ARTIGOS

O corpo na sessão


The body in the session
Diana Tabacof

RESUMO
Os limites do enquadre psicanalítico clássico no tratamento de pacientes não neuróticos, como os pacientes somáticos, são aqui discutidos com base em alguns autores, ao longo da história. O lugar do corpo é central nesse contexto teórico-clínico. Uma abordagem da organização psicossomática global é proposta, através da mobilização da dimensão sensório-perceptiva e da escuta das vivências corporais do paciente na sessão e da ligação desse material aos representantes psíquicos de afeto e de representação. Esse dispositivo é descrito através de sequências clínicas.

Palavras-chave: Enquadre, Corpo, Somatização, Sensório-motricidade, Organização psicossomática.

ABSTRACT
The limits of the classical psychoanalytical framework in the treatment of non-neurotic patients, such as somatic patients, are discussed here based on some authors, throughout history. The place of the body in this theoretical-clinical context is central. An approach to global psychosomatic organization is proposed, through the mobilization of the sensory-perceptive dimension and the patient’s bodily experiences in the session and the connection of this material to psychic representatives of affect and representation. This setting is described through clinical sequences.

Keywords: The limits of the classical psychoanalytical framework in the treatment of non-neurotic patients, such as somatic patients, are discussed here based on some authors, throughout history. The place of the body in this theoretical-clinical context is central. An approach to global psychosomatic organization is proposed, through the mobilization of the sensory-perceptive dimension and_the patient’s bodily experiences in the session and_the connection of this material to psychic representatives of affect and_representation. This setting is described through clinical sequences.


As questões relativas ao enquadre e à técnica são constitutivas da história da psicanálise. Os parâmetros da cura-tipo,[1] cuja origem costumamos situar na injunção endereçada a Freud por Emmy Von N. - "cale-se, doutor, escute-me" -, não parecem adaptadas a uma clínica na qual tenderíamos a escutar, por exemplo: "fale-me, doutor, o que você quer que eu lhe diga?", ou ainda, talvez: "doutor, o que posso fazer para melhorar?".

Os obstáculos para a implementação da cura-tipo e para a funcionalidade de algumas de suas exigências - como, por exemplo, os acessos à associação livre, do lado do paciente, e à atenção flutuante, do lado do analista, que demandam condições favoráveis à regressão formal do pensamento - foram sublinhados muito cedo.

O ensaio "Perspectivas da Psicanálise", elaborado por S. Ferenczi e O. Rank, tornou-se um marco, pois visava, já em 1924, à discussão de certos parâmetros técnicos e seus impasses diante de pacientes que não os toleravam.

Durante muitos anos e à margem dos desenvolvimentos do mestre, esses grandes pioneiros da psicanálise evidenciaram as problemáticas clínicas ligadas ao funcionamento dos pacientes, que, na linguagem contemporânea, poderíamos chamar de estados-limite ou de "psicossomáticos", para os quais a preponderância do traumatismo teria um lugar central.

Hoje, para esses pacientes, diríamos que se trataria, primeiramente, de reforçar seus "continentes", mais do que mobilizar seus "conteúdos". Nesses casos, as "disfunções" afetariam o eu-corporal e a própria construção do aparelho psíquico e de suas tópicas. Ferenczi defende a ideia de que a escuta orientada à dimensão traumática vai solicitar uma sensibilidade reforçada e novas atitudes por parte do analista. Clivado do psiquismo pelo traumatismo, o corpo em sofrimento do paciente é muito presente nos seus relatos clínicos e mobiliza, tanto quanto, o corpo do analista. Técnica ativa, relaxação, elasticidade da técnica, tato, análise da criança no adulto: são muitas as proposições que encontramos percorrendo as suas obras, especialmente o Diário clínico, publicado em 1932. Pode-se dizer que, para Ferenczi, o corpo é parte integrante da sessão.

