ARTIGOS

Clínica psicossomática da voz


Psychosomatic clinic of voice
Enio Lopes Mello

RESUMO
Voz é corpo subjetivado, é vibração muscular laríngea singularizada pela expressão sonora do psíquico. Pensar a voz como um gesto corporal nos remete à possibilidade de uma compreensão dos distúrbios vocais também como uma expressão do sofrimento psíquico. De modo análogo às concepções da psicoterapia e relaxamento apresentados por Dechaud-Ferbus (1993), a clínica psicossomática da voz tem interesse na comunicação e na compreensão da expressão sensório-motora dos gestos vocais e suas nuances sonoras, em que o ritmo e a velocidade da passagem de tensão no corpo servirão de substrato para análise das excitações e para-excitações, bem como, de modo especial, na formação de novas representações que viabilizarão a elaboração psíquica. Este trabalho tem o objetivo de apresentar e discutir uma possibilidade clínica da voz, com base no referencial teórico da psicossomática psicanalítica.

Palavras-chave: Voz, Distúrbios, Psicossomática psicanalítica

ABSTRACT
Voice is a subjectified body, a laryngeal muscular vibration singularized by the sound expression of the psychic. Thinking of the voice as a bodily gesture leads us to the possibility of understanding voice disorders as an expression of psychic suffering. In a similar way to the concepts of psychotherapy and relaxation presented by Dechaud-Ferbus (1993), the psychosomatic voice clinic is interested in the communication and understanding of the sensorimotor expression of vocal gestures and their sound nuances, in which the rhythm and speed of the passage of tension in the body will serve as a substrate for the analysis of excitations and para-excitations, as well as a special interest in the formation of new representations that will enable psychic elaboration. This work aims to present and discuss a clinical possibility of the voice, based on the theoretical framework of psychoanalytic psychosomatics.

Keywords: Voice, Disorders, Psychoanalytic psychosomatics


Introdução

 

"O senhor... Mire, veja: o mais importante e bonito, do mundo é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas - mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior. É o que vida me ensinou. Isso que me alegra, montão" (Guimarães Rosa, Grande Sertão: veredas)

 

Pensar a voz como um gesto corporal nos remete à possibilidade de uma compreensão dos distúrbios vocais também como uma expressão do sofrimento psíquico. Esse gesto evidencia o corpo que dá consistência ao sujeito, onde se desenrolam as relações entre o psíquico e o somático, em que o conjunto das reações orgânicas e psíquicas estabelece um lugar de realização do desejo e da representação do inconsciente. O corpo adquire um valor simbólico quando sua realidade biológica é colocada em um sistema de significantes; disso decorre uma possibilidade de distinção entre a conversão e a somatização. Se a conversão nos evoca pensar em um modelo de corpo da representação, a somatização, por sua vez, sugere um corpo do transbordamento, em que o sintoma pode ser compreendido como descargas (FERNANDES, 2005).

Os processos de adoecimento psíquico que se manifestam corporalmente podem ser pensados pela distinção entre as psiconeuroses e as neuroses atuais (FREUD, 2006 [1894] e 1969 [1925]). As psiconeuroses são questões ligadas à sexualidade infantil. Nestas, as excitações psíquicas, advindas dos traumas, são convertidas em sintomas histéricos, enquanto as neuroses atuais remetem a problemáticas da sexualidade atual, que evidenciam um transbordamento e geram sintomas corporais. O transbordamento expõe uma concepção de corpo que nem sempre está vinculada aos sistemas de significantes; dessa forma, recai sobre o corpo como uma descarga, um excesso que atravessa o aparelho psíquico e, não se organiza pela lógica da representação.

Nesse raciocínio, há uma compreensão do psicossoma como uma unidade indivisível do homem, que se altera nas relações com o outro e com o meio ambiente. Essas alterações são expressas por meio de gestos verbais e não verbais, e isso caracteriza o corpo, portanto, toda expressão evidencia a constituição de cada sujeito. Na expressão vocal há algo enigmático, efêmero e transitório que se encerra no momento seguinte a sua emissão, ao mesmo tempo que expõe a presença de um sujeito em determinado lugar (MELLO, BALLESTERO e SILVA, 2015). Dito isso, vale a advertência de Fernandes (2005) a respeito da etiologia das doenças:

 

"[...] a doença orgânica permanece, em princípio, como competência das disciplinas médicas, cabendo a uma abordagem psicanalítica do corpo tudo aquilo que o toca na palavra. Isto é, todas as formas de viver o corpo e de colocá-lo em palavras, mesmo que essa palavra não seja pronunciada com facilidade, mesmo que ela seja mais "atuada" que "falada", mesmo que seja muda, ainda assim se faz presente." (FERNANDES, 2005, p.102)

 

Ao pensar nos pacientes com alterações vocais, parto do pressuposto de que a voz é um gesto corporal que além de estar a serviço da palavra, traz em si as nuances sonoras do psíquico. Essa sonoridade, carregada de signos, resulta da energia do encadeamento de tensão que envolve a musculatura intrínseca da laringe e do fluxo aéreo pulmonar durante a fonação, que é característica da pulsão de cada sujeito. Portanto, o gesto vocal é singular e subjetivado, uma vez que expressa o nível de energia empregado na comunicação.

Segundo Pinheiro e Cunha (2004) a voz é uma pulsão, tal como na acepção freudiana, visto que, tem lugar no corpo e no psíquico, se origina de uma excitação em busca de prazer por meio da interlocução, tem um objeto na comunicação e pode ser inscrita pelo afeto.

O afeto, segundo Freud (1974[1915]) tem três destinos: a conversão histérica; o deslocamento e a transformação direta em angústia, ou seja, a neurose atual.  Porém, existem casos em que o afeto não tem uma representação consonante, ou seja, o sujeito rejeita o universo do simbólico, e com isso rejeita o afeto e seus significantes: essa condição é chamada de forclusão ou foraclusão. Segundo McDougall (2013), a forclusão pode ser considerada a quarta via de destino do afeto.

Na clínica psicossomática da voz é de suma importância compreender que o acesso ao conteúdo psíquico também se dá através do corpo, sobretudo de sua superfície, a pele, onde se originam as sensações sonoras, térmicas, táteis, visuais, olfativas, de posição e propriocepção. Esse acesso permite ao sujeito uma via de estabelecimento da relação consigo e com o Outro e, a partir disso, cria-se uma possibilidade de formação e/ou atualização da imagem de si mesmo (MELLO, BALLESTERO e SILVA, 2015).

Em "Recordar, repetir e elaborar", Freud (1996[1914) explica que a formação da imagem é um fenômeno psíquico no qual o sujeito tem a possibilidade de representar e registrar as percepções das vicissitudes. Porém, muitas vezes as representações internas, tais como a autoimagem, a imagem no espelho ou aquela advinda da relação com o Outro, podem evidenciar conflitos ou cisão entre o ego e suas representações e, como consequência o sujeito não recorda o que reprimiu ou esqueceu, mas pode expressá-lo por meio da atuação.

Em complementação a esse raciocínio, Freud (2001[1926]) em "Inibição, sintoma e angústia" expõe um conceito de oposição entre angústia sinal e angústia automática, que põe em curso uma compreensão dos processos psicossomáticos que podemos estender aos distúrbios vocais.  A angústia sinal, decorrente da libido, deixa de ser o resultado de uma defesa do ego e passa a ser um dispositivo que avisa que ele tem que se defender de uma ameaça, portanto, instaura-se uma dinâmica diante do perigo. A angústia automática, por sua vez é involuntária e advém de reações às excitações internas ou externas, que remetem às experiências mais arcaicas e, em princípio, não podem ser controladas.

Nesse contexto, a angústia é uma reação original ao desamparo diante de um trauma, sendo reproduzida, depois da situação de perigo, como um sinal em busca de ajuda. Portanto, o ego que experimentou o trauma passivamente, acaba por repeti-lo ativamente em versão enfraquecida, na esperança de ser, ele próprio, capaz de dirigir o curso de sua defesa. Essa incapacidade do ego em construir um conflito psíquico pode originar processos psicossomáticos. Ao conduzir esse raciocínio para a compreensão dos sintomas vocais, pode-se inferir que os distúrbios vocais também evidenciam angústias que não puderam ser acessadas, processadas e elaboradas.

Nas palavras de Dechaud-Ferbus (1993) sobre a dinâmica das defesas do Ego, compreende-se que é por meio da sensorialidade e da motricidade das expressões que se pode adquirir um reforço ao aparelho psíquico, dado que a sensação e a autoimagem (imagem sensorial e motora) estão na base da pulsão, ou seja, as excitações deixam traços no aparelho psíquico, enquanto a pulsão organiza e marca. Segundo a autora, quando nomeamos ou promovemos novas sensações no corpo oferecemos ao sujeito uma relação perceptiva de integração sensório-motora por meio da mentalização. Essa configuração é o que permite a instauração do tônus libidinal, que vitaliza o sujeito e permite o enfrentamento e/ou a interrupção do processo de adoecimento, por vezes marcado por uma desorganização progressiva.

A desorganização progressiva, segundo Marty (1993), pode acarretar a desorganização somática, acompanhada pelo rebaixamento libidinal e pela redução de possibilidades do bom funcionamento mental. Nessas condições o pré-consciente fica comprometido e as para-excitações ficam soltas, sem possibilidade de identificação das matrizes de suas angústias; disso decorrem as manifestações somáticas.

Os distúrbios vocais podem ser considerados como manifestações somáticas.  Observo nesses casos, que a qualidade e a quantidade das representações variam em um mesmo indivíduo dependendo das condições de sua vida, sendo que a boa mentalização permite a descarga ou o escoamento das excitações, quando o sujeito dispõe de representações psíquicas variadas e ligadas entre si. Nesses casos, quando surgem novas excitações que aumentam as angústias é possível observar sintomas somáticos vocais que não evoluem para uma condição severa e são reversíveis, sem apresentar risco à saúde. Por outro lado, em sujeitos mal mentalizados as excitações podem ser acumulativas e provocar reações somáticas severas.

Diante do exposto, este trabalho tem o objetivo de apresentar e discutir uma possibilidade clínica da voz enquanto corpo, com base no referencial teórico da psicossomática psicanalítica.

 

Clínica psicossomática da voz: olhar que escuta o corpo

 

Com base nas reflexões teóricas apresentadas anteriormente, proponho uma vertente do olhar que escute as excitações pulsionais e/ou somáticas como um caminho, de viés criativo, nas abordagens terapêuticas junto a pacientes cuja sintomatologia se expressa na voz.

As queixas de pacientes disfônicos, comumente, são acompanhadas de distorções de autoimagem, uma vez que o sujeito não consegue identificar a origem do problema, tampouco controlar sua expressão. Os relatos são permeados de estranhamentos diante do não reconhecimento e da perda de controle da própria voz. Nesses relatos, há os que reclamam da voz como se ela estivesse apartada do próprio corpo; os que expõem uma angústia diante da voz por não haver representação consonante; os que sofrem porque a voz não condiz com a autoimagem; os que se descontrolam porque a voz expõe sentido diferente da palavra. Associado a isso, observo posturas corporais desabadas com perda de tônus muscular e/ou excesso de tensão, que denotam sofrimento e inabilidade para lidar com algo desconhecido e, como consequência, o sujeito vive uma fixação e/ou repetição dos sintomas.

As inconformidades e os estranhamentos se fazem presentes, muitas vezes como representantes de um masoquismo diante do infortúnio vocal: "Por que isso está acontecendo comigo?"; "O que fiz para merecer essa voz?"; "Sou muito desafinado, não sei manter controle"; "Tenho uma voz de gralha"; "Minha rouquidão me assusta e assusta aos outros"; "Eu sei que minha voz vai quebrar quando eu der aquele agudo".

Conforme apontam Rua, Soares e Volich (2017) sobre o masoquismo erógeno primário, há no sofrimento um investimento no desprazer pela pulsão de vida, ou seja, o psiquismo aumenta a carga que gera desprazer na tentativa de pôr em cena o princípio do prazer. Esse investimento desempenha uma função fundamental e estruturante na economia psicossomática. A partir da qual se desenvolvem os recursos para lidar com as vivências internas e externas, para as quais se tornam necessários o acolhimento e o envolvimento sensório motor, cuja finalidade é acessar a memória corporal.

A memória corporal, segundo Fontes (2002), é um recurso importante para acessar lembranças antigas, porque o corpo é testemunha do tempo precoce do sujeito. Em concordância com esse pensamento, Soares (2015) afirma que é através do trabalho corporal e das sensações presentes no corpo que se podem acessar às memórias corporais.

Concebo o som vocal como uma poderosa via de acesso à memória corporal, em que a escuta e o acolhimento devem estar em sintonia não só com os componentes de sentido das palavras e a interpretação das sentenças (semântica), mas também com as sensações sonoras que reverberam dialeticamente no corpo (nos ouvidos) e no psíquico dos interlocutores. Considero imprescindível também estar atento à associação de sons e movimentos corporais, por exemplo: o modo como o paciente entra na sala; se fala enquanto anda; se o tom da voz é grave ou agudo; se o volume é alto ou baixo; se é lento ou agitado; se faz barulho ou é silencioso; se é cabisbaixo ou atento a tudo; se exala cheiro ou fareja; se interage com o ambiente ou está fechado em si mesmo; que cores de roupa veste. Essas características, entre outras, nos direcionam dentro do setting para o estabelecimento da relação e do acolhimento.

Além disso, penso na importância do acolhimento durante a anamnese e na avaliação clínica, ciente de que esse processo, em consonância com Volich (2022), é influenciado por reações inconscientes, através de pensamentos e sentimentos mobilizados no terapeuta pelo seu paciente. Segundo esse autor, a contratransferência do ponto de vista econômico, torna-se uma para-excitação, que mantém a atenção do terapeuta em nível estável e constitui um instrumento de percepção do qual é exigida uma fina mobilidade adaptativa. Portanto, a angústia contratransferencial não é apenas uma resposta ao que se passa com o paciente, mas um instante analítico de constituição da interpretação.

Vislumbro, a partir desse raciocínio, uma possibilidade ampliada de intervenções ou interpretações que favorecem as abordagens corporais e vocais de modo criativo, tal como na acepção winnicottiana. Procuro estabelecer um sistema compreensivo das vicissitudes dos pacientes, dentro de uma perspectiva ontológica e única na experiência do encontro clínico, em que o ponto de partida para a compreensão desse sistema se funda nas condições constitucionais do indivíduo e em suas relações com o ambiente. Diante disso, acredito em uma ação de mão dupla, pois quando se intervém no inconsciente pode-se acessar o corpo e, quando se intervém no corpo/voz, pode-se acessar o inconsciente.

De modo análogo às concepções de psicoterapia e relaxamento apresentadas por Dechaud-Ferbus (1993), a clínica psicossomática da voz tem interesse na comunicação e na compreensão da expressão sensório-motora dos gestos vocais e suas nuances sonoras, em que o ritmo e a velocidade da passagem de tensão no corpo servirão de substrato para a análise das excitações e para-excitações, bem como, de modo especial na formação de novas representações que viabilizarão a elaboração psíquica. Nesse contexto, o manejo clínico tem como desígnio o ajuntamento da sensorialidade corporal sonora aos afetos, permeados pela motricidade nas sensações, percepções e propriocepções, dentro de uma relação sustentada pelo tônus libidinal, através do qual o sujeito poderá dar um destino às suas excitações (FREUD, 2001 [1926]).

 

Vinhetas clínicas

Seguem duas vinhetas de casos clínicos cujas queixas e os sintomas estão expressos na voz. Embora haja, nos dois casos, evidências de sofrimentos psíquicos e um quadro de psicossomatização, o enquadre terapêutico seguiu a demanda dos sujeitos, com foco específico para o tratamento das variações e dos distúrbios vocais.  

 

1 - Minha voz não me representa

Marcos (44 anos) é professor universitário, recém-separado da esposa, sem filhos, alto, magro, de pele clara e olhos azuis. Segundo ele, sua voz não o representa; ele não consegue controlá-la, essa é sua maior queixa. Observo que, embora estivesse fazendo uma queixa, havia um sorriso em seu rosto. Ao ser questionado sobre quais aspectos de sua voz mais o incomodavam, ele não soube responder, apenas disse que as pessoas próximas o consideravam desafinado.

Na minha percepção, a voz de Marcos é semelhante à de um jovem em plena puberdade, que oscila entre agudos e médios, forte e fraca intensidade, sem controle da emissão e da afinação.

Quando ele tinha 10 anos, seu pai engenheiro, ficou desempregado e, devido ao alto custo de morar na capital, a família mudou-se para uma chácara no interior de São Paulo. Ao constatar que a escola pública local não era suficientemente boa para a formação de seu filho, o pai de Marcos tirou-o da escola e assumiu o papel de seu professor e tutor.

Sua mãe se dizia infeliz no casamento e com muita frequência o casal brigava. Nessas horas, ela comparava seu pai ao marido anterior, e não faltavam humilhações e declarações de arrependimento. Porém, embora houvesse muita divergência entre o casal, sua mãe concordava com o marido sobre a educação do filho e fazia valer todas as regras de uma típica escola em sistema de internato. As palavras de ordem de sua mãe eram violentas e assustadoras; qualquer tentativa de não cumprimento de alguma tarefa escolar era motivo de castigos rígidos, tais como: não poder falar; ficar sem comer; ficar trancado em um quarto escuro; não poder ter amigos; não poder sair de casa por meses; entre outros.

Frente a essas agressões, Marcos desenvolveu a habilidade da invisibilidade; não ocupava espaço, não fazia ruído, não chorava, não reclamava, fazia tudo que lhe era exigido e um pouco mais, e assim tornou-se muito dócil.

Aos 12 anos escreveu um livro sobre geometria sob orientação do pai. Com o passar dos anos aprendeu vários idiomas: inglês, francês, alemão e espanhol. Tornou-se um leitor voraz e desenvolveu uma visão crítica sobre todos os assuntos que lhe eram apresentados.

Ao relatar sua história não faltaram emoções, porém, apesar da raiva, da tristeza e do sofrimento, que às vezes embargavam sua voz, Marcos não tinha percepção das alterações timbrísticas, do aumento da taxa de elocução e do volume da própria voz, por conta disso, falava fino, rápido, alto e o tempo todo dizia estar bem.

Marcos não fazia distinção entre uma emissão aguda ou grave, justamente porque nunca tentou falar grosso. Ao fazer um exercício que faz vibrar as pregas vocais em baixa frequência, chamado vocal fry, ele teve ânsia de vômito e uma sensação de abafamento. Pedi que descrevesse esse abafamento, e ele lembrou que quando seus pais brigavam, ele se escondia debaixo da cama e colocava as duas mãos na boca para abafar seu choro, pois, caso fosse pego assistindo às brigas seria punido. Perguntei quem costumava castigá-lo, e ele respondeu que sempre foi sua mãe; seu pai nada fazia. Pedi que descrevesse a voz dela, e ele disse que era uma voz autoritária e forte, que dava muito medo. Ao se dar conta dessas sensações, observou que a voz de sua mãe era forte, enquanto a voz de seu pai sempre foi fraca, e completou: "meu pai tem voz de humilhado".

Considero que a repressão de tantos anos deixou marcas doloridas e inacessíveis na memória corporal de Marcos. Sua voz oscilante expressa a insegurança da espontaneidade e evidencia uma cisão no processo de amadurecimento, estabelecendo, dessa forma, um abismo entre pertencer ou não a si mesmo. Falar fino, alto e rápido tinha uma conotação ansiosa e insegura, típica de quem teme perder o interlocutor.

Provavelmente, as perturbações traumáticas vividas por Marcos estão bloqueando as disposições perceptivas para que ocorram mudanças em sua voz, bem como o seu processamento auditivo está mascarado pelas frequências sonoras do desprazer, e isso provoca incapacidade de reconhecimento de tons diferentes.

Embora haja desejo de mudança na voz, parece que há uma impossibilidade de ressignificar as sensações sonoras, pois existe em seu corpo a fixidez de um padrão de comportamento ainda vigiado pelo trauma. A voz forte e ríspida de sua mãe ecoa como uma mensagem de desprazer e perigo. A memória auditiva/corporal que se apresenta poderá ter novos caminhos de representações quando a percepção ligada a ela for transformada por novas sensações e incorporada por meio da aquisição de novos signos, comandados pelo desejo.

 

2 - Mutismo seletivo: as incógnitas de uma subjetividade

Em meados de março de 2021, fui contatado por telefone por uma mãe, que me explicou que sua filha tinha comportamento antissocial e gostaria que eu a atendesse. O relato da mãe me deixou curioso, pois tratava-se de um caso raro de mutismo seletivo em adulto; em pesquisa bibliográfica encontramos apenas descrições em crianças.

Angélica (29 anos) vive um mutismo seletivo desde os 9 anos. Filha única de pais separados, não fala com ninguém, além de sua mãe, seu avô materno (que mora com elas) e seu pai, apenas por telefone. Angélica não tem celular, não tem Facebook, nem Instagram, mas tem um computador que usa para se corresponder, esporadicamente, por e-mail com uma "colega" do Ensino Médio.

Apesar de estarmos em plena pandemia de Covid-19, fiz questão de que Angélica viesse até minha clínica. Quando ela chegou parecia uma criança imitando sua mãe; o comportamento das duas era muito semelhante, assim como o modo de vestir, de se sentar e de andar. Sua mãe se encarregou de me passar os dados, enquanto ela observava. Após o preenchimento da ficha de anamnese, olhei para Angélica e propus: "Se você quiser ser minha paciente vamos brincar muito nas nossas sessões". Ao que ela, imediatamente, consentiu com um meneio de cabeça.

No início do tratamento Angélica, embora tímida e cautelosa, entrava nas brincadeiras e parecia se divertir. Minha proposta de trabalho era uma tentativa de flexibilizar sua expressão corporal para tentar compreender a singularidade subjetiva daquele corpo que se apresentava tão rígido e com tantos receios, uma vez que a expressão verbal estava interditada ou impossibilitada por algo indizível. 

Durante as sessões, simulávamos cabanas onde nos escondíamos; redes de lençóis onde eu a embalava; linha esticada no chão por onde percorríamos pontes imaginárias cercadas por águas calmas e convidativas ao nado. Todo esse repertório tinha como propósito estimular a fantasia e a criatividade de Angélica, que aos poucos, se colocava à disposição da aventura. Porém, rapidamente, para meu espanto, com o passar das sessões fui percebendo que ela já não se envolvia com facilidade nas brincadeiras quase infantis; parecia que aquela criança crescera e se negava a brincar.

A partir dessa observação, após dois meses com sessões semanais, mudei a estratégia das intervenções. De modo cauteloso e com pouco contato físico, iniciamos uma composição de dança com música imaginária. Paulatinamente fomos criando uma sintonia de movimentos e ritmos corporais que marcavam passos e compassos lentos e sincrônicos. Não havia palavras, mas muita coisa era dita; a linguagem corporal tomara lugar na cena e Angélica, cada vez mais, mostrava sua leveza e deixava evidente uma elaboração da sua percepção sensório motora, que anunciava uma possibilidade de ressignificação e atualização da autoimagem e, por consequência do seu esquema corporal.

Ao longo de um processo curto de terapia, cada vez mais Angélica se impôs nas sessões. Todas as minhas propostas de intervenções criativas (desenhar, fotografar, escrever história, brincar de mímica, entre outras) foram recusadas e, aos poucos, ela deixou claro que gostaria de conversar sem dizer uma palavra. Diante dessa demanda, nas sessões eu emprestava minhas fantasias e sonhos para dizer-lhe sobre as coisas da vida, das relações e do mundo que nos circunda. Devolvia para ela minhas percepções a respeito de suas escolhas e, observava nesses momentos que ela concordava sobre a existência de uma força dentro dela.

Por enquanto, não é possível saber o que aconteceu no passado de Angélica, portanto, as intervenções não têm uma finalidade de acertar ou não, ou seja, não há uma preocupação em fazer algo para dar certo.

Compreendo que a simples relação que estabelecemos durante as sessões garante uma condição real de relacionamento; em que o meu desejo enquanto terapeuta, se converte em uma oportunidade de mudança do lugar subjetivo por meio das manobras clínicas, que vão na direção não de desvendar a incógnita, mas de oferecer a ela uma oportunidade de ter diante de si, um sujeito angustiado, que imagina, que deseja e aposta no seu desenvolvimento. Assim, eu existo para ela como uma possibilidade de estruturação subjetiva, através da minha contratransferência.

  

Considerações finais

Voz é corpo subjetivado, é vibração muscular laríngea singularizada pela expressão sonora do psíquico.  Pensar a voz como um gesto corporal nos remete à possibilidade de uma compreensão dos distúrbios vocais como uma expressão do sofrimento psíquico.

O gesto vocal, além de estar a serviço da palavra, traz em si as nuances sonoras do psíquico carregadas de signos, em que a energia do encadeamento de tensão que envolve a musculatura intrínseca da laringe e do fluxo aéreo pulmonar, durante a fonação, corresponde à pulsão de cada sujeito. Portanto, o gesto vocal é singular, subjetivado e caracteriza a economia psíquica, uma vez que expressa o nível de energia empregado na comunicação.

A terapia do corpo e da voz baseada nos constructos teóricos da psicossomática psicanalítica tem como desígnio o ajuntamento da sensorialidade corporal sonora aos afetos, permeados pela motricidade nas sensações, percepções e propriocepções, dentro de uma relação sustentada pelo tônus libidinal, através do qual o sujeito poderá encontrar uma via psíquica para as tensões corporais e vocais.

Nessa clínica psicossomática a voz é compreendida como uma expressão subjetiva e identitária do sujeito. Tudo que é expresso, seja pela forma ou pelo conteúdo, pode criar redes associativas por onde circulam afetos. Essas redes se constituem a partir das ressonâncias sonoras e semânticas; além disso, o efeito produzido no corpo de quem escuta provoca uma ressonância em quem emitiu a sonorização, e, desta forma, se estabelece uma consonância simbólica.


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ano - Nº 4 - 2022
publicação: 26/11/2022
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Autor(es)
• Enio Lopes Mello
Departamento de Psicossomática Psicanalítica do Instituto Sedes Sapientiae

 Mestre e doutor em Fonoaudiologia na área de voz pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), especializado em Psicossomática Psicanalítica pelo Instituto Sedes Sapientiae, em Cadeias Musculares e Articulares Método GDS pelo Institut de Chaines Musculaires et Articulier - Bruxelas. Membro do Departamento de Psicossomática Psicanalítica do Instituto Sedes Sapientiae.

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