ARTIGOS

Nas trilhas da foraclusão


On the trails of foreclosure
Flávio Ferraz

RESUMO
A foraclusão (Verwerfung), mecanismo de defesa que está na etiologia da psicose, participa dos processos psíquicos normais da infância e deixa seus vestígios. Para além de sua atuação maciça na patologia psicótica, está na base de chistes e atos falhos de pacientes estruturalmente neuróticos. Na psicose, ela determina a ruptura do sujeito com as representações ligadas à castração, mas é justamente o fracasso dessa forma de defesa que faz retornar o que foi abolido, determinando uma das formas mais agudas de sofrimento mental.

Palavras-chave: Foraclusão, Psicose, Sofrimento Psíquico.

ABSTRACT
The foreclosure (Verwerfung), a defense mechanism that is in the etiology of psychosis, participates in the normal psychic processes of childhood and leaves its traces. In addition to its massive role in psychotic pathology, it is at the base of jokes and slips of the tongue of structurally neurotic patients. In psychosis, it determines the subject's rupture with the representations linked to castration, but it is precisely the failure of this form of defense that brings back what was abolished, determining one of the most acute forms of mental suffering.

Keywords: Foreclosure, Psychosis, Mental Suffering.


Prólogo

 

Os adoecimentos psicótico e psicossomático muitas vezes são colocados, na literatura psicanalítica, como espécies opostas. De certo modo, isso é compreensível, uma vez que, enquanto um se dá no plano do funcionamento psíquico, o outro se dá no plano do funcionamento somático. Além disso, enquanto na psicose ocorre uma ruptura com o mundo externo (objetividade), na psicossomatose é com o mundo interno (subjetividade) que se verifica seu apagamento.

Entretanto, como postula Dejours (1988), tanto as psicoses como as psicossomatoses fazem parte do espectro não neurótico da psicopatologia, ao lado da psicopatia. Tanto é que ele propõe uma “terceira tópica” do aparelho psíquico para situar o conjunto dessas três formas de patologia, em sua oposição às neuroses, mas ressaltando as diferenças fundamentais entre elas. Na “explosão” da tópica da psicossomatose, isto é, no desencadeamento de uma crise, é o corpo, situado no nível mais profundo do aparelho, que é atacado. No caso da psicopatia, o ataque se dirige ao objeto externo, causa da excitação a ser eliminada por meio do acting out. Na psicose, por fim, o ataque tem por alvo as paredes internas da tópica (barreiras de contato), de modo a se perder a diferenciação entre consciente e inconsciente, vigília e sono, e assim por diante.

Para Dejours (1991), tanto a psicose quanto a psicossomatose têm, na etiologia, a manipulação do pensamento da criança pelo adulto. Na psicossomatose, haveria uma repressão do pensamento e da fantasia perpetrada pelos pais sobre o filho, por meio do desestímulo ao fantasiar ou até mesmo da violência para proibi-lo. Já na psicose, o pensamento da criança sofre um desvio imposto pelos pais, que desautorizam as percepções e conclusões da criança e lhe impõem outra direção do pensar, fazendo-a crer que tal pensar pertence a ela, e não a eles. Bollas (1992), de outra maneira, fez uma descrição semelhante desses mesmos processos, chamando o primeiro de introjeção extrativa (roubo do pensamento) e dando ao segundo a nomeação kleiniana de identificação projetiva.

Em ambos os casos, entretanto, seria possível entrever, segundo Dejours (1991), um processo de foraclusão. Na psicossomatose, haveria uma foraclusão da função (somática), conduzindo o sintoma ao palco do real do corpo. Na psicose, a foraclusão seria da representação, o que daria origem aos delírios e alucinações. Mas o que é mais engenhoso nessa teorização de Dejours é o fato de que ele justapõe ambas as formações psicopatológicas dentro do fenômeno que eu proporia chamar de “somatização generalizada”. Se o sintoma somático se instala em uma função do corpo, produzindo sua disfunção, na psicose não se daria algo tão diferente assim: a função atingida seria o aparelho psíquico, em sua faculdade de pensar. Desse modo, os delírios e alucinações estariam para o sistema nervoso assim como uma gastrite estaria para o aparelho digestório; seriam algo como uma somatização cerebral. Ora, isso faz sentido quando se considera que na psicose ocorrem, de fato, distúrbios no plano dos neurotransmissores.