Encontramos uma riqueza criativa fascinante nos encontros dessa época, como quando contemplamos a longa correspondência entre Ferenczi e G. Groddeck (1921-1933). Este último se autodenominava "psicanalista selvagem" e tratava os pacientes não apenas por meio de psicoterapia, mas também por massagens, regimes e banhos. Lembremo-nos também que Ferenczi e W. Reich mantiveram um seminário técnico na Sociedade Psicanalítica de Viena durante diversos anos. Mesmo que Reich tenha caído em desgraça no meio psicanalítico, sua obra Análise do caráter, publicada em 1928, aporta, a meu ver, contribuições teórico-clínicas de valor inestimável. A formação do caráter é considerada por ele como um mecanismo de proteção narcísica, devido ao fracasso do recalque. Esse aparelho defensivo, cujo objetivo seria a luta contra as excitações internas e externas, constitui-se desde a infância como uma couraça, composto por atitudes características diversas: uma couraça de caráter, acompanhada de bloqueios e de rigidez somática, organizados por estratos que formam uma couraça muscular para lutar contra a emergência de emoções e sensações vegetativas massivas. A obra reichiana fez florescer, sobretudo em solo americano, uma grande quantidade de métodos psicoterapêuticos em que o corpo ocupa um lugar central.

Façamos agora um salto tempo-espacial para aterrissarmos na Rua Saint Jacques, na Sociedade Psicanalítica de Paris, trinta anos mais tarde, no período pós-guerra e de retomada do movimento psicanalítico na Europa. Os anos cinquenta foram fervilhantes de ideias e de controvérsias, e vemos as questões técnicas e as reflexões referentes ao psicossoma reemergirem.

Em uma atmosfera na qual o lugar do corpo na comunidade analítica parecia estar bastante presente, P. Marty (1951) e M. Fain (1950), dois jovens psicanalistas, publicam seus textos inaugurais no campo da psicossomática (acerca de pacientes que sofriam de raquialgia e hipertensão). Notemos, aliás, que em 1953 ocorre a cisão de Lacan: desacordos importantes eclodiram entre ele e aqueles que ele denunciava como fazendo parte da corrente médica da SPP. Enquanto Lacan lançava as bases de uma psicanálise centrada na linguagem e na teoria do significante, ocorre-me pensar que outros analistas se dedicavam ao estudo do aparelho de linguagem propriamente dito e às dificuldades de acesso à simbolização. De todo modo, do ponto de vista histórico, o que me parece importante para a nossa reflexão é a constatação de que, nesse período, a presença dos psicanalistas nos serviços hospitalares médicos e na psiquiatria infantil e do adulto constituíram um terreno muito fértil para o nascimento de novas disciplinas.

Nessa perspectiva, chamo a atenção para os trabalhos de um psiquiatra e psicanalista muito original, J. de Ajuriaguerra, que criou uma nova disciplina, com a colaboração de G. Soubiran e de R. Diatkine: a psicomotricidade. Nesse campo, as premissas do desenvolvimento psicomotor foram concebidas nas interações precoces e levando em consideração sua dimensão inconsciente. S. Lebovici e M. Soulé participaram desse movimento (já iniciado por H. Wallon), que levou ao desenvolvimento da psicanálise da criança. Esses autores contribuíram ulteriormente para o desenvolvimento da psicossomática da criança, com M. Fain e L. Kreisler.

No entanto, M. Bouvet foi o grande mestre e pensador desse período, tendo influenciado toda essa geração de analistas, apesar de seu falecimento precoce, em 1960, aos 49 anos (M. de M’Uzan e A. Green o tiveram como analista, por exemplo). A noção de relação de objeto ganhou contornos com Bouvet, sobretudo seus níveis pré-genitais. Consequências técnicas decorreram de suas teorizações, em particular de sua noção de "distância ao objeto". É tocante de ler, em sua escrita, a recomendação que diz que, diante de um paciente psicótico, "não se deve hesitar em aproximar a sua cadeira da dele", assim como o contrário pode ser necessário, ou seja, distanciar-se. Vemos o quanto o objeto "enquanto pessoa", o corpo do analista na sua materialidade, é considerado dentro da esfera topográfica do paciente.

"A importância do papel da motricidade na relação de objeto", artigo fundador de Marty e Fain, escrito a quatro mãos em 1954, e publicado em 1955, deve ser inscrito nesse contexto. Nesse artigo, eles propõem uma concepção sensório-motora inteiramente psicanalítica da relação de objeto e definem aquilo que chamam de atividade motora pulsional. Eles nos propõem um fino rastreamento do lugar do objeto na relação analisando/analista (portanto, na transferência) por meio da observação de todas as reações corporais de um paciente durante uma sessão de análise. Ao longo do texto, são apreciados os níveis de internalização do objeto exterior pelo sujeito em função de uma escala hierárquica das estruturas, que podem ir do polo mais concreto e engajado na sensório-motricidade até níveis mais e mais elevados, de ordem psíquica.

Com o nascimento da Escola de Paris de Psicossomática, uma noção absolutamente essencial não tardará a ser formulada: a de organização psicossomática. A prática das investigações psicossomáticas e a publicação das famosas observações clínicas por P. Marty, M. de M’Uzan e C. David, em 1963, permitiram a descrição e a difusão de uma série de particularidades do funcionamento dos pacientes somáticos. Uma clínica do negativo foi revelada, marcada pela ausência de certas características próprias à psiconeurose. Foram detectadas irregularidades transitórias ou permanentes do modo de funcionamento mental desses pacientes em sofrimento somático, que apresentavam dificuldades na transformação das excitações pulsionais oriundas dos conflitos e dos núcleos traumáticos.

A organização psicossomática do paciente seria, então, concebida como sendo constituída, simultaneamente, por mecanismos psíquicos, atividades sensório-motoras e expressões funcionais fisiológicas. O processo analítico não lidaria mais apenas com as "associações livres" do paciente, mas com toda a gama de sua "expressão associativa", segundo a expressão de Marty. Para além das associações verbais do paciente, o campo da relação terapêutica se abria às expressões mímicas, gestuais, prosódicas etc., bem como às expressões somáticas: álgicas, respiratórias, musculares, entre outras.

Nessa perspectiva, a concepção de enquadre analítico sofreu uma verdadeira transformação, pois o olhar do analista passou a participar tanto quanto a escuta do material aportado pelo paciente. Naturalmente, esse trabalho seria realizado face a face.

Nossa proposta, neste artigo, é de que, com base nessa concepção do enquadre analítico e de um analista cuja presença é viva e conectada à dimensão multissensorial da relação com seu paciente, possamos conceber a introdução dos elementos de escuta das vivências corporais do paciente no hic et nunc da sessão.

Por ter sido formada em psicoterapias neo-reichianas e em métodos de consciência pelo movimento (como o Método Feldenkrais e a Eutonia de G. Alexander) antes da minha formação de psicanalista psicossomaticista, e tendo iniciado minha prática clínica com pacientes com dores crônicas em um centro de reumatologia de São Paulo, a descoberta da técnica de relaxação desenvolvida por Ajuriaguerra representou uma via de continuidade natural para mim. Ora, a grande e decisiva abertura que esse pioneiro e o seu grupo de pesquisa no Hospital Saint Anne aportaram a essa prática terapêutica foi a ancoragem à dimensão transfero-contratransferencial psicanalítica.

Psicanalistas da SPP inspiradas por F. Pasche, M.-L. Roux e M. Dechaud-Ferbus deram continuidade às pesquisas de Ajuriaguerra, constituindo um sólido corpo teórico-clínico referente às práticas de relaxação, decididamente inscrito na metapsicologia freudiana. O último livro publicado por Dechaud-Ferbus, em 2011, apresenta um título muito sugestivo: Este outro divã.[2] A evolução dos  trabalhos desse grupo permitiu, aliás, uma mudança corajosa e capital sobre o método: de psicoterapia psicanalítica de relaxação, ele passou a ser designado como psicoterapia psicanalítica corporal.

Com efeito, foi determinante a inversão produzida pela "relaxação Ajuriaguerra" em relação à vertente clássica da qual ele fazia parte, o "método Schultz": passamos de um modelo indutivo, do tipo "eis o que você deve sentir" (no método Schultz, trata-se de sentir o corpo pesado, o calor, o relaxamento ou a resistência ao relaxamento, etc.), para "diga-me como você se sente em seu corpo", e, poderíamos acrescentar, "aqui, comigo", um endereçamento, portanto, aberto e direto à expressão verbalizada pelo paciente e seus estados corporais, na transferência. Nesse enquadre, o paciente fica deitado no divã e o analista coloca a sua poltrona na diagonal, ao seu lado, deixando aberto o campo visual entre analista e paciente.

Segundo as formulações de Dechaud-Ferbus (2011), tratar-se-ia de uma modificação do tratamento psicanalítico que introduziria o corpo como mediação perceptivo-sensório-motora no trabalho psicanalítico. A proposta de uma memória do corpo é desenvolvida, a qual manteria enquistados traços dos traumatismos primários, bloqueando a evolução libidinal dos pacientes. Apresentarei um caso clínico que nos permitirá examinar essa proposta.

