ENSAIOS

Neuroses atuais e adicções: hábito, psicossoma e técnica ativa

Decio Gurfinkel


A psicanálise é um verdadeiro combate contra os hábitos.

(FERENCZI, 1993 [1925], p. 350)

 

O psicanalista que, hoje, negligencia o atual, está perdendo o bonde da história. Escutar o eco do anacrônico atual na psicanálise “contemporânea” me parece uma tarefa fundamental.

Penso que, para abordar a questão do atual em psicanálise, é recomendável fazê-lo de modo crítico e amplo, considerando tanto sua dimensão psicopatológica quanto os âmbitos histórico e metapsicológico. Pois, curiosamente, se o “atual” nos remete à noção freudiana de “neurose atual”, ele também se faz presente no “fator atual” da série etiológica das formas clínicas e, ainda, em certas caracterizações da clínica praticada no tempo presente – a chamada “psicanálise contemporânea”.

Neste trabalho, dedicado ao estudo da relação entre as neuroses atuais e as adicções, o tema do atual comparecerá sob esses diversos pontos de vista. Partindo de uma revisão crítica da clínica das adicções – muitas vezes tomada como um quadro típico da psicanálise contemporânea –, faremos uma escavação regressiva em busca das origens da metapsicologia do atual nos primeiros trabalhos de Freud – em particular em suas formulações sobre a neurose atual, mas também, indo ainda mais atrás, em trabalhos do período pré-psicanalítico da hipnose. Recortaremos, deste material, a hipótese da masturbação como o “vício primário”, a discussão a respeito da toxicidade da libido (repensando, a partir dela, o químico, o sexual e a experiência de prazer) e algumas considerações a respeito da teoria das neuroses atuais como precursora da chamada psicossomática psicanalítica – assim como, também, de uma psicanálise das adicções.

Com este material em mãos, tomaremos como foco seguinte do nosso estudo o tema do hábito, sugerindo que neste se encontra uma fonte fundamental para compreendermos a articulação entre neuroses atuais e adicções. Para tanto – e dando um pequeno salto para outra camada no tempo da história da psicanálise –, examinaremos de modo detido o engenhoso trabalho de Ferenczi dedicado ao tema, que se articula de modo estreito, por sua vez, com sua polêmica, mas fundamental pesquisa sobre a chamada “técnica ativa”. Não devemos nos esquecer, no entanto, que o espírito e as origens de tal proposição se deram em um diálogo fundamental entre Freud e Ferenczi – que iremos aqui retomar brevemente –, no qual a questão da abstinência encontra-se no centro da discussão. Ora, é justamente na metapsicologia do hábito proposta por Ferenczi que reencontraremos questões fundamentais do campo das adicções, dentre as quais se destaca o que aqui escolhemos denominar “neo-pulsões”. Em seguida, e considerando as adicções como parte do leque psicopatológico mais amplo compreendido por uma “clínica do agir”, proporemos considerar a problemática do caráter como precursora de tais formas clínicas, o que nos leva a compreender o quanto uma técnica ativa pode ser reconhecida como modeladora dos enormes desafios envolvidos no manejo de pacientes adictos, assim como no âmbito mais amplo de uma clínica do agir. A problemática da abstinência e a proposição de uma “cura de abstinência” será para onde, por fim, a discussão da técnica finalmente nos conduzirá; aqui nos encontraremos com um significativo paralelo entre inatual e atual e técnica clássica e técnica ativa.

A aproximação aqui proposta entre neuroses atuais e adicções tem como pano de fundo – e fundamento metodológico – o conceito de “matriz clínica”. Com este termo entendemos uma estrutura complexa de construções teórico-clínicas que tem com centro e como referência última uma determinada forma psicopatológica; as diversas matrizes clínicas que podemos reconhecer e descrever compõem, em seu conjunto, o alicerce a partir do qual se deram os desenvolvimentos da psicanálise. Tal concepção foi desenvolvida em profundidade por Renato Mezan (2014), que descreveu quatro grandes matrizes clínicas na obra de Freud – a da histeria, a da neurose obsessiva, a da melancolia e a da psicose. Em meu próprio trabalho (GURFINKEL, 2001 e 2017), tenho adotado tal modelo epistemológico, e propus alguns complementos: sugeri acrescentarmos a estas quatro matrizes clínicas outras duas: a do fetichismo e a das neuroses atuais. No entanto, cabe a ressalva de que estas não tiveram a mesma centralidade e o mesmo desenvolvimento na obra de Freud, mas podem ser reconhecidas como ponto de partida marcante de certos troncos psicopatológicos que se estabeleceram e fortaleceram no campo pós-freudiano.[1] Hoje eu acrescentaria ainda as neuroses narcísicas como uma outra matriz clínica significativa, cuja origem deve, sem dúvida, ser reconhecida no pensamento freudiano, das quais tantos derivados importantes reencontramos na chamada psicanálise contemporânea.

Mas é fundamental sublinhar que as neuroses atuais não são a única matriz clínica que proporcionou os alicerces para se erigir uma psicanálise das adicções. As adicções constituem uma forma clínