai de seu filho, se houve um relacionamento mais sério e como engravidou, pois havia relatado que não conseguia se relacionar amorosamente, ela respondeu:

 

Eu conheci o José[4] em um momento em que eu estava muito deprê, foi assim por acaso, não me lembro direito. Ficamos amigos, ele era muito bonzinho comigo e teve uma noite que a gente saiu e rolou, mas no mesmo dia deixei claro que não queria envolvimento... mas, por azar, eu engravidei. No começo eu queria tirar, mas ele não aceitou e disse que, mesmo não estando juntos, daria toda a assistência à criança e a mim, e tem cumprido a promessa. Tanto que está pagando meus tratamentos (ela também estava com outros problemas de saúde) desde o começo da gravidez até hoje, mas eu só consigo gostar dele como amigo.

 

Quando lhe perguntei se nem assim ela confiava nele e pensava em constituir uma família, foi categórica:

 

Quem me garante que ele não vai virar as costas pra mim e o menino se arranjar uma mulher ciumenta? Não adianta, doutora, eu sei que serei sempre sozinha no mundo e será sempre assim, às vezes me olho no espelho e nem me conheço... Será que um dia vai mudar? Eu só não dou fim a tudo porque meu filho precisa de mim.

 

A cada sessão ganhava mais contornos a hipótese de que o maior fator traumatizante para a paciente poderia não ter sido a violência sexual, e sim o descaso da família diante de seu testemunho, pois o pai devia muitos favores ao irmão (tio abusador) e preferiu ignorar o sofrimento da filha, que, por sua vez, se sentia, desde então, terrivelmente humilhada, ou seja, já fazia 22 anos que os afetos desta experiência a intoxicavam.

Segundo Kupermann (2017, p. 67), baseando-se no referencial teórico de Ferenczi, o trauma é formado em três tempos: o tempo do indizível, o tempo do testemunho e o tempo do desmentido. No primeiro tempo, ocorre um excesso de excitação pulsional que a criança ainda não é capaz de simbolizar, sendo, portanto, o indizível; no segundo tempo, a criança tenta expressar sua dor, geralmente a um outro adulto no qual confia, este seria o testemunho; no terceiro tempo, ao ser desacreditada pela pessoa em quem confiou contar o que lhe acontecia, mostra-se então o desmentido. Nesses três tempos da traumatogênese, Ferenczi (2011 [1933]) desenvolve seu estilo clínico no tratamento do trauma, que Kupermann denomina "estilo empático".

Ela encontrava-se em um estado de total desamparo e, consequentemente, tomada por um profundo sentimento de impotência no sentido de compreender-se e tornar-se compreendida, de modo que não conseguia contemplar a situação como um todo, no caso, a dinâmica familiar em que estava inserida, a qual era já bastante adoecida. No tratamento psicoterapêutico, o analista, ao acolher o testemunho da paciente, busca reparar a faceta desestruturante, acarretada pela "‘comoção psíquica’, com a consumação do tempo de desmentido; ou seja, quando se configura o abandono daquele que fora requisitado para autenticar e significar a violação" (KUPERMANN, 2017, p. 58). Ao oferecer uma escuta sensível à minha paciente, assumi a função de testemunhar e, assim, legitimar a sua dor:

 

Por outro lado, como as marcas da agressão sofrida são indeléveis, é sobre a repetição do tempo do testemunho que atuamos clinicamente, possibilitando ao analisando, por meio do resgate da confiança perdida, a oportunidade de encontrar um destinatário capaz de escutar sua dor e atestar seu desalento. (KUPERMANN, 2017, p. 59)

 

Foi possível dimensionar o estado traumático devastador desta paciente ao observar que ela usou as expressões "só sinto ódio, parece que tenho uma panela de pressão no peito". Neste caso, a válvula de escape, a princípio, eram os ataques de asma. Por meio de uma escuta atenta e cuidadosa, foi possível acolher seu testemunho, que há tanto tempo não era escutado, causando-lhe tanta angústia. Aos poucos, ela foi descobrindo outras "válvulas de escape".

 

O "choque" é equivalente a aniquilação do sentimento de si, da capacidade de resistir, agir e pensar com vistas a defesa do Si mesmo [Soi]. A consequência imediata de cada traumatismo é a angústia. Esta consiste em um sentimento de incapacidade para adaptar-se a situação de desprazer: (1º.) subtraindo do seu Si mesmo a irritação (fuga); (2º.) eliminando a irritação (aniquilamento da força exterior). O salvamento não chega e até mesmo a esperança de salvamento parece excluída. O desprazer cresce e exige uma válvula de escape. (FERENCZI, 1992, p. 109-110)

 

Quando Sílvia finalmente compreendeu que toda a sua família era emocionalmente comprometida e que também sofriam, entendeu que nada poderia fazer para mudar a atitude deles. Para auxiliá-la a atingir esse nível de compreensão, inspirei-me no seguinte excerto:

 

Pode-se compreender, assim, que o desmentido traumático não é, na maior parte das vezes, um ato consciente ou de motivação perversa, mas uma defesa pelo fato de sermos remetidos à posição de testemunha de uma abjeção que evidencia o ponto a que pode chegar a crueldade quando se reduz o outro à condição de objeto. (KUPERMANN, 2017, p. 67)

 

Ao perceber que sua voz encontrou uma escuta e, finalmente, alguém a compreendia, decidiu-se dar outro desfecho para sua vida, começando por cuidar mais do corpo e empreender atitudes mais construtivas que destrutivas, podendo sentir-se mais saudável e bonita. Importante demonstrar neste momento o quanto o gesto de "acolher" a dor da paciente e colocá-la em condições menos narcísicas, podendo viabilizar, assim, um olhar mais sensível ao seu entorno familiar e também mais empático, ou seja, ajudá-la a olhar para si mesma não apenas como criança vítima de um adulto abusador, e sim como uma mulher adulta, que poderia tomar as rédeas da própria vida transformando o seu trauma em potência criativa, a saber, uma mãe mais atenta e uma mulher mais forte. Neste caso em especial, foi tremendamente importante que ela refizesse um novo caminho de autoconhecimento na posição de mulher adulta, e não de uma "criança mal acolhida".[5]

Considerei importante trazer esta vinheta clínica, ainda que muito sinteticamente, porque foi uma experiência incrivelmente transformadora para a paciente e gratificante para mim. Além disso, reafirma os pressupostos teóricos de McDougall, conforme a citação que segue:

 

Esses atos-sintomas fazem parte, ocasionalmente, da artilharia defensiva de todo e qualquer indivíduo [...] em certos analisandos, a descarga no ato é um modo privilegiado que lhes permite manter a homeostase psíquica cada vez que seu equilíbrio econômico é ameaçado seja no lado objetal seja no narcísico. Essa tentativa de evacuar a dor mental através do ato constitui um elemento importante na sexualidade perversa; ela também se manifesta nas dependências do tipo, bem como certas neuroses de caráter, em que as mesmas cenas, com quem está em volta, se repetem sem cessar; ela se manifesta enfim nas pessoas que, nos momentos de tensão psíquica, respondem pelos desregramentos somáticos ou pelo esvaziamento das barreiras biológicas. (McDOUGALL, 2015, p. 81)

 

Conforme a análise avançava, era possível verificar como resultado do manejo clínico que se ratificava o que McDougall preconiza no excerto acima: conforme a tensão psíquica da paciente se atenuava, ela "desabrochava". Voltou a ter vida sexual, a cuidar de si (pois passava dias sem tomar banho), nas últimas sessões chegava na clínica sempre com as unhas pintadas e decoradas, que ela mesma fazia (este detalhe considero bastante relevante, pois ela estava se dedicando pessoalmente ao cuidado de si), os cabelos sempre lavados e brilhantes, começou a fazer pilates e caminhadas e já havia perdido o excesso de peso. Lembrando que, na primeira consulta, ela havia relatado que, às vezes, ficava dias sem tomar banho. O mais importante de tudo: "tirou a válvula da panela e a pressão foi liberada", o seu corpo deixou de ser apenas um objeto de descarga psíquica e voltou a ser uma ferramenta existencial de gozo e bem-estar.

Ela não mudou seu ambiente social, mas conseguiu mudar a percepção que tinha de seus familiares, principalmente de seus pais, e, em uma de nossas sessões, confessou-me que agora ela os achava dignos de pena, e não de ódio, e, o melhor, acabou sua via crucis para as Unidades de Pronto Atendimento, que fazia, no mínimo, semanalmente.

As informações aqui relatadas acerca do quadro clínico da paciente foram-me reveladas pelo laudo do médico da UPA (Unidade de Pronto Atendimento), que ela me mostrou no início do tratamento. Este laudo havia sido feito pelo plantonista, que a encaminhou para o pneumologista, no qual ele dizia que a paciente, no último mês, havia comparecido, em dias alternados, para receber protocolos medicamentosos compatíveis com o tratamento de crises asmáticas, que se agravaram na última semana (anterior à primeira sessão), exigindo intervenções mais incisivas de medicações e, ainda assim, não apresentava melhora.

Nos três primeiros meses de tratamento, ela havia tido uma única crise. Considero pertinente a descrição do estado adoecido para demonstrar o quanto o quadro da paciente já estava agravado quando foi iniciado o tratamento psicoterapêutico e quanto o seu corpo estava sendo afetado pela precariedade de sua estruturação psíquica. Ou seja, ocorria com esta paciente algo análogo ao que Ferenczi discorre, acerca das observações de Groddeck: "a doença constituiu-se como medida de defesa contra ‘sensibilidades’ inconscientes; em outras palavras, que ela está a serviço de uma tendência" (FERENCZI, 1992, p. 326). Sílvia adoecia organicamente, tamanhos eram sua revolta e seu ódio por não ser compreendida, e já não conseguia muito bem distinguir seus afetos, então os somatizava.     

Também houve uma melhora significativa em sua autoestima, pois o uso contínuo de corticoides a deixava inchada, o que refletia de forma desfavorável em sua percepção do próprio corpo. Durante seis meses de tratamento psicoterapêutico, com frequência de uma a duas vezes semanais, houve uma significativa melhora no seu quadro geral, e a própria paciente sugeriu espaços maiores entre cada sessão.

Ao final desses seis meses de acompanhamento, ela marcava consultas eventuais, pois compreendia que chegara a um nível de conhecimento do seu funcionamento psíquico ou de autoconhecimento e compreensão de sua dinâmica familiar que a capacitava a observá-los sob outra perspectiva, percebendo o quanto mostravam dificuldades em encontrar soluções para problemas de ordem prática, que demandavam atitudes simples, as quais eram incapazes de perceber por estarem afetados demais por seus próprios traumas e o quanto isso os fazia sofrer.

Ao dar-se conta de que as atitudes agressivas que tinham com ela eram extensíveis também aos irmãos, ela conseguiu sentir empatia, pois antes percebia como conscientes tais atitudes. Ao constatar que eles também viviam perdidos em suas próprias angústias e não admitiam que precisavam de ajuda profissional, sentiu-se privilegiada por ter conseguido romper com a simbiose em que se mantinham. Sentia-se, portanto, apta a lidar com suas demandas diárias de uma forma mais equilibrada e de bem-estar psicológico, de modo a não somatizar tanto seus conteúdos psíquicos.

 

Conclusão

 

Por mais que ainda sejam divergentes os conceitos e as teorias criadas acerca da psicossomática, é importante que esse debate continue, pois toda forma reducionista de pensar os processos de viver e de adoecer é perigosa, afinal, o ser humano deve ser compreendido de forma integral, pensado holisticamente.

No que tange às relações entre a psicossomática e a psicanálise, penso que é fundamental a todo profissional que se propõe a trabalhar com o cuidado psíquico do outro a necessidade de adquirir ao menos alguns conhecimentos acerca da importância de observar os aspectos de adoecimento físico de seus pacientes, as relações psicossociais com seu ambiente familiar e os sintomas afetivos/emocionais.

Afinal, o adoecimento do corpo não deixa de ser também uma possibilidade de mecanismo defensivo do ego, que, em pacientes clivados, é ainda bastante desestruturado para suportar o desprazer. Para uma melhor elucidação a este respeito, mais uma vez, cito Ferenczi:

 

Uma parte da personalidade deles, o seu próprio núcleo, permaneceu fixado num certo momento e num certo nível, onde as reações aloplásticas ainda eram impossíveis e onde, por uma espécie de mimetismo, reage-se, de maneira autoplástica. Chega-se assim a uma forma de personalidade feita unicamente de id e superego, e que, por conseguinte, é incapaz de afirmar-se em caso de desprazer; do mesmo modo que uma criança, que não chegou ainda ao seu desenvolvimento, é incapaz de suportar a solidão, se lhe falta proteção materna e considerável ternura. (FERENCZI, 1992, p. 103)

 

Articulando a citação acima com o caso de Sílvia, foi possível compreender esta fragilidade egoica, pois estava fixada ora no id (a criança abusada), ora no superego, que a reprimia por se interessar por "homens errados". Deslocando para o organismo conteúdos que não conseguia elaborar psiquicamente, pois a dor e o desconforto físicos, além de sequestrar sua libidinização, bloqueando o seu desejo sexual, permitiam-lhe "localizar" o sofrimento no/do corpo. Portanto, ao ajudar a paciente a potencializar sua capacidade de simbolização psíquica, conseguimos preservá-la do adoecimento orgânico.