Nesse trabalho, o recurso às sensações advindas dos apoios do corpo e do contato com o divã metaforizam a relação de apoio[3] ao objeto-analista, e o divã se torna um objeto transicional de grande utilidade. A experiência de "deixar-se levar" - ou talvez, justamente, a impossibilidade de fazê-lo - pelas experiências vividas nas relações objetais primárias, frequentemente expressadas e associadas pelo paciente na transferência, visa à criação de novas bases de apoio e de continência, aptas ao reforço do narcisismo e do eu.

O relaxamento não é o objetivo desse dispositivo; ele viria como uma consequência. Tratar-se-ia, mais especificamente, da experimentação de novas condições sensório-motoras na relação transfero-contratransferencial, que permitirá a integração de restos não metabolizados, advindos de experiências traumáticas primárias inscritas no soma. Novas capacidades de acesso à passividade são certamente um recurso precioso nesse trabalho, no qual a função materna do analista (conforme descrita em psicossomática por Marty, Fain e Braunschweig) está sendo exercitada plenamente. Paraexcitação e libidinização se entrecruzam para tecer, conjuntamente, melhores bases para o eu frágil do paciente.

Apresentarei alguns trechos do trabalho com Jane.

Essa jovem, de aproximadamente 30 anos, tem plena consciência de que sua inteligência e sua tendência à intelectualização têm um valor defensivo contra a massividade das angústias e dos distúrbios somáticos aos quais está habituada desde pequena. "Nunca soube se era o sofrimento de minha mente que gerava os distúrbios físicos ou se o sofrimento físico levava a distúrbios na minha mente". O tratamento realizado no Instituto de Psicossomática a preenche de esperança. "Você acha que vou conseguir sair dessa?", me pergunta Jane. "Eu creio que você tem uma grande necessidade de se sentir assegurada por mim... Pelo que você me conta, me parece que você nunca foi assegurada pelo seu entorno", eu respondo.

Jane viveu em um "ambiente de doença e de morte", segundo ela. Sua mãe tinha uma grave doença sanguínea e, durante a vida, era ela que devia cuidar da mãe, se ocupar dela e poupá-la. Seu pai, bem-sucedido em um ofício que o fazia viajar com frequência, era muito exigente com Jane e sua irmã mais nova. Ambas fizeram estudos brilhantes, mas possuíam grandes dificuldades no plano afetivo. Sua irmã desenvolveu uma retocolite hemorrágica séria. Jane sofreu a vida toda com a garganta e a barriga. Amigdalites marcaram a sua vida e, recentemente, ela me diz ter "esbarrado na morte" devido a uma infecção gravíssima na garganta. Um meningioma foi descoberto recentemente, e ela teme ter de "abrir seu crânio para poder vê-lo". Entretanto, o que a faz sofrer verdadeiramente é uma endometriose que avança sem explicações médicas, com endometriomas que se desenvolvem a todo vapor. Ela teme sua evolução, assim como as consequências para sua vida enquanto mulher. As dores são esmagadoras. De todo modo, as dores no baixo ventre ela conhece desde a adolescência: suas menstruações são verdadeiros tormentos. Nesse quadro, o que intensifica a sua consternação é o herpes, que se torna um obstáculo às eventuais relações sexuais que ela poderia estabelecer com jovens rapazes que encontra ocasionalmente.

Estamos próximas de sua quarta sessão.

Jane se senta na beira do assento da poltrona, com as costas eretas e uma atitude enrijecida. Ela me olha com um ar apreensivo. "Vi meu médico", ela me diz. "Eu não poderei fazer o tratamento hormonal para a endometriose por conta do meningioma... Estou com muito medo, me sinto encurralada." Ela chora. O meningioma viria da ingestão de medicamentos entre os seus 13 e 20 anos. "Fui à Alsácia no final de semana para ver minha mãe. Sempre a mesma expectativa, a mesma decepção... Ela não se interessa por mim. Minha irmã, que também estava lá, me disse que eu estava fria, distante... É a forma que encontro para me defender." Ela discorre sobre sua relação com seus pais, sobre o estresse gerado pelo seu pai, pela inadequação de sua mãe. Comento sobre sua postura corporal em posição de "sentido",[4] e ela me diz: "Preciso me manter reta, tenho medo de me afundar,[5] de cair no vazio, acho". Proponho que ela tente se encostar um pouco melhor na poltrona. Com um pouco de humor, digo que ela não vai deixá-la cair, e ao mesmo tempo me apoio confortavelmente na minha, em espelhamento. Com Jane na posição sentada, introduzo alguns dos parâmetros do enquadre descrito anteriormente. Ela apoia sua cabeça, fecha seus olhos durante dois segundos, abre-os novamente e me diz: "Me vem a imagem de uma mãe que me estrangula, aliás, sonho com frequência que ela me estrangula". Ela coloca a sua mão na garganta, fica corada e diz: "Tive anginas durante toda a minha vida, me dou conta de que estou em apneia o tempo todo... Por que ela tem raiva de mim? Creio que ela era infeliz demais para poder cuidar de mim".

Sustento o meu olhar sobre Jane, tenho a impressão de segurá-la com o meu olhar. Ela chora. Tento contê-la nesse movimento regressivo que está em curso. Meu olhar investidor[6] (segundo a expressão de M.-L. Roux, 1993) assegura uma forma de continência. "O que você sente?" "Tenho medo de morrer." Em seguida, ela se recompõe e começa a contar sobre uma proposta de trabalho que recebeu. Ela diz hesitar, tem medo do estresse que isso pode provocar e me conta do seu burnout recente. Ela sucumbiu e teve licença médica por quase dois anos: muita exigência, muitas viagens, um ritmo louco... "Como o seu pai?", pergunto. "É verdade, ele era muito orgulhoso, ambicioso, enquanto eu me matei de cansaço..." No fim dessa sessão, proponho a ela que passe, dentro de algum tempo, à posição deitada, para um trabalho psicanalítico corporal do qual falaremos mais tarde.

Na sessão seguinte, Jane me perguntou onde estava a planta que ficava ao meu lado: "Tinha uma planta ali, não?". Não digo nada. Nunca houve uma planta ali; foi uma fabricação pela via da percepção de uma falta projetada sobre o enquadre. Alucinação negativa? Uma ausência, um buraco no campo perceptivo, se impôs a Jane, interrogando o destino de suas representações, fracamente investidas ou não formadas, visivelmente. Trata-se de quais representações? Um duplo meu? Uma planta vigorosa ou uma presença imóvel, que está lá e não está? Diria respeito a uma figura terceira, que deveria estar ao meu lado, podendo assegurar, assim, uma estrutura enquadrante confiável (GREEN, 1980)? A percepção de uma triangulação vacilante poderia também se expressar ali, como aquela formada entre ela e seus pais.

Nessa sessão, ela me conta o trecho de um sonho no qual ela está na cama dos pais e escuta a mãe reclamar ao seu lado. As associações se desvanecem rapidamente, ela evoca a ausência de ternura, o medo de incomodar sua mãe sempre doente. A respeito disso, eu digo a ela que eu entendia que seu pai devia cuidar da esposa doente... Ela diz que os momentos em que tinha sintomas referentes às anginas eram os únicos nos quais ela era um pouco cuidada. "Sim, na família deve-se estar doente para receber um pouco de atenção", diz Jane, indicando assim uma concorrência com sua mãe por um lugar privilegiado próxima ao pai, expressão de uma espécie de patomasoquismo, segundo a expressão de C. Smadja (2001). Qual o destino das identificações histéricas primárias e os conteúdos eróticos inconscientes maternos veiculados nesse contexto fortemente impregnado pela destrutividade? Jane prossegue me dizendo que ela corre o risco de perder um ovário, mas que ninguém se interessa verdadeiramente por isto na família. Eu penso nas falhas da construção de seu corpo erógeno e na impossibilidade de formação de uma fantasia de ter um filho do pai, a qual teria sido talvez substituída pela destruição somática de um ovário.

Na sessão seguinte, vejo que ela toma o seu tempo para se acomodar bem na poltrona. Ela me olha enquanto o faz, em parte fazendo o que ela pensa que eu espero dela, já estando, de alguma forma, em trabalho corporal. Uma espécie de diálogo tônico-postural (a noção é de Ajuriaguerra, 1977) é instalada entre nós. Ela toca o seu colo e fala de sua angústia, "não consigo respirar", me diz. "E expirar?", eu pergunto, enquanto eu mesma expiro. Ela coloca uma mão sobre o colo, a outra no ventre e tenta inspirar e expirar. Evoca suas aulas de yoga e respira, me olhando. Fazendo um gesto, eu digo algo como: "Para cima e para baixo". O diálogo entre nós é sobretudo não verbal. A identificação motora primária, evocada por Marty e Fain, que é falha para Jane, é aqui convocada pela transferência. No caso de Jane, poderíamos pensar em uma identificação com o corpo doente de sua mãe?

Ela então me conta sobre um sonho aterrorizante que teve recentemente, abrindo uma nova dimensão. Restou-lhe apenas uma imagem: seu pai fecha a porta do porta-malas do carro e esmaga a cabeça de sua irmã nesse gesto. Chocada, isso a levou a conversar com a irmã sobre a relação das duas com o pai. Elas evocam juntas as "cócegas" do pai antes da hora de dormir, quando eram crianças. Para a irmã, eram como um estupro. Ela detestava isso, empurrava-o e gritava "Pare! Pare!". Ele fazia sons, lambendo-as. Quanto a Jane, ela esperava sua vez com impaciência, ficava agitada, adorava as cócegas. Aquilo a fazia rir, ele fazia sons estranhos na orelha... Ela se lembra que a avó paterna também dava beijos molhados.

Uma nova perspectiva se abre, referente aos momentos de transbordamento de excitações pulsionais provocadas pelo pai. Estupro, diz a irmã, que Jane vê sendo esmagada pelo pai no sonho, a qual passava pelas cócegas antes dela. Para Jane, explosão certeira de seu escudo protetor, de seu sistema de paraexcitação já frágil e mal integrado no vínculo primário, recuperada por uma coexcitação sexual sem dúvida eficaz, podendo assegurar um certo ganho de prazer, mas cujo impacto traumático é, na minha visão, inegável. Aqui, nasce uma reflexão acerca de sua vinculação às excitações fortes; poderíamos falar até mesmo de sensações dolorosas, misturas de dor e prazer, que sinalizam uma modalidade de masoquismo cuja valência mortífera estaria presente. Em todo caso, o transbordamento econômico veiculado nesses momentos com seu pai não teria ajudado no desenvolvimento dos processos sublimatórios para Jane, e nem na retirada de sua libido para investi-la no seu próprio eu. A marca desses jogos corporais superexcitantes com o pai e a ausência do envelope tenro materno formavam um quadro no qual as fissuras no eu-corporal poderiam ser pensadas.

Na sessão seguinte, Jane me "afronta" e me diz não compreender o que fazia de diferente comigo em comparação a outras terapias - e ela havia feito muitas -, ela continua tendo muita dor e diz pensar que o trabalho comigo duraria muito tempo. Eu digo que ela talvez desejasse que eu fosse mais performativa, motivo pelo qual ela estaria decepcionada. Ela reconhece o termo próprio ao vocabulário de seu pai e discorre longamente sobre a ideia de produtividade e de seu arrependimento por ter feito uma má escolha profissional, a qual tinha como intenção agradá-lo. Ela queria dançar, ter um ofício mais artístico, e por conta disso foi ridicularizada pelo pai. No final da sessão, diz estar contente em poder me dizer do seu descontentamento com aquilo que eu lhe ofereço (e aquilo que não posso oferecer) sem que eu a "jogue para fora da sala".

Pouco tempo depois, passamos a trabalhar no enquadre divã-poltrona, com minha poltrona posicionada no seu campo visual, conforme já descrito.

Deitada, seu olhar se prende ao meu, eu peço que ela me diga como se sente. Ela tem medo de se soltar, ela sente ter uma armadura de proteção, talvez contra a dor, contra suas angústias. "Tudo me submerge, um verdadeiro tsunami". "O que te submerge?", pergunto. Enquanto a escuto, me pergunto como ela poderia qualificar aquilo que, para ela, se manifesta como pura quantidade. "Tudo, tudo e qualquer coisa me submerge, a nova mensagem da minha chefe, a espera pela resposta de Leo, meus endometriomas. Evoco a forte "tensão interior" que isso representaria. Ela prossegue: "Tenho muita raiva dentro de mim, como uma massa de raiva, eu vivi trancada em casa, meu pai não nos deixava sair, nós éramos suas ‘coisas’". Um futuro performativo e, sim, sobretudo eficaz: estou na busca constante por validação, fico apavorada em não fazer o que deveria. Sabia que desde o início devia ter colocado limites na minha nova chefe, mas tenho medo de não conseguir...". "Medo de se tornar a ‘coisa’ dela?", eu pergunto (ou ‘minha coisa’, penso enquanto escrevo aqui, considerando o meu interesse pelo seu caso e a utilização que faço dela).

