ARTIGOS

Psicóticos e suas mães: o que diz a clínica?


Psychotics and their mothers: wat does the clinical practice say?
José Atilio Bombana

RESUMO
Na clínica das psicoses, um dos aspectos que chama a atenção é a peculiar relação entre os psicóticos e suas mães (referência a quem efetivamente exerce a função materna, seja a mãe biológica ou quem a substitua). Isso inclui o que permite manter esse vínculo e o que pode favorecer a psicose. Este artigo traz referências teóricas para esse campo (Freud, Lacan e P. Aulagnier) e apresenta três breves recortes clínicos. A partir disso, reflete sobre o lugar da mãe enquanto Lei, sua possível função de suplência, seu papel em relação aos laços sociais dos psicóticos e o espaço reservado ao pai. É feita uma consideração sobre as possibilidades de um terceiro diante da dupla mãe-filho.

Palavras-chave: Psicoses, Vínculo mãe-filho, Recortes clínicos, Suplência, Laços sociais.

ABSTRACT
In the clinical practice of the psychoses, one of the highlights is the peculiar relation between the psychotics and their mothers (in reference to who actually plays the maternal function, be it the biological mother, or the one that replaces her). It includes what makes it possible to keep this bond, and what can contribute to the psychoses. This article relates theoretical references to this field (Freud, Lacan and P. Aulagnier) and presents three short clinical cases. Based on that, it reflects about the mother's representation of Law, their potential function as suppléance, their role with regards to the psychotics' social ties and the space reserved for the father. A consideration around the possibilities of a third element in relation to this duo mother-son is also made.

Keywords: Psychoses, Mother-son bond, Clinical cases, Suppléance, Social ties.


Introdução

 

Na clínica das psicoses, seja ela no marco institucional ou privado, um dos aspectos que chama a atenção é a peculiar relação entre os psicóticos e suas mães. Muito longe de pretender ver aí um padrão uniforme de relacionamento, notam-se elementos que se apresentam e, eventualmente, se repetem. Por vezes, há o abandono, com suas funestas consequências; em outras, uma vinculação presente e, às vezes, maciça. É possível que aqueles que buscam algum tipo de tratamento se situem, preferentemente, no segundo caso.

Quando isso acontece, surge também o desejo de compreender por que caminhos a conexão entre eles pode ser mantida, uma vez que a convivência prolongada através da experiência clínica com psicóticos conduz os profissionais a frequentes e, por vezes, incontornáveis impasses. Como essas mães conseguem tamanha conquista?

A psicanálise buscou por diferentes caminhos encontrar elementos nessa vinculação que pudessem revelar tanto aspectos mantenedores do vínculo como os possíveis precipitadores de uma evolução psicótica. Desperta particular interesse essa última vertente, que tenta encontrar causas para o desencadeamento de quadros psicóticos nos filhos a partir do elo existente com suas mães.

Para marcar alguns conceitos históricos, pode-se apontar para o das “mães esquizofrenogênicas”, introduzido pela psicanalista Frieda Fromm-Reichmann, ainda na década de 1940. A mãe do esquizofrênico foi descrita então como ambivalente, autoritária e dominadora, fazendo par com um pai ausente, indiferente e passivo (BASSIT, 1992). Outro conceito seria o da “teoria do duplo vínculo”, desenvolvido por Bateson na década de 1950 (BASSIT, 1992). É um conceito que se refere a relacionamentos contraditórios, em que são expressos comportamentos de afeto e agressão simultaneamente, em que as duas pessoas estão fortemente envolvidas emocionalmente e não conseguem se desvincular uma da outra. Em ambos havia uma responsabilização dos familiares, particularmente das mães, no desencadeamento da psicose dos filhos. Talvez se possa situar essa visão dentro de um contexto mais amplo, que diz respeito à relação da criança com sua mãe, em que se inclui também o ódio como um dos sentimentos, e que pode resultar em graves acusações. A respeito desse contexto, Colette Soler (2005) comenta:

 