Não é incomum que, nos escritos psicanalíticos, nos refiramos à psicose e sua metapsicologia por meio da teorização sobre sua diferença ou mesmo sobre sua interface com outras modalidades de padecimento psíquico. Muitas vezes, nós o fazemos friamente, como recurso teórico a nos servir de contraponto ou apoio para o discurso sobre a neurose e a perversão ou sobre a constituição do sujeito e os acidentes do complexo de Édipo. Mas é exatamente dessa abordagem que pretendo me afastar aqui, uma vez que pensar a experiência psicótica no rol das muitas formas que assume o sofrimento humano implica, necessariamente, pensá-la pela via – com o perdão da repetição – da experiência mesma dos sujeitos. Experiência radical, modo de funcionamento que lança o psicótico para longe da segurança de ser (insegurança ontológica, em uma feliz expressão de Laing [1978]), que o analista testemunha na clínica de pacientes que lhe exigem a dura e profunda imersão no universo mais bem definido pela palavra loucura. O contato mais profundo do analista com a experiência do psicótico exige-lhe uma entrega excepcional. É seu aparato psíquico que se empresta a essa aventura estonteante, ou seja, para além da teoria necessária que o sustenta; é seu próprio ser – mente e corpo – que se deixa tomar pelo clima emocional do encontro.

Assim considerando, reuni fragmentos de vivências e pensamentos que traduzissem o que pude até hoje presenciar na clínica psicanalítica com pacientes psicóticos. É claro que, como exigência óbvia que faz com que nossa abordagem não seja ingênua, mas sim balizada pela teoria prévia e, ao mesmo tempo, exigindo-nos a expansão da mesma, partirei de fragmentos de experiências em busca também de algum insight teórico que nos venha acudir. E, a título de antecipação conclusiva, eu afirmaria que a radicalidade da experiência psicótica resulta não apenas do famigerado desligamento da realidade exterior (retirada da libido dos objetos, etc.), mas também decorre do fato de que a foraclusão, ao abolir o outro e sua representação, paradoxalmente lança o sujeito à sensação de parasitação por esse outro que se abole. Conforme a velha fórmula a que tanto se recorre, o que é abolido do lado de dentro retorna do lado de fora. É esse retorno a partir de fora que faz do psicótico alguém atravessado, indefensavelmente, pelo outro. Como veremos, o próprio inconsciente pode ser deduzido por essa presença do outro, como parece querer nos ensinar Lacan (1985 [1955-56]) no seminário sobre a psicose.

Vamos a algumas vinhetas de experiências clínicas.

 

Algumas situações clínicas

 

Trago aqui quatro situações que presenciei, esclarecendo desde já que não se trata, em todas elas, de ocorrências em atendimento de pacientes psicóticos. Para pensar depois na essência do que seria a experiência psicótica, pode ser de grande valia examinar e refletir sobre fragmentos da clínica de neuróticos e de crianças e, até mesmo, de exemplos colhidos na observação da “psicopatologia” da vida cotidiana. A foraclusão, que (des)organiza a vida mental do psicótico, não é estranha aos primórdios da vida psíquica. Aliás, muito pelo contrário. Nem tampouco tem seus vestígios apagados em formações psíquicas que julgamos pertencer à estrutura neurótica. Se não, vejamos.

 

1. Conta-me a mãe de Felipe, um menino de 4 anos que apresentava dificuldade no controle esfincteriano, que, vendo o filho repentinamente urinar na calça, lamenta: “Puxa vida, você está de novo fazendo xixi na calça! Eu não disse que, quando você estivesse com vontade de fazer xixi, era para correr para o peniquinho?”. Ao que a criança responde, meio brava, em defesa própria: “Mas também, ninguém me avisou, né?”. Guardemos por ora essa constatação, que nos será importante na discussão: Felipe quis dizer que a mãe não o informara que ele próprio estava com vontade de fazer xixi.

 

2. Tiago, de 6 anos, leva um pacote de bolachas à sessão. Deixa-o num canto e se põe a brincar, como de costume. Em determinado momento, lembra-se de que a bolacha está ali e passa a olhar fixamente para o pacote, cessando a atividade que vinha fazendo até então. Eu faço um comentário simples e óbvio, do tipo: “Você está olhando para suas bolachas...”. Ele então me responde: “Sim! Você quer que eu coma uma?”