Solicito que Jane me descreva suas sensações. "Pega todo o meu lado direito, do ovário ao ombro e depois desce até a perna. O mal-estar e as dores se confundem em mim. Minha puberdade foi atravessada por uma grande depressão, me deram antidepressivos de 2007 a 2020" (a partir dos 19 anos, portanto). "Suas primeiras menstruações, como foram?" "Minha mãe não me disse nada, apenas: ‘vá falar com sua irmã...’. Desde então, cada vez foram dores horríveis ,daqui até aqui", ela mostra a região na barriga. Ela continua: "Por vezes penso que as dores são como uma proteção". "Uma proteção?" "Uma armadura, como se eu estivesse em um combate. Andando na rua, outro dia, eu a senti: uma armadura fria, metálica, pela qual a luz não passa. É fria por dentro, eu a retiro apenas para transar com algum homem. Retiro, mas pago com o herpes. Me soltar é uma ameaça, devo me manter em modo sobrevivência", diz Jane, colocando em imagens as suas defesas, seu escudo. Ela coloca em palavras a metáfora de F. Pasche (1971), cara a M.-L. Roux e M. Dechaud-Ferbus (1993), do escudo de Perseu, que faz o papel de espelho e reflete a imagem da Medusa a ela mesma. Escudo paraexcitante, mas também espelho refletor: as operações psíquicas às quais esta imagem mítica remete mereceriam longos desenvolvimentos que não caberiam aqui. "Uma sensação de ameaça lhe impediria de se soltar aqui também, então?" Ela me olha desconfiada. "Eu estou perdendo pedaços de mim, com esses endometriomas que se descolam do meu interior. Todas essas vivências com a minha mãe me intoxicam, eu e minha irmã sempre dizemos que ela envenenou nosso sangue (a doença de sua mãe, altamente contagiosa, permitiu a organização de toda uma fantasmática mortífera), ela quase morreu quando eu tinha seis meses... Tudo isso está aqui", e ela aponta para a sua barriga. "Nós duas tivemos que dizer uma à outra: ‘Vamos conseguir, vamos sobreviver.’"  Eu digo: "Você sofre por lealdade à sua mãe, por tudo o que ela sofreu, pelo que vocês sofreram juntas?". Ela responde: "A endometriose é uma aderência, não sei... Penso na placenta colada, na infecção que ela teve depois do parto da minha irmã, em todo o seu sofrimento, talvez isto não faça sentido nenhum". "Um ventre de dor para duas? Assim, vocês compartilham, você e sua mãe, a mesma dor?" Com as mãos sobre o ventre, ela me diz: "Tudo conflui para o meu ventre; na verdade, o ventre é o centro da armadura".

Silêncio. Nós estamos próximas do fim da sessão. Ela respira, com as mãos cruzadas sobre o ventre.

Na sessão seguinte, Jane chega pálida. Ela havia menstruado naquela manhã. Ela veio andando. Queixa-se de fortes dores. "O que você pode fazer para se sentir melhor?", eu pergunto. "Tenho feito bastante aquelas respirações nos últimos tempos, sempre que sinto o estresse aumentar". Eu respondo: "Vamos retomar aqui, então. Procure sentir a respiração sob suas mãos, aí onde elas estão apoiadas (sobre o ventre, como de costume). A respiração talvez possa se expandir no interior, abrir as costelas, subir até as escápulas, descer em direção ao sacro, ocupando todo esse espaço...". Eu falo de forma calma, acompanhando o ritmo que ela imprime entre a inspiração e a expiração. Prossigo: "Deixe o ar sair pela boca, até o fim, Como sente toda essa região? Tente relaxar  as mandíbulas, sinta sua garganta abrindo...". Permanecemos em silêncio, um tempo que eu entendo como sendo um tempo de integração de meu investimento libidinal nas zonas do corpo mobilizadas, protegido pelo enquadre e assegurado pela disposição dessexualizante presente no meu tom de voz. Concebo minha solicitude cuidadora diante da "Jane criança" na "Jane adulta" como parte integrante da função materna do analista, na sua posição terapêutica. Tudo isso durou quase metade do tempo da sessão. "Como você se sente?" "Muito melhor..." "Lembra de algum sonho?" "Sonhei recentemente com uma grande casa, creio que era a casa de meus pais, eu queria fazer amor com Leo, mas não tínhamos preservativos. Eu lavava minhas mãos no banheiro." "O banheiro da casa dos seus pais?", pergunto. Ela responde: "Eu passava horas naquele banheiro, era meu refúgio, meus pais batiam na porta, irritados. Ali havia um grande espelho, eu me olhava, dançava escondida, depois morria de medo e de culpa... Medo de ter uma doença incurável, um grande medo de punição. Minha irmã diz que, quando pequenas, ela zombava de mim porque eu me tocava o tempo todo, eu morria de vergonha..." Ao associar sobre o seu sonho, Jane revela seus autoerotismos, contaminados pelo medo de punição e que, em seguida, parecem ter se tornado algo compulsivo, comportamental.