Ao contrário, na associação livre, sejam quais forem as variações individuais, é mais como acusada que a mãe se instala. Imperiosa, possessiva, obscena ou, ao contrário, indiferente, fria e mortífera, presente demais ou ausente demais, atenta demais ou distraída demais, quer cubra de mimos, quer prive, quer se preocupe, quer se mostre negligente, por suas recusas ou por suas dádivas, ela é, para o sujeito, uma imagem de suas primeiras angústias, lugar de um enigma insondável e de uma ameaça obscura. (SOLER, 2005, p. 91)

 

Pode-se considerar que a hipótese do desencadeamento de uma psicose no filho por responsabilidade da mãe, como mencionado acima, parece tendenciosa e imprópria para uma generalização. De todo modo, aqueles que se ocupam dessa clínica, necessariamente, se defrontarão com um campo complexo, que não permite simplificações. Mais adiante em seu texto, Soler complementa: “Uma coisa é fato: da mãe de quem se fala à mãe que fala, a distância é grande” (2005, p. 91).

Desde o início deste trabalho, deve ficar marcado que, ao nos referirmos às mães, visamos a quem efetivamente exerce a função materna, em seus múltiplos papéis de contemplar as necessidades pulsionais e biológicas dos filhos, conter e traduzir os excessos de estímulos internos e externos, supor um sujeito no bebê, introduzi-lo no campo da linguagem, entre muitos outros. Essa tarefa essencial pode ser realizada pela mãe biológica ou por quem a substitua. Portanto, ao nos referirmos à mãe, é a esse contexto que visamos.

Este artigo se propõe a trazer algumas referências teóricas fundamentais que permitam ampliar o campo e nutri-las de alguns breves recortes clínicos que contribuam com o gosto vivo da clínica, e então buscar pontes e reflexões entre eles.

 

Algumas referências teóricas

 

Freud

Marco capital no pensamento freudiano e na psicanálise de modo geral, a ligação amorosa/sexual entre a criança e sua mãe, formulada através do Complexo de Édipo em suas diferentes modalidades, representa uma das primeiras bases para se pensar as vicissitudes da ligação entre filhos (inclusive os psicóticos) e suas mães. A posição diante do Complexo de Édipo e sua resolução, incluindo aí a barreira do incesto, são referências centrais que determinam a estrutura e a possível psicopatologia de cada um, inclusive na psicose.

Intimamente articulado ao Complexo de Édipo, especialmente quanto às suas funções normativas e interditoras, o Complexo de Castração surge como outro dos elementos centrais revelados por Freud (1975 [1905]). O modo como cada um se coloca diante dessa ameaça tornou-se outro marco referencial nas diferentes psicopatologias encontradas.

Outra contribuição fundamental para este tema diz respeito ao narcisismo, conceito que aponta para uma fase do desenvolvimento libidinal na qual a libido, até então autoerótica e, portanto, anárquica, junta-se, investindo o próprio Eu, em uma “nova ação psíquica”. Essa fase antecede outra que ocorrerá com o investimento objetal da libido, portanto, em uma direção para fora de si mesmo. Freud segue Abraham, que apontava para o retorno da libido objetal para estágios anteriores nas psicoses. Em uma perspectiva mais estrutural, o narcisismo representa um investimento permanente no Eu, que não pode ser completamente abandonado. Ele postularia ainda que, no vínculo amoroso dos pais pelos seus filhos, para além das idealizações, poder-se-iam vislumbrar manifestações do narcisismo primário abandonado dos pais.

Relevantes também são seus desenvolvimentos sobre o desamparo. Condição própria ao ser humano que vem ao mundo ainda em estado imaturo e despreparado para sobreviver física e psiquicamente, estabelecendo uma dependência de quem dele se ocupa e gerando uma necessidade de ser amado. As particularidades dessa ligação deixarão marcas que afetarão os vínculos futuros entre as mães e seus filhos, os quais terão seus psiquismos estruturados a partir da relação com um outro.

No estudo clínico mais diretamente dirigido à psicose (no caso, a paranoia), Freud (1975 [1911]) considera, principalmente, o papel do pai de Schreber no desencadeamento de seu quadro, mas pouco se detém no possível lugar de sua mãe.

