RESENHA

O trabalho analítico de Sabina Spielrein: dos bastidores à ribalta. CROMBERG, Renata Udler. (Org.). Sabina Spielrein: Uma pioneira da psicanálise. Obras Completas, Volume 2: Blucher, 2021.

Eloisa Tavares de Lacerda


 Introdução

 

Não permitir o esquecimento. Eis a função ética da escrita e o que acreditamos ser a aposta da psicanalista Renata Cromberg: manter em cena o trabalho de Sabina Spielrein, ao mesmo tempo que se mostra, como pesquisadora e escritora, parte integrante dessa encenação.

O segundo volume de Sabina Spielrein: uma pioneira da psicanálise faz parte de uma coletânea de três volumes em que se relatam desde experiências pessoais e profissionais, como o importante e acolhedor diálogo com o “pai da psicanálise”, até reflexões teórico-clínicas também voltadas para a primeira infância. Atenta ao registro das várias dimensões do movimento pessoal e profissional de Spielrein, Cromberg nos mostra seu próprio movimento e sua tenacidade em levar adiante uma pesquisa ampla e profunda, movimentando uma temática que permanece atual: o(s) feminino(s)/feminismo(s). O tecido de sua leitura revela a trama de uma psicanalista mulher que não se conformava à burguesia da época em que vivia, e talvez – ou certamente – por isso, todo o seu talento e a criatividade inaugural sobre temas que nos são tão caros hoje em dia tenham ficado por tanto tempo invisíveis.

Dada a riqueza de temas de pesquisa de Spielrein, esta resenha pretende privilegiar um dos aspectos do pioneirismo dessa autora: o de ter se debruçado sobre a psicanálise da criança, buscando compreender o universo infantil. Destacam-se, no aspecto aqui explorado, as questões da linguagem, ou do nascimento desta em suas dinâmicas não verbais – sensorialidade na comunicação do bebê –, verbais e, ao mesmo tempo, simbólicas.

Para referendar este livro como leitura obrigatória para clínicos de campos interdisciplinares, que Sabina Spielrein se empenhou tanto em ressaltar – medicina, linguística, reabilitação, psicanálise e educação –, elencamos pelo menos três razões: a primeira é porque, nesses relatos, o leitor de qualquer uma dessas áreas específicas já se sente compartilhando suas questões com Renata Cromberg, quando destaca que essa autora “nunca se furtou a se afirmar... na busca de reinvenções transdisciplinares da psicanálise” (CROMBERG, 2021, p. 74). A segunda razão está no fato de leitores que são “profissionais mais experientes” se sentirem interrogados ou identificados com esse pioneirismo. A terceira, porque o livro, como o próprio nome diz, põe na berlinda uma questão que é central não somente na psicanálise, mas em profissões nas quais o espaço para o alcance da visão feminina se deu de forma muito lenta e, inicialmente, bem pouco legitimada. E, como se tais razões não fossem suficientes, também porque apresenta uma questão de tamanha envergadura em uma perspectiva interdisciplinar, ainda tão inusitada para a época.

Em seu movimento de escritora e descobridora de uma autora pioneira da psicanálise, Renata Cromberg nos faz acompanhá-la – com sua escrita prazerosa e muito bem articulada – na construção desse importante percurso “pioneiro e invisível, como as mulheres eram naqueles tempos”, descrevendo ambientes pessoais e profissionais de Sabina, em países e cidades, ao mesmo tempo que nos apresenta esse trânsito profissional que atravessa ambientes os mais diversos, como hospitais, com profissionais que “se movimentam em torno da alma infantil”,[1] em trocas importantes, dada a relação de acolhimento do “pai da psicanálise” para com Sabina.

 Nesse desenrolar de ensaios e artigos, o que se vê é a construção de um amplo tecido de reflexão sobre os primórdios da psicanálise, do sujeito – ou mesmo sobre seu nascimento, já nos direcionando para a compreensão de que “corpo-psiquismo-linguagem nascem juntos”! Essa é uma forma bem atual de falar, e outros psicanalistas, que, como nós, se ocupam do tratamento psicanalítico do bebê e de seus pais, valem-se dessa expressão quando falam sobre o trabalho em tempos tão primeiros na vida de um bebê ou criança muito pequena. Além disso, dá suporte/contorno também a mães e pais – muitas vezes muito desconfortáveis nesse novo lugar que passam a ocupar na vida, na qual se conheciam apenas como filha/filho e mulher/homem.

 

Sobre linguagem

 

A publicação do resumo de sua fala inédita expressa uma posição de que a linguagem infantil e suas transformações nascem não apenas de um desenvolvimento psicológico, mas da falta ligada ao inconsciente, falta ligada à percepção do objeto que proporciona prazer derivado do ato de mamar e que é percebido no exterior de si, na passagem do autoerotismo a um heteroerotismo (erotismo voltado para o outro) incipiente. (CROMBERG, 2021, p. 162)

 

Nesse trabalho, de importante interlocução interdisciplinar, a autora já movimentou grandes articulações teórico-clínicas sobre a compreensão da linguagem a partir de sua sensível percepção e capacidade de agregar fazendo somas, e não subtrações. Sabina valorizou muito seu fazer clínico e teórico nos mais diversos espaços pelos quais circulou, tão bem registrados por Renata nessa coletânea, já que, em sua época, talvez por ser mulher, não tenha sido tão valorizada. Ao se tornar mãe, por uns seis anos, “precisou desistir” de trabalhar para se ocupar de sua filha, que apresentava problemas respiratórios importantes. Casada, mas distante de seu marido, que continuou na Rússia, a autora morou em vários lugares/cidades da Europa. Naquela época, Sabina já reconhecia a importância da relação mãe(pai)bebê, mesmo descrevendo essa importância de uma forma mais afeita à sua época. Nos tempos atuais, é possível pensar e reconhecer suas preocupações e conquistas com essa relação no trabalho da psicanalista Regina Orth de Aragão, autora do livro Tornar-se mãe de seu próprio filho (2011).

Ao tomar para mim o desafio de resenhar um livro como esse, meu diálogo passa a ser não apenas com o livro, mas com o modo como ele foi construído. Trata-se de uma coletânea de ensaios e artigos organizados pela autora, a psicanalista Renata Cromberg, encampando nesse segundo volume todo o universo infantil da linguagem, dos desenhos, brincadeiras, sonhos e desejos inconscientes. Esse tema, já contemplado por Sabina em seu pioneirismo precursor, passou a ser foco da atenção de muitos autores e psicanalistas pós-Freud que vinham se debruçando sobre esses temas até os mais atuais, que permanecem nessa junção: nascimento do corpo-psiquismo-linguagem, de autores como os psicanalistas Bernard Golse e Valerie Desjardins (2003, p. 14-29), que levam em conta os precursores corporais de acesso à linguagem no Programa Internacional pela Linguagem da Criança.[2]

A partir da prática clínica,[3] surge a necessidade de combinar dois campos do saber: o do desenvolvimento infantil (Medicina – pensando nas questões orgânicas, já que sabemos que o bebê apresenta sintomas com e no seu corpo) e o da constituição do sujeito (Psicanálise). Essa complexa combinação indica duas direções: 1. a da movimentação-organização corporal – que reuniria Psicanálise e desenvolvimento, tal como proposto por Sabina Spielrein, falando da “origem psicanalítica da linguagem” e relacionando corpo e movimento do bebê à Psicanálise e à Medicina; e 2. a da linguagem, que reúne Psicanálise e Linguística.

Na primeira direção, é possível dialogar, por exemplo, com a psicanalista Renata Udler Cromberg, que, em sua tese de doutorado, trabalhou com os textos de Sabina Spielrein:

 

Pude perceber que a origem psicanalítica da linguagem, que Spielrein tenta explicitar em dois textos, não apenas faz a ligação psicanálise e linguística já em 1920, como traz algumas das respostas às problemáticas apontadas apenas em 1939, por Jakobson. Ela antecipa a ligação entre psicanálise e linguística que Lacan faria a partir dos anos 40. Certamente trabalhando em 1919, em Genebra, no principal centro do mundo em estudo de distúrbios de linguagem, ela deveria conhecer o curso de linguística geral de Saussure, recentemente editado em Genebra. Sendo russa e tendo seus dois irmãos, intelectuais de destaque, morando lá, certamente ela também já teria ouvido falar de Roman Jakobson e as inovações que trazia. (CROMBERG, 2008, p. 3)

 

Segundo Cromberg (2008, p. 5), Spielrein defende o ponto de vista psíquico atravessado pelo desenvolvimento sensório-motor do bebê[4] na gênese dos processos de linguagem e pensamento sob a ótica da Psicanálise. Spielrein aponta a necessidade de se pensar o aparelho fonador e, portanto, o funcionamento do corpo do bebê, como sede da linguagem, já que o bebê, em suas tentativas de reproduzir as sensações prazerosas da mamada, acabaria por emitir os sons que acompanham os movimentos musculares da sucção. A voz viria privilegiada pela pulsão oral, que, por sua vez, investiria de erogeneidade a zona bucal do bebê e também os tratos respiratório e digestivo que lhe servem de entorno, já que esses aparatos, antes de servirem à linguagem, servem às funções vitais de respiração e alimentação. “A partir daí, o outro parental entra no campo da prosódia, que introduzirá estes sons no campo da significação” (CROMBERG, 2008, p. 5). Esse trabalho vem ao encontro das questões levantadas nesse projeto (e nos trabalhos de outros autores mais atuais): esse movimento do bebê em sintonia com o da mãe – que produz a erotização nos atos de escuta e fonação do bebê – acarretará a possibilidade do laço que une bebê e mãe em um circuito afetivo fundamental para o nascimento de um sujeito. Quanto à movimentação-organização corporal, que juntaria Psicanálise e desenvolvimento, Cromberg afirma que 

 

[a] origem da linguagem é colocada na positividade do encontro dos corpos, entre boca e seio e nas sensações prazerosas que aí são produzidas, às quais se quer retornar. No início do verbo era a ação. Há um longo caminho positivo antes que a linguagem substitua a coisa. Caminho sensório-motor e perceptivo, caminho da positividade do corpo. (CROMBERG, 2008, p. 6)

 

Foi graças ao que já ouvia da autora, em tempos idos na USP, que resolvi me movimentar nesta escrita, fazendo pequenas referências a diferentes autores que se debruçaram sobre a linguagem infantil na contemporaneidade, pensando e fazendo a clínica sempre levando em consideração a primeira relação/laço com seu primeiro objeto: o corpo do bebê, em sua funcionalidade, vai amadurecendo seu Sistema Nervoso Central a partir das funções sensoriais/perceptivas, das funções motoras que acarretam o desenvolvimento neuro-sensório-motor que vai se dando via relação do bebê com seu primeiro objeto. O corpo do bebê, inicialmente pura sensorialidade, pede leitura para que se sinta transmitindo algo à sua mãe, seu primeiro objeto, que, ao responder prontamente a seus apelos ou servir de anteparo a seu quantum de excitação, vai mantendo e amadurecendo esse circuito da sensorialidade através do corpo a corpo mãe/bebê, com o ritmo calmante de um embalar para dormir ou mesmo com palavras e olhares que reinstauram a calma e a tranquilidade que o bebê havia perdido, plasticidade neural e relacional se desenvolvendo simultaneamente... Essas questões me permitem dar relevo ao alcance do pioneirismo de Sabina, que nos mostra, com suas reflexões, que sua “escuta do bebê ainda mamando no seio de sua mãe” estava mais ligada ao vínculo precoce das ações/funções do bebê nas mamadas, por exemplo, e não à Neurologia, mesmo sendo ela uma médica!

Sabina Spielrein se interrogava sobre questões psicanalíticas ainda não “acordadas”. Não se deixando deter pelas delimitações classificatórias, permitia-se fazer do pensamento teórico ocasião de certezas e contingências. Pondo-se à escuta do que a interrogava, já constatava que os sons bilabiais iniciais do bebê em seu desenvolvimento da linguagem – ainda sensório-motora, se davam pelo ato de sugar – mãmãmã/pápápá/bábábá. E isso já me trouxe a compreensão de seu pioneirismo e me fez pensar suas descobertas. E me levam também a ouvir, um século depois, os ecos desse trabalho em Geneviève Haag, Marie Claire Busnel, Caroline Eliacheff, René Roussillon, Víctor Guerra, Alberto Konicheckis, Fonagy, Myriam Boubli, e outros mais, que não cito aqui para não me alongar nesta resenha.