Sessão após o retorno das férias de Páscoa:

"Estou muito mal, estou me matando a fogo lento, meu sofrimento físico é terrível desde a retomada do trabalho. Mas houve uma melhora em relação aos meus pais. Fui vê-los durante as férias, e tudo se passou relativamente bem. Eles se comportam como pessoas doentes, mas entendi que eles não vão mudar. Senti que estava sendo eu mesma. Na verdade, levei Leo na casa deles quando eles não estavam lá, e isso me fez bem. Pude me expressar na casa deles, a casa onde fui totalmente esmagada." Pergunto: "Você se expressou, isso quer dizer...?". "Minhas partes vivas! Foi um ato performativo. Me senti mais livre por ter feito amor lá com o Leo." "Seu pai havia sequestrado a sua sexualidade?" "Não apenas minha sexualidade, toda a minha vitalidade. Meu pai e minha mãe. Minha irmã me acha fria, mas eu preciso de distância para me proteger...". "Da armadura?", eu pergunto. "De fugir para salvar minha pele, com Leo é assim o tempo todo...  eu não sei se posso retirar a armadura, não sei avaliar o momento de retirá-la ou não, se se trata de um animal perigoso ou não, se a armadura é necessária ou não." Chora.

"Me mato a fogo lento, é isso que me faz mal." Eu digo: "Uma armadura que pode ser retirada não é igual a uma que se cola à própria pele". Jane diz: "Eu nutro a armadura todos os dias, tudo pode ser uma ameaça. Eu sinto isso no trabalho, é terrível, pior que tudo, eu preciso da armadura!". "O trabalho que lhe põe em relação com o seu pai", eu lhe digo. "Sim, sinto uma pressão enorme para ser irrepreensível, sinto exaustão e desgosto".[7] "Desgosto?" "Sim, os estudos, o trabalho, as exigências, tudo isso me enoja." Digo: "Se gera isso tudo em você, talvez seja porque haveria uma promessa de prazer, dar prazer a seu pai... Mas esse gosto parece se tornar desgosto".

Eis que, nessa sequência clínica, estamos próximos do vocabulário da histeria... O que, sem dúvidas, dá muito prazer a nós, psicanalistas. No entanto, sabemos que, para pacientes como Jane, a dinâmica do princípio prazer/desprazer e os conflitos por este gerados se complicam consideravelmente. A organização desses pacientes está submetida a um regime econômico mais além do principio do prazer, o que os afasta do funcionamento neurótico e os coloca face a uma ameaçadora tensão entre a vida e a morte. Fortalecendo o eu-corporal, o enquadre analítico visaria a uma melhor ancoragem pulsional e a uma retomada do movimento evolutivo psicossexual.



[1] Nota de tradução: No texto original, "cure-type", termo que se refere à modalidade padrão do tratamento psicanalítico.

[2] Nota de tradução: No texto original, Cet autre divan.

[3] Nota de tradução: No texto original, étayage.

[4] Nota de tradução: No texto original, garde-à-vous, uma posição militar.

[5] Nota de tradução: No texto original, m’affaisser, que também pode ser traduzido como "colapsar, desmoronar".

[6] Nota de tradução: No texto original, regard investissant.

[7] Nota de tradução: No texto original, dégoût, "aversão, nojo".


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ano - Nº 3 - 2021
publicação: 20-11-2021
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Autor(es)
• Diana Tabacof
Sociedade Psicanalítica de Paris e Instituto de Psicossomática de Paris

 Membro da Sociedade Psicanalítica de Paris (SPP – IPA) e didata do Instituto de Psicossomática de Paris (IPSO). Vice-presidente da Associação IPSO - Pierre Marty e diretora da comissão consultiva sobre formação da Associação Internacional de Psicossomática Pierre Marty-IPSO. e-mail: ditabacof@free.fr

Notas

Tradução: Pedro Marky-Sobral
Referências bibliográficas

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