 

3. Joaquim é um moço de quase 30 anos, que busca se afirmar na mesma profissão de seu pai. Isso lhe traz segurança, por poder receber indicações do pai para trabalhos menores que ele, o pai, não tem mais condições de pegar. Ao mesmo tempo, traz-lhe insegurança, por se sentir sempre inferior ao pai e se perguntar, obsessivamente, se este estaria aprovando cada trabalho que faz. Em uma sessão ele me conta, empolgado, que recebera uma encomenda, de uma fonte não ligada diretamente ao pai, para um trabalho de porte maior do que estava, até então, acostumado a fazer. E emenda: “Assim que recebi a proposta, fui correndo ao escritório do meu pai para lhe perguntar se eu queria pegar o trabalho”. Claro que, em se tratando de um paciente neurótico, inteligente, bem-humorado, com uma análise já avançada, bastou que eu repetisse o que ele dissera para que nos puséssemos a rir do belo ato falho que acabara de cometer. Ato falho que nos serviria, por um bom tempo, de paradigma para, em um vocabulário idiopático daquela análise, referirmo-nos simbolicamente ao eixo de seu temor edípico pelo pai.

 

4. Manoel, um médico de 40 anos, com diagnóstico psiquiátrico de esquizofrenia desde os 24, chega transtornado à sessão e me diz: “Hoje eles não estão me dando sossego. Esse monte de diabinhos enfileirados aqui em cima (mostra com a mão o espaço à frente e ao alto de sua cabeça) não param de tirar sarro de mim. Falam muito alto e sem parar, rindo de mim, e não me deixam prestar atenção em mais nada. Estou exausto”. E me pergunta se estou ouvindo a barulheira. Respondo que não, mas que posso acreditar que ele esteja muito incomodado com o barulho que ouve. Ele então me solicita: “Mesmo você não ouvindo, você pode pedir para eles pararem de falar? Porque a mim eles não obedecem. Mas você eles vão respeitar. Por favor, peça. Mesmo que você não os ouça, eu sei que eles ouvem você”. Então eu peço silêncio, e os diabinhos realmente se calam. Mas Manoel me diz que teme pelo momento posterior à sessão, pois os diabinhos poderão se vingar pelo fato de ele ter recorrido a mim, e, sem minha autoridade para fazê-los calar-se, poderão perturbá-lo em dobro, como retaliação.

Manoel tinha surtos psicóticos esporadicamente. Começavam invariavelmente com a alucinação auditiva de falas reprovadoras da mãe, falecida quando ele se formou na faculdade. Em geral, as vozes provinham do lustre de sua casa. Ela o acusava de homossexual e dizia conhecer seus desejos e saber sobre sua vida sexual, o que o deixava atemorizado e exasperado.

 

A essas quatro situações, quero agregar outras três, duas delas bem conhecidas na pena de Freud, e uma terceira retirada do filme Estamira.[1] Referir-me-ei muito rapidamente a essas passagens, apenas como lembrança de fenômenos bastante conhecidos, seja na literatura, seja na experiência do contato com pacientes psicóticos.

 

5. Na terceira seção do artigo “Novos comentários sobre as neuropsicoses de defesa”, que trata do fenômeno da paranoia, Freud (1980 [1896]) conta do caso de Frau P., que, em determinado momento de sua vida, desenvolve uma alucinação. Primeiro, sente que seus vizinhos passam a tratá-la de modo grosseiro e sem consideração. Logo mais, passa a ter alucinações auditivas: “começou a ser importunada por vozes que não reconhecia nem podia explicar. Quando na rua, elas diziam: ‘Esta é a Frau P. Lá vai ela! Onde estará indo?’” (FREUD, 1980 [1896], p. 202). O que queria dizer, de acordo com sua interpretação, que estavam a dizer que ela, uma mulher casada, estava se dirigindo a algum encontro erótico. E que, portanto, estava sendo acusada de adultério.

 

6. No caso de Schreber (FREUD, 1980 [1911]), além do delírio interpretativo com o qual ele procura aplacar e subjugar as fantasias homossexuais inconscientes que o assaltam, há alucinações auditivas acusadoras. Deus o escolhe para todo tipo de provação, emasculando-o, degradando seu corpo e transformando-o em sua mulher. Mas tamanha humilhação se transforma, dentro do sistema delirante interpretativo, na glória maior de ser a própria mulher de Deus e, assim, sendo por este copulado, dar origem a uma humanidade melhor. Mas, durante sua provação, vozes o acusam e humilham: “Diacho de sujeito! O diabo o leve!”; ou lhe dirigem perguntas vexatórias: “Por que você não c..a?” (FREUD, 1980 [1911], p. 54).

O médico Flechsig, por quem Schreber se afeiçoara quando foi por ele tratado, passa a ser sentido como perseguidor. A cadeia de deslocamentos liga então Flechsig a Deus, também perseguidor, alinhando-se inconscientemente à figura do pai severo e repressor. A perseguição a que estava exposto foi definida por Schreber como nada menos do que tentativas de assassinato de sua alma.

 

7. Estamira, personagem real do documentário que a retrata, costuma, de forma súbita e repentina, ser interrompida em seu pensamento e em seu discurso por uma percepção que ela própria – com muita acuidade, eu diria – nomeou de “controle remoto”. Ela está conversando com o interlocutor quando, em um instante, para tudo e diz: “Deu o controle remoto”. Essa entrada em cena do tal “controle remoto” é a forma como ela pode descrever o fenômeno da invasão de sua mente por um terceiro, distante, para o qual ela perde o controle, passando a ser por ele parasitada. É ele que entra em sua cabeça e pensa por ela, impondo-se inapelavelmente e retirando-a do comando de sua mente. Exatamente como um controle remoto programa e domina um aparelho eletrônico.

 

A foraclusão e seus vestígios

 

Vamos discutir as passagens acima à luz do conceito de foraclusão, termo introduzido por Lacan para nomear o mecanismo defensivo que opera na formação psicótica. Sua origem está na palavra Verwerfung, no alemão de Freud,  mais comumente traduzida em português por rejeição. Muito cedo em sua obra, no artigo “As neuropsicoses de defesa”, Freud (1980 [1894]) faz o que foi, a meu ver, sua mais nítida definição de tal mecanismo, comparando-o com as formas de defesa operantes na histeria e na neurose obsessiva e enfatizando sua radicalidade. Quando se defende da dor por meio de uma fuga para a psicose, diz Freud, “o ego escapa da ideia incompatível; esta, porém, é ligada inseparavelmente a um fragmento da realidade, de modo que, à medida que o ego alcança esse resultado, ele se destaca também, parcial ou inteiramente, da realidade” (1980 [1894], p. 72). Ou seja, opera-se uma alteração do ego, de modo que este perde sua integridade, uma vez que a parte que tomou contato com a ideia expulsa ou abolida também quer se destacar do seu todo integral.

No caso Schreber, em 1911, encontraremos a continuidade dessa teorização freudiana sobre o mecanismo da rejeição na psicose, com a consolidação da ideia de que “[...] aquilo que foi internamente abolido retorna desde fora” (FREUD, 1980 [1911], p. 95). Ou seja, o que leva ao insuportável sofrimento psíquico do psicótico é o fracasso da defesa: “[...] o desligamento da libido em relação à figura de Flechsig pode, não obstante, ter constituído o elementar no caso de Schreber; foi imediatamente seguido pelo aparecimento do delírio, que trouxe a libido de volta novamente para Flechsig (embora com sinal negativo, para assinalar o fato de que a repressão se efetuara) e anulou assim o trabalho da repressão” (FREUD, 1980 [1911], p. 97). Este raciocínio será a base de nossa tentativa de compreensão da natureza da fenomenologia do sofrimento psíquico na psicose, que pode se definir como a sensação de uma invasão intolerável.

Em Nasio (1997; 2001) encontramos uma ampliação bastante interessante do alcance do mecanismo da foraclusão, que tem um grande valor para a clínica, da psicose ou não. Sabemos que, nos primórdios, a criança atribui o saber sobre si à mãe ou ao cuidador. Não é que a sensorialidade não seja acionada pela fome, pelo desconforto ou pela vontade de urinar ou evacuar. Mas, à falta de uma representação, seja da sensação corporal, seja de seu próprio eu, é a mãe quem anuncia e nomeia, por ações de cuidado e por palavras que as acompanham, o próprio estado de necessidade: “você está com fome”, “você está com dor”, “você está com vontade de fazer xixi”, e assim por diante. Ou seja, o saber sobre si, inicialmente, provém do outro, e é seu cuidado que fará com que a criança gradualmente o represente e o tome para si. Ora, não seria descabido conceber essa relação inicial como algo que se assemelha ao funcionamento da foraclusão, por mais estranho que isso nos possa soar, inicialmente. Nesse sentido, esse mecanismo defensivo se caracterizaria pela manutenção ou pela não superação desse estado inicial, o que nos dá uma dimensão fenomenológica do que seria mesmo a experiência da psicose.

Diga-se de passagem, esse fenômeno, que, grosso modo, se supera na formação neurótica, nunca tem seus vestígios completamente apagados. Está presente na psicopatologia da vida cotidiana, como atos falhos e chistes. Também é o que fundamenta boa parte do estabelecimento da transferência, na chamada atribuição do suposto saber ao analista, que vem a ser a condição mesma da análise. Pois bem, vamos examinar alguns aspectos das situações que levantei acima.

A primeira vinheta, do caso de Felipe, é cristalina. No treinamento do controle esfincteriano desse menino sem nenhum transtorno psíquico grave, era a mãe quem tinha que lhe comunicar que ele estava com vontade de urinar. Ele já vinha estabelecendo o controle, mas este ainda apresentava falhas; não se completara. Portanto, é do maior interesse clínico e teórico sua resposta à mãe: “ninguém me avisou”. Como disse, não é que a criança não tenha sensações, claro! Mas a representação ainda é rudimentar, e se completa com a enunciação do saber proveniente do campo do outro: “você está agora com vontade de fazer xixi”. A mãe sabe, até porque, como mãe concernida ao cuidado do filho, pode entender toda uma série de sinais comportamentais que a criança dá sobre seus estados corporais e psíquicos.

Na segunda vinheta, Tiago tenta verificar se se encontra no analista o desejo de que ele coma a bolacha. Premido por algum sentimento superegoico, provavelmente ligado à dúvida sobre a adequação do ato de se alimentar dentro da sessão, ele ainda se confunde sobre a localização do desejo. Claro que tem fome ou apenas vontade de comer as bolachas! Mas sua dúvida se expressa não pelo pedido de permissão: “posso comer as bolachas aqui?”, mas pela ideia de que é o analista quem quer ou não que ele as coma.

A terceira vinheta, do caso de Joaquim, em uma lógica semelhante à da precedente, traz um ato falho altamente esclarecedor do funcionamento neurótico dentro da elaboração de um conflito edípico bastante rigoroso. O paciente, um jovem inteligente, criativo e trabalhador, que, há quatro anos, vinha fazendo um trabalho analítico intenso e profícuo, tinha um temor reverencial pelo pai muito acima da média do que se verifica em outros jovens de seu meio. É certo que o pai era um profissional muito bem-sucedido, gozando de fama nacional e até mesmo internacional, e fazia um juízo rigoroso de tudo e de todos, o que não facilitava a vida do filho. Esta questão era central em sua análise. Quando Joaquim faz o ato falho – de valor didático tanto para si mesmo quanto para nosso estudo do inconsciente –, dizendo que fora perguntar ao pai se este queria que ele realizasse um trabalho, em vez de dizer que fora perguntar se ele devia aceitar a proposta, caímos, ambos, na gargalhada. Não se fazia necessária nenhuma interpretação, estava tudo claríssimo.

Uma regressão se processara, tocando o que chamo aqui de vestígio arcaico da foraclusão, ainda que no caso de um sujeito cujo aparato psíquico estava organizado no plano neurótico. A consulta “devo (ou posso) realizar este trabalho?”, que se dá no nível da ação do superego, em um contexto edípico turbulento, mas suficientemente atravessado, resvala inconscientemente para o nível arcaico da colocação do saber sobre si na mente do pai. A aparição de um vestígio da foraclusão, nesse caso, revela-se como oportunidade para um insight, o que só é possível porque se encontra assegurada pela coesão do ego.