Chegando ao final, percebo que privilegiei basicamente os momentos primeiros da vida de um sujeito: linguagem, corpo, psiquismo nascente, simbólico, pensamento, psicanálise com crianças, autismo – muito marcados nesse segundo volume – como forma de ressaltar o pioneirismo dessa autora, que Renata Cromberg, escritora dos dois volumes, generosamente nos oferta, entrelaçando seus textos com os de Sabina Spielrein. O livro se mostra muito atraente e importante para quem trabalha com crianças desde seus primórdios, e também para os psicanalistas que se deparam com os bebês/crianças que seus analisandos adultos um dia foram, ou seja, os pacientes que encarnam o universo contemporâneo de questões na clínica nossa de cada dia.



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ano - Nº 4 - 2022
publicação: 26/11/2022
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Autor(es)
• Eloisa Tavares de Lacerda
Departamentos de Psicanálise e de Psicossomática Psicanalítica do Instituto Sedes Sapientiae

Psicanalista. Membro dos departamentos de Psicossomática Psicanalítica e de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. Fonoaudióloga. Mestre em Distúrbios da Comunicação pela PUC-SP. Professora aposentada da PUC-SP. Implantou e coordenou o curso "Clínica Interdisciplinar com o bebê: A saúde física e psíquica na primeira infância" da Cogeae/PUC-SP (2003-2010). Implantou e coordenou o Serviço de Assistência Relação Pais/Bebê da Derdic/PUC-SP (2004-2011). Implantou o Grupo de Estudos Clínica Psicossomática dos Primórdios do Departamento de Psicossomática Psicanalítica do Instituto Sedes Sapientiae. Autora de dois livros e diversos artigos e capítulos. Organizadora do livro Clínica da constituição do laço: Corpo-linguagem-psicanálise. Atende em consultório particular. E-mail: elolacerda@uol.com.br


Notas

[1] "Contribuições para o conhecimento da alma infantil" (CROMBERG, 2021, p. 75-103).

[2] PILE - Programme International pour le Language de l'Enfant (Paris, França.)

[3] Dos atendimentos feitos no Serviço de Acolhimento Relação Mãe-Bebê da Derdic/PUC-SP, implantado e coordenado pela psicanalista e fonoaudióloga Eloisa Tavares de Lacerda, de 2004 até 2011 (antigo Projeto NiBb).

[4] Esse "atravessamento" e essa "dupla inserção" para se pensar a aquisição da linguagem já é uma leitura dessa pesquisadora dos escritos de Spielrein, e aparece em itálicos neste parágrafo.

Referências bibliográficas

ARAGÃO, R. O. Tornar-se mãe de seu próprio filho. Curitiba: Honoris Causa, 2011.

CROMBERG, R. U. Algumas reflexões sobre as razões do recalque da importância e pioneirismo da obra de Sabina Spielrein. Tese (Doutorado em Psicologia) - Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008. 

DESJARDINS, V. A respeito das crianças que não conseguem encontrar seus interlocutores: reflexão sobre o autismo infantil e sobre os precursores corporais e interativos do acesso à linguagem e à comunicação, 2006. Tradução inédita de Júlia Castilho e Regina O. Aragão do original francês: A propos d'enfants qui nes peuvent pas rencontrer leur interlocuteur: réflexionsur l'autisme infantile et sur les précurseurs du langage. In: GOLSE, B. (Org). Le développement affectif et intellectuel de l'enfant. Paris: Editions Masson, 1995.

GOLSE, B.; DESJARDINS, V. Dos corpos, das formas e do ritmo como precursores da emergência da intersubjetividade e da palavra no bebê: uma reflexão sobre os começos da linguagem verbal. Revista Latinoamericana de psicopatologia fundamental, São Paulo, Escuta, v. VIII, n. 1, p. 14-29, 2003.

 

 


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