Para finalizar, neste trabalho almejei apresentar como a teoria psicanalítica pode contribuir para a compreensão de casos de pacientes com sintomas somáticos. A história comum da psicossomática e da psicanálise é bastante contraditória, no entanto, articulando a teoria e a técnica na psicossomática psicanalítica, conforme a abordagem apresentada, foi possível comprovar que o processo psicoterapêutico ocorre de forma mais efetiva quando contemplamos o paciente como um ser biopsicossocial, ou seja, compreendemos as relações entre o físico, o psíquico, o bioquímico e o ambiente.



[1] Informações adquiridas por um laudo médico que ela me mostrou na primeira consulta.

[2] Por questões éticas de proteção à privacidade da paciente, fiz pequenas alterações discursivas, porém, sem deixar escapar o enfoque principal, que é a descrição de seu estado afetivo.

[3] O debate acerca do equívoco na tradução deste texto deu-se durante um seminário apresentado na disciplina "A Clínica Psicanalítica I: um percurso histórico-crítico entre Freud e Ferenczi", ministrada pelo Prof. Daniel Kupermann, no Instituto de Psicologia Clínica da USP, no segundo semestre de 2019, da qual participei como aluna especial.

[4] Nome fictício.

[5] Fazendo referência ao texto de Ferenczi "A criança mal acolhida e sua pulsão de Morte" (2011 [1929]).


voltar ao topo voltar ao sumário
ano - Nº 3 - 2021
publicação: 20-11-2021
voltar ao sumário
Autor(es)
• Mailza Rodrigues Toledo e Souza
Grupo Brasileiro de Pesquisas Sándor Ferenczi

 Psicanalista com graduação em Letras pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (1996). Mestre em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Universidade Estadual Paulista - Júlio de Mesquita Filho (2003). Doutora em Letras (Estudo Comparado de Literatura de Língua Portuguesa) pela Universidade de São Paulo (2009). Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Literatura Brasileira, Literatura, Teoria Psicanalítica, atuando principalmente nos seguintes temas: Ana Paula Tavares, erotismo, Hilda Hilst, crítica feminista e poesia, gênero e psicanálise. Formada em Psicanálise em 2018, pela Sociedade Brasileira de Psicanálise Integrativa – SBPI.

Referências bibliográficas

EKSTERMAN, A. Psicossomática: um diálogo entre a psicanálise e a medicina. In: MELLO FILHO, J. et al. Psicossomática hoje. 2. ed. Porto Alegre: Artmed, 2010. p. 93-134.

FERENCZI, S. Obras Completas Psicanálise II. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

FERENCZI, S. (1929). A criança mal acolhida e sua pulsão de Morte. In: Obras Completas Psicanálise IV. 2. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011. p. 55-60.

FERENCZI, S. (1931). Análise de crianças com adultos. In: Obras Completas Psicanálise IV. 2. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011. p. 79-95.

FERENCZI, S. (1933). Confusão de línguas entre os adultos e a criança. In: Obras Completas Psicanálise IV. 2. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011. p. 111-121.

FERENCZI, S. Reflexões sobre o trauma. In: Obras Completas Psicanálise IV. 2. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011. p. 125-135.

KUPERMANN, D. Estilos do cuidado: a psicanálise e o traumático. São Paulo: Zagodoni, 2017.

McDOUGALL, J. Teatros do corpo: o psicossoma em psicanálise. 3. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2013.

McDOUGALL, J. Teatros do eu: ilusão e verdade na cena psicanalítica. 2. ed. São Paulo: Zagodoni, 2015.

MELLO FILHO, J. Introdução. In: MELLO FILHO, J. et al. Psicossomática hoje. 2. ed. Porto Alegre: Artmed, 2010. p. 29.

RODRIGUES, A. L. Reflexões críticas sobre o constructo da alexitimia. Revista SBPH, Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, jan./jul. 2014.   

RODRIGUES, A. L. et al. Psicologia da saúde - hospitalar: abordagem psicossomática. Barueri: Manole, 2019. 


voltar ao sumário
Copyright, 2019. trama, Revista de Psicossomática Psicanalítica