Já a quarta vinheta fala de um processo extremo, concernente a nosso objeto central no presente estudo. Aqui estamos completamente dentro do campo da psicose. Manoel é atravessado pelo outro, seu saber e seu sadismo. É reduzido a algo como uma embalagem furada que não tem como se defender da invasão. Tudo o que, no caso de Joaquim, encaramos com humor e concebemos como insight, no caso de Manoel vivíamos como sofrimento extremado, terrível e, por que não dizer, horripilante. O outro era uma presença real, ou seja, era o fracasso da defesa que o trazia, inelutavelmente, para dentro da experiência psíquica, dando ensejo a um sentimento de total impotência. O elemento trágico dessa forma de tormento psíquico decorre da redução da própria mente à condição de terra arrasada, como um país tomado por outro em uma guerra desproporcional.

Nem precisamos de muito esforço para entrever este mesmo processo nos casos de psicose retirados da obra de Freud, no quinto e no sexto exemplos. Frau P. era invadida pela acusação que ouvia na rua por meio de vozes. Seria, como sói ocorrer na paranoia, uma autoacusação original que retornava por meio da alucinação? Como define Lacan (1985 [1955-56]), a projeção, na psicose, não pode ser tomada no sentido comum de sua acepção na Psicologia. Na psicose, ela é “o mecanismo que faz voltar de fora o que está preso na Verwerfung, ou seja, o que foi posto fora da simbolização geral que estrutura o sujeito” (LACAN, 1985 [1955-56], p. 58).

Cabe aqui, apenas incidentalmente, lembrar sobre a discussão a respeito do estatuto do superego na psicose, polêmica que tem uma longa trajetória na história da psicanálise.[2] Em um trabalho elucidativo desse problema, Luque (1983) enumera algumas formas possíveis de ação do superego, de modo comparativo, na histeria, na neurose obsessiva, na melancolia e na psicose paranoide. Sem estender o assunto, o que é de nosso interesse aqui é sua afirmação de que, “na paranoia, o superego perde sua cobertura identificatória e deixa de ser garantia ante a angústia, revelando-se como presença horrorosa” (LUQUE, 1983, p. 652). Sublinho a felicidade da expressão “perde sua cobertura identificatória” para caracterizar esse processo de invasão pela acusação alucinatória.

O mesmo se verifica no caso de Schreber, quando o ego se vê ameaçado de demolição e já não pode fazer barreiras contra o que provém (volta?) do exterior. Nesse processo, conforme Lacan, os delírios e alucinações, em vez de formações sintomáticas, como se verificam na neurose, são, na verdade, uma resposta “num nível mais profundo da realidade” (1985 [1955-56], p. 97). Ou seja, foi exatamente o mecanismo defensivo, que inicialmente visava à fuga da realidade, aquilo que acabou por lançar o psicótico, inapelavelmente, à sujeição bruta a ela mesma. Referindo-se criticamente a um trabalho em que Kris[3] descrevia um caso de psicose, Lacan afirma que a resposta do paciente em questão à interpretação do analista “não mostrava nada”. E conclui: “Irei mais longe – direi que ele não mostra absolutamente nada, que é essa alguma coisa que se mostra” (LACAN, 1985 [1955-56], p. 97). No compreensível jargão dos analistas lacanianos, o sujeito “não fala”, mas “é falado”.

Mais uma vez sem me estender, lembro aqui que essa invasão do outro na psicose tem valor didático sobre a própria origem do inconsciente, de modo geral, a julgar pelo aforismo que reza que o inconsciente é o outro. Mas há modos e modos de elaboração desse outro nas diversas formações estruturais do aparato psíquico e, portanto, na psicopatologia... Mas isso já é objeto para outro estudo.

No caso de Estamira, retratada no documentário de Marcos Prado, o que eu gostaria de mostrar aqui, como já introduzi, é sua genial denominação do fenômeno do delírio de influência, já bastante estudado na Psiquiatria no campo da psicose, ainda que aqui se trate de uma alucinação. Estamira dá-lhe o nome de controle remoto, em um exemplo que, como a poesia, nos fala mais do que páginas e páginas de demonstrações teóricas.