Em relação aos seus desenvolvimentos acerca das psicoses, ele ressalta, nos primeiros textos, seu caráter defensivo (psicoses de defesa). Posteriormente (primeira teoria do aparelho psíquico e das pulsões), aponta para as vicissitudes possíveis na perspectiva entre os investimentos libidinais e aqueles das pulsões do Eu no objeto, sendo que estes últimos propiciariam uma relação adaptativa com a realidade. Com a segunda teoria do aparelho psíquico, ele ressalta uma ruptura entre o Eu e a realidade (está constando aqui quase como uma instância psíquica), ficando o Eu sob o domínio do Isso, para, em um segundo estágio, o do delírio, haver uma reconstrução da realidade pelo Eu, dirigida pelos impulsos desejosos do Isso (LAPLANCHE e PONTALIS, 1986).

 

Lacan

Partindo do conceito de Verwerfung postulado por Freud, Lacan (1997 [1955-1956]) desenvolve o conceito de foraclusão, mecanismo próprio da psicose, como uma outra forma de negar a falta no Outro. Recupera a análise do termo no campo jurídico, como algo que está na linguagem, mas que fica fora da simbolização. Entretanto, não haveria propriamente uma negação da falta, já que esta, de fato, não ocorreu para o psicótico. Para ele, o lugar do sujeito será ocupado pelo Outro, com os fenômenos do quadro clínico decorrendo disso. Haveria, isto sim, um Outro que invade o sujeito. Para ele, o que é recusado na ordem simbólica retorna no real, quando opera a Verwerfung.

Lacan sugere que o desejo da mãe não é barrado quando o significante Nome-do-Pai não opera, deixando o sujeito (psicótico) prisioneiro do desejo dela, o que não ocorreria, por exemplo, na neurose, quando esse significante propicia uma falta. Cabe pontuar que, na psicose, não haverá uma foraclusão generalizada, mas específica em relação ao Nome-do-Pai. Existiriam como balizas teóricas a foraclusão do Nome-do-Pai no lugar do Outro e o fracasso da metáfora paterna. Dito de outro modo, percebe-se o efeito danoso ao filho quando a mãe, em seu discurso, não reconhece uma Lei, um Outro, tornando-se ela própria a Lei para o filho.

Quando o Nome-do-Pai não exerce sua função, o mundo do sujeito perde sua ordem e, precocemente, surgem as vivências primárias, por exemplo, através da sensação de que o mundo estaria acabando. Posteriormente, ocorrem as tentativas de restituição (o que Freud apontara em Schreber), que Lacan denominará de metáforas delirantes, manifestas clinicamente através dos delírios (LACAN, 1997 [1955-1956]; LEITE, 1992; BRITO, 2013).

Outra contribuição diz respeito à teorização sobre os quatro discursos (discurso do mestre, do universitário, da histérica e do analista), que permitem a instauração dos laços sociais, justamente o ponto de fragilidade no funcionamento do psicótico.

 

Os quatro discursos como laços sociais são, portanto, estruturados pelo Nome-do-Pai. Eis por que o psicótico, devido à foraclusão do Nome-do-Pai no lugar do Outro, é definido aqui, estruturalmente, como fora-do-discurso, o que não impede [...] todas as suas tentativas de estabelecimento de laço social, na medida em que está tanto no campo da linguagem quanto no campo do gozo. (QUINET, 2006, p. 46)

 

Nesse campo, as tentativas de cura representam buscas por uma inserção no laço social, portanto, em algum discurso.

Outro aporte viria com o conceito de suplência, que implica

 

promover um elemento no lugar de outro, como na operação metafórica ou, por outro lado, em um acréscimo, em um suplemento. Suplência, enquanto ato de suprir, implicaria completar, substituir, fazer as vezes de, preencher a falta de. E aqui, sabemos, estamos referidos ao Nome-do-Pai, que pode ou não operar, exigindo, nesse último caso, uma operação de reparação. (GUERRA, 2007, p. 112-113)

 

Como recurso dirigido à estabilização das psicoses, a suplência, habitualmente, é referida à escrita, porém também poderia incluir outros meios, como a formação do delírio.

 

P. Aulagnier

Para esta autora, a mãe do psicótico manifesta um lado “fora da lei”; não é ela que faz a lei, mas ela própria é a lei. Consequentemente, não aceita as “regras do jogo” ou os compromissos, e o filho cumpre um papel de “tapar qualquer brecha em si”, fazendo de seu corpo um escudo para a mãe.

A autora desenvolve hipóteses sobre as consequências da impossibilidade de haver qualquer representação imaginária da criança para a mãe. Ocorreria uma relação entre a mãe e “essa massa no interior de si mesma... que nela e graças a ela, se desenvolve” (AULAGNIER, 1990, p. 18). O que resulta disso é um não investimento libidinal em um corpo separado, havendo na gravidez um sobreinvestimento narcisista daquilo que é sentido como uma produção endógena. Haveria uma onipotência que não reconhece a ordem simbólica. Essa única relação implica para o filho uma primeira castração maciça por parte da mãe: tudo o que lembra a contribuição paterna em seu corpo é negado, anulado. A foraclusão do Nome-do-Pai teria aqui seu ponto de origem.

Outro aspecto diz respeito ao ego especular, com seu caráter jubilatório, que se constitui no estádio do espelho. A assunção, para um sujeito, do corpo imaginário (embora imagem enganosa) como a própria imagem, depositando sobre ela a própria libido, é o que o torna Ego Ideal suporte do próprio narcisismo. Mas, para isso, ele necessita do consentimento da mãe, o que, neste caso, não ocorre. “O que se desenha no espelho é ele mais o Outro, porém o Outro enquanto agente da castração e ele como lugar dessa castração” (AULAGNIER, 1990, p. 21). Para o psicótico, esse ego especular falho impede qualquer possibilidade de identificação. A foraclusão desse mecanismo essencial é o que, estruturalmente, caracterizaria o fenômeno psicótico enquanto tal. Qualquer relação imaginária com o Outro, visto que se apoia sobre o ego especular, torna-se impossível. Como “toda assunção do desejo pressupõe a identificação do Eu (Moi) com seu ego especular (que neste caso não ocorre), será o desejo que estará para sempre interditado ao psicótico” (AULAGNIER, 1990, p. 22).

O que possibilita a passagem do autoerotismo ao narcisismo primário é a constituição da relação imaginária que levará ao encontro do Eu (Moi) com o ego especular. Para que ocorra a necessária passagem dos investimentos parciais em uma imagem unificada própria, será sobre esse Ego Ideal resultante que o sujeito se apoiará. Mas é justamente tal apoio que não existe para o psicótico, e essa falta primária determinará a separação intransponível entre o Eu (Moi) e o corpo que o suporta, tão própria da estrutura psicótica.

Em relação ao pai, entende-se que sua ação e seu papel estejam, de algum modo, presentes. Porém, como o foco principal concentra-se na relação oral e seus primórdios, o pai inicialmente comparece ao afetar ou não a mãe, e através da relação inconsciente que liga o casal parental.

 

Recortes clínicos

 

Buscando subsídios clínicos que auxiliem uma reflexão sobre esse tema, serão apresentados três recortes clínicos (com nomes fictícios), colhidos tanto no setting analítico privado como no institucional público, a partir da observação prolongada em um Caps (Centro de Atenção Psicossocial).

 

Valter e sua mãe Vera

Trata-se da história clínica de um rapaz de 23 anos, que vive desde sempre com sua mãe, sem a presença do pai ou de irmãos.

Ele foi encaminhado para o Caps juntamente com sua mãe, ambos com diagnóstico de psicose e sem tratamento prévio.

Vera tinha 50 anos e era solteira. Aos 21 anos, conheceu o pai de Valter, com quem se relacionou por 7 anos. A gravidez não foi planejada, e a gestação foi tumultuada. Após 4 meses do nascimento de Valter, o pai os abandonou, sem ter registrado o filho. Ela diz que, desde então, “foi pai e mãe de Valter” e sempre o protegeu muito. Passou a trabalhar como costureira para poder ficar próxima dele. Referia ter irmãos e a mãe em São Paulo, mas pouco se relacionavam.

Valter teve pouco contato com o pai. Viviam com os ganhos não regulares da mãe.

Seu quadro iniciou-se aos 15 anos, quando passou a se sentir observado pelas pessoas, ouvia vozes que conversavam entre si e outras que lhe davam ordens como: “Mate sua mãe que sua vida vai melhorar”. Relatava poder ler o pensamento dos outros.

No Caps, foi assistido por uma Acompanhante Terapêutica, com quem passou a realizar viagens de metrô pela cidade, o que despertava nele grande entusiasmo. Vera incomodou-se com essa movimentação e dificultou sua continuidade.

Embora filho e mãe compartilhassem o delírio persecutório, por vezes Valter questionava o que a mãe pensava. Durante o período de tratamento, ele teve um emprego em um supermercado (como repositor) durante 9 meses, mas a mãe incomodava-se com essa atividade e agiu no sentido de que ele deixasse o trabalho, o que acabou acontecendo.

Existia uma interferência constante da mãe no tratamento do filho. Em uma ocasião, Valter manteve um relacionamento sexual com outro paciente no banheiro do Caps. A mãe acabou sabendo, o que gerou revolta e atitudes agressivas com a instituição.

No final de 2016, mãe e filho ficaram em situação de rua. Ela não aceitou uma indicação de abrigo, pois o filho ficaria em outro abrigo, longe dela.

Quando, por inúmeras dificuldades, optou-se pelo encerramento das atividades do Caps, houve a necessidade de um encaminhamento para outro serviço. Vera mostrou-se bastante resistente, dificultando ao máximo o que já não era uma tarefa fácil. Valter compareceu ao novo local uma vez, mas depois não deu prosseguimento.

 

Adriana e sua mãe Edith

Adriana tinha 29 anos, era solteira e mãe de um filho. O relato de sua infância e adolescência era feito sem revelar conflitos marcantes ou dificuldades. Aos 18 anos, ela engravidou, no mesmo período em que o pai teve um acidente vascular cerebral. Ela receava a reação do pai diante da gravidez. Seu namorado morou com sua família por cinco meses, até o bebê completar um mês, quando ele resolveu ir embora. Seu pai sofreu, então, um novo AVC.

Adriana começou a “ficar estranha”; não cuidava mais do filho e também não fazia mais as atividades cotidianas. Isolava-se, permanecendo calada; não queria mais sair do quarto. Houve uma importante perda do pragmatismo, deixando de se cuidar e recusando a alimentação. Sua mãe tentava manter-se próxima e, posteriormente, buscou ajuda, quando Adriana foi diagnosticada com “depressão”. Após dois meses, houve um agravamento do quadro, e ela passou a ter dificuldade para dormir, precisando de ajuda até mesmo para se vestir. Passou a recolher objetos nas ruas e guardá-los, conversar sozinha, rir sem motivos aparentes. Em uma ocasião, tentou ingerir produtos de limpeza, mas foi impedida pela mãe. Passou por três internações psiquiátricas, sendo então encaminhada para o Caps, onde recebeu o diagnóstico de esquizofrenia.

Posteriormente, seu pai faleceu; Adriana teve nova piora e foi internada mais uma vez. Após a alta, só se alimentava se o prato fosse feito pela mãe. Observava-se uma grande interdependência entre mãe e filha. Ambas viviam o luto pela perda do pai e marido, mas a mãe passou a viver intensamente em função de Adriana e do neto, deixando de lado os próprios interesses, embora se queixasse por estar sobrecarregada. Muito ativa em relação à filha, chegava, por vezes, a ter atitudes invasivas e autoritárias. Durante o acompanhamento no Caps, Adriana mostrava-se geralmente passiva, mas, por vezes, resistente às propostas terapêuticas.

De modo geral, a mãe mostrava-se disponível tanto para favorecer a permanência de Adriana no tratamento como para participar dele. Alguns embates surgiam em situações nas quais se insistia na necessidade de maior espaço para as tímidas escolhas e desejos manifestados pela filha.

 

Rosa e sua mãe Ana

Rosa tinha 39 anos, nascera em outro país e tinha um irmão quatro anos mais novo. Permaneceu em seu país de origem com a mãe, enquanto o pai viera ao Brasil a fim de se aperfeiçoar profissionalmente. Quando tinha 4 anos, ela e a mãe mudaram-se para cá, onde nasceu seu irmão.

Por volta dos 14 anos, passou a dizer que “na TV falavam com ela agressivamente”, manifestando vivências autorreferentes. Em função do agravamento de seu estado, a mãe voltou com ela e o irmão para a cidade natal do pai, no país de origem, onde ela iniciou um tratamento psiquiátrico, obtendo melhora dos sintomas após dois meses e conseguindo retomar a escola, mas com novas recaídas.

Ao iniciar a faculdade, houve nova piora do quadro. Passou a dizer que seus professores falavam dela e, na rua, as pessoas dentro dos carros a xingavam. Mesmo com muitos percalços, Rosa formou-se. Teve um namoro significativo para ela, mas prevaleceram raiva e decepções ao final do relacionamento.

O pai permaneceu no Brasil durante todo esse tempo. Aos 23 anos, ela e sua mãe voltaram para se juntar a ele. Os pais mostravam-se cuidadosos com a filha, embora a mantivessem em um lugar infantilizado.

Rosa permaneceu com ideias delirantes persecutórias e alucinações auditivas, referindo com frequência pensamentos suicidas.

Ela contava ter pensamentos de cunho sexual a respeito do pai. Dizia “sofrer de Complexo de Electra”, mas seus relatos eram vagos e imprecisos a esse respeito.

Mantinha com a mãe uma ligação permeada por intensa ambivalência. Dizia tanto que a mãe era a pessoa mais importante em sua vida como, em outros momentos, que esta desconfiava de seus sentimentos pelo pai e desejava sua morte.

Rosa permanece em análise há anos, incluindo o analista no restrito círculo das pessoas próximas, mas demonstrando, aí também, suas divisões internas. Preserva o contato, mas restringe a intimidade possível. Sente necessidade de contar suas experiências, especialmente as dolorosas, mas demonstra uma resistência intensa quanto às intervenções, interpretações e tentativas de maior aproximação. A transferência aponta para um lugar do analista como alguém com movimentos limitados, mais enquanto confidente e testemunha.

 

Refletindo sobre as teorias e a observação clínica

 

Apontar a capacidade de tolerância e o afeto das mães, dirigidos continuamente aos filhos tão imersos em si mesmos, tem sido bem menos frequente do que as múltiplas acusações. As referências históricas mencionadas inicialmente sugerem um olhar incriminador para o papel das mães.

A partir dos casos relatados, o rótulo de “mãe esquizofrenogênica” e o “duplo vínculo” podem ser aventados no primeiro caso, mas não facilmente nos casos seguintes. A mãe de Valter mostrava-se ambivalente (vive em função do filho, mas pode abandoná-lo caso ele aceite propostas e indicações da instituição onde se trata...) e fortemente autoritária. Esta chamativa e dramática situação clínica foi muitas vezes caracterizada como uma “folie à deux”, tal era a indiscriminação entre os quadros da mãe e do filho. A instituição tentava colocar-se como um terceiro que pudesse barrar os excessos sobre Valter, mas com poucos resultados.

 

A mãe é a Lei

O primeiro recorte clínico representa de modo mais claro o que a teoria aponta, especialmente a proposta por Aulagnier. Mãe e filho formam um núcleo único, imune à entrada de um terceiro. O pai de Valter propiciou esta configuração ao abandonar a companheira e o filho muito cedo, e o que se seguiu a isso foi uma mãe que tomou para si todos os cuidados e passou a ter uma postura de exclusividade absoluta, impedindo qualquer espaço que pudesse ser criado entre eles. O filho, por vezes, “ensaiou” um confronto diante de tudo isso, mas sempre recuou, considerando: “mas como vou ficar depois, se ela me abandonar...”. Os fantasmas do desamparo então se presentificaram.

Do segundo relato, depreende-se um cenário distinto, onde a presença de um pai está contemplada, embora não fiquem claros os papéis mais precisos que ele estabelecia tanto com a esposa como com a filha. Esta parecia ter um elo com seu pai, receando suas reações e afetando-se com os percalços de sua saúde e morte. Entretanto, é chamativa a passividade com que se entregou, posteriormente, aos cuidados e decisões da mãe, inclusive quanto a seu filho. Nesse período de sua vida, parece confundir-se com a mãe, deixando-a no comando dela própria. O pai parece ocupar um lugar de importância inicialmente, mas depois a mãe preenche todas as deficiências e inconsistências da filha.

No último relato, também encontramos a presença de um pai, inclusive nas imprecisas fantasias incestuosas de Rosa. Algo que chama atenção no relato é o modo como o pai fica aderido a seu vínculo profissional em todos os momentos da história familiar, enquanto mãe e filha permanecem unidas durante todo o tempo de vida de Rosa. Haveria um princípio que poderia ser novamente acionado, caso necessário: haja o que houver, mãe e filha permanecerão juntas; já o pai, permanecerá fiel a seu trabalho.

 

O laço fundamental e os laços sociais

Diante das dificuldades de graus variáveis apresentadas por aqueles que seriam “fora-do-discurso”, defrontamo-nos justamente com uma ligação que, com frequência, resiste ao tempo e a enormes adversidades. Seria esse vínculo, por vezes simbiótico, resultante daquela impossibilidade? Pode-se aventar a existência de algum tipo de “compensação” nessa interdependência?

Valter mantinha alguns relacionamentos frágeis na instituição. Eram pontuados por algum interesse circunstancial em comum, mas insuficientes para promover um elo mais estável e persistente. Havia sempre a sombra de Vera, atenta a suas possíveis conexões. Isso ocorreu após o relacionamento sexual com o colega da instituição e também no acompanhamento da AT.

Em Adriana, era evidente seu desinteresse pela maior parte das atividades e possíveis elos pessoais. Havia, porém, uma manifestação de desejo em relação a seu filho. Mesmo nesse campo tão particular, a fragilidade, tanto de suas iniciativas como mesmo de sua determinação, permitia que Edith tomasse a frente dos cuidados necessários. Diante do empobrecimento dos laços, restava um esvaziamento.

Estimulada pelas melhores condições socioeconômicas da família, Rosa tinha acesso a inúmeras oportunidades, porém com ganhos muito restritos, pois as vivências persecutórias barravam seus meios de usufruir. Manteve dois namoros que resultaram mais em frustração do que em prazer, e na convicção de que não teria capacidade para envolvimentos amorosos. Rosa mantém a análise entre seus poucos vínculos prolongados. Ao longo de todas essas difíceis experiências, o laço com a mãe permaneceu como o mais necessário e fundamental, mas não sem ambivalências profundas.

Desde Freud, vivências persecutórias e vozes agressivas, que podem provocar isolamento e recusa à convivência social, têm sido consideradas também como tentativas de cura. Entretanto, as consequências dos sintomas mencionados são responsáveis pelo distanciamento e até a reclusão dos psicóticos, e, portanto, um obstáculo à efetivação das possíveis trocas pessoais. Isso, em última instância, potencializa o vínculo com suas mães, como uma última possibilidade de contato.

 

A mãe como possível suplência na psicose dos filhos

Em um uso mais amplo do conceito de suplência, aventamos a perspectiva de as mães exercerem uma função equivalente a essa para seus filhos psicóticos. Em um aspecto mais direto e comportamental, elas assumem tarefas em nome deles (caso Adriana/Edith), e em um sentido menos literal, “emprestam” capacidades de seu aparelho psíquico para que o filho possa se orientar em questões básicas de sua vida (caso Rosa/Ana), podendo ocorrer diferentes graus de invasão.

 

O lugar do pai: ausência?

Em decorrência do que se desenvolveu acima, surge o questionamento mais preciso quanto ao lugar destinado ao pai (ou seu substituto) do psicótico. Bastante referido é o de ausente, que não estaria próximo do filho por alguma barreira na vinculação, por algum impedimento imposto pela mãe ou por algum outro obstáculo qualquer.

Deve-se considerar o lugar do pai levando em conta que haverá sempre uma interdependência entre esse lugar e aquele ocupado pela mãe. As referências teóricas propostas tendem a relativizar o lugar do pai na realidade, antes pensá-lo em termos do lugar que ele ocupa no universo materno, que possibilidades tem de ser um terceiro diante da dupla mãe-filho e, portanto, qual sua condição enquanto limite à completude daquele par. Assim, para a díade que compreende a criança e a mãe ou quem dela se ocupa, o que verdadeiramente importa é o lugar que esta dá ao pai, que advém no seu discurso, nos termos de sua autoridade, ou, em outras palavras, o lugar que ela reserva para si própria na promoção da Lei (BRITO, 2013).

No primeiro dos casos, o filho sabe da existência de um pai, tendo com ele um contato mínimo atualmente. Algo da ordem da realidade (o abandono do pai) associou-se a modalidades de funcionamento da mãe. Cabe considerar que, neste caso, se trata de uma mãe, também ela, psicótica. Ela propõe uma ligação com o filho que dispensa (ou impede) um outro participante. O pai, mesmo existindo na realidade e no universo de Valter, encontra-se excluído enquanto referência interna.

Nas outras duas situações clínicas, o pai está presente, mas deixa dúvidas quanto ao lugar que ocupa no universo materno. Edith e Ana mantiveram seus casamentos; a primeira sofreu com a perda do marido, e a segunda parece configurar uma ligação satisfatória. Adriana dava mostras de se importar com o pai, mas depois se conformou ao vínculo submisso e simbiótico com a mãe. Rosa refere-se ao “complexo de Electra”, mas dando-lhe um sentido próprio: seria uma agressão ao pai e aos homens. Não estaria oculta aí a hostilidade dirigida à mãe, sua referência fundamental, talvez pela preservação do vínculo entre esta e o marido?

 

Considerações finais

 

Uma formulação foi tomando corpo na equipe do Caps a partir das experiências clínicas: “excesso de mãe, falta de pai”. Ao se incluírem três situações clínicas para estudo, naturalmente, o campo torna-se mais complexo, menos propício a generalizações, mas, possivelmente, mais próximo da realidade. E recoloca a discussão se nos defrontamos com a “questão das psicoses”, e não “da psicose”.

Entretanto, como se pode também observar, por vezes a clínica é muito próxima da teoria: alguns casos cabem muito precisamente em certos aspectos teoricamente descritos. Pode-se dizer que cada um dos casos relatados serve para demonstrar aspectos de diferentes teorias, sendo, porém, difícil encaixar todos eles em uma única proposta teórica.

Consideramos a possibilidade de algumas das funções elencadas, como a de alternativa aos laços sociais empobrecidos e a de suplência, representarem formas de reparação, na medida em que as mães possam se culpabilizar pelos sofrimentos e limitações dos filhos.

Caberia, ainda, uma reflexão sobre a possível especificidade do modo de aproximação que liga nossos personagens. Seria ele apenas mais uma das várias versões que se podem constatar ao seguirmos os caminhos percorridos pelas mães junto de seus filhos? Igualmente desafiadoras se mostram as uniões continuadas de mães com filhos dependentes químicos, com doenças orgânicas crônicas, com dificuldades importantes de socialização, deixando espaço para reflexão sobre uma condição geral, que teria encontrado em nosso campo apenas mais uma aplicação. Parece provável que alguns elementos do vínculo materno em nossa cultura estejam aí colocados, mas, ainda assim, pode-se admitir algo de muito particular quando se trata de filhos psicóticos.

As ideias aqui consideradas poderiam também servir como possibilidade de cotejamento com outros campos psicopatológicos não neuróticos, tão presentes na contemporaneidade, como o da Psicossomática, observando proximidades e diferenciações.


 


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ano - Nº 4 - 2022
publicação: 26/11/2022
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Autor(es)
• José Atilio Bombana
Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae

 Psicanalista e psiquiatra. Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. Professor do Curso de Psicanálise desse mesmo instituto. Professor afiliado da disciplina de Psicoterapia do Departamento de Psiquiatria da Unifesp.


Referências bibliográficas

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