 

À guisa de conclusão

 

O que procurei trazer nesse pequeno estudo foi uma tentativa de compreensão metapsicológica do sofrimento extremado na psicose. Conforme o material clínico e os fragmentos de teoria a que recorri, podemos dizer que tamanho sofrimento psíquico se origina do paradoxo decorrente do fracasso da defesa, com o inexorável retorno do rejeitado a partir do real. O abolido se impõe, contrariando e anulando o trabalho inicial da defesa mais radical a que se pode recorrer, qual seja, a foraclusão.

Essa conclusão de caráter metapsicológico deve nos orientar, e não nos colocar a produzir racionalizações, quando nos encontramos no duro contato com o paciente psicótico em nossa clínica de cada dia. Não são todos os analistas que trabalham com a clínica da psicose, recebendo em seus consultórios pacientes francamente delirantes ou alucinados. Mas, para os que o fazem, não há dúvida de que estão no extremo da experiência de analistas, em franca homologia com o seu paciente que se encontra no extremo da experiência psíquica. Ninguém sai ileso do contato com a psicose, especialmente quando se estabelece genuinamente algo que mereça ser chamado de contato. Sabemos, à exaustão, que, na psicanálise, o instrumento com que o analista trabalha é seu próprio aparato psíquico.[4]

Quero, por fim, jogar alguma luz em um ponto que muitas vezes não se ilumina na teoria da clínica da psicose. Ao lermos os tratados psicanalíticos sobre a ruptura com a realidade operada na psicose, ou – o que dá na mesma – a ausência de alteridade em razão do funcionamento narcísico do psicótico, ficamos com a impressão de que não há contato possível com esses pacientes. Parece que a condição da objetalidade foi danificada irreparavelmente. Mas então, o que dizer do apelo de Manoel para que eu o acudisse, ordenando que se calassem as vozes que o aturdiam? Não digo que o analista não possa ser engolfado pela retirada da catexia libidinal do psicótico (particularmente na paranoia), mas creio que os rudimentos de relação objetal se fazem presentes e são, eles mesmos, os veículos privilegiados de nosso contato e nossa intervenção. Finalizo: mais do que crença, trata-se de uma disposição ética a tornar possível algo como uma clínica psicanalítica da psicose.



 


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ano - Nº 4 - 2022
publicação: 26/11/2022
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Autor(es)
• Flávio Ferraz
Departamento de Psicanálise e de Psicossomática Psicanalítica do Instituto Sedes Sapientiae

 Livre-docente pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo e membro dos Departamentos de Psicanálise e de Psicossomática Psicanalítica do Instituto Sedes Sapientiae e da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental (AUPPF). Autor de diversos livros, entre os quais Normopatia: sobreadaptação e pseudonormalidade (Casa do Psicólogo, 2002).

Notas

[1] ESTAMIRA. (Documentário). Direção: Marcos Prado. Produção: Marcos Prado e José Padilha. Brasil, 2004.

[2] Este ponto é discutido pormenorizadamente no capítulo 2 de meu livro A eternidade da maçã: Freud e a ética (FERRAZ, 1994).

[3] Ernst Kris (1900-1957), expoente da corrente estadunidense da psicologia do ego. No trabalho em questão, o analista relata o caso de um paciente que se acusava de ter cometido um plágio em uma tese acadêmica. Kris coteja a obra do paciente com a tese supostamente plagiada e não verifica plágio algum. Ele então interpreta o paciente no plano do real, afirmando não haver plágio e desqualificando, portanto, a autoacusação. É esse procedimento que Lacan critica, apoiando-se na passagem ao ato que sucedera a intervenção do analista: na sessão seguinte, o paciente contou que, saindo da sessão em que ouvira tal interpretação, se dirigira a um restaurante que servia "miolos frescos".

[4] Este ponto é discutido com maiores detalhes no capítulo 3 de meu livro Andarilhos da imaginação: um estudo sobre os loucos de rua (FERRAZ, 2000).

Referências bibliográficas
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FERRAZ, F. C. A eternidade da maçã: Freud e a ética. São Paulo: Escuta, 1994.

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FREUD, S. (1911). Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranoia (Dementia paranoides). In: FREUD, S. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1980. v. XII. p. 23-105.

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LUQUE, E. M. M. Ideal del yo / superyó: su estructuración y sus implicancias en la clinica. Revista de Psicoanálisis (Buenos Aires), n. 15, p. 637-678, 1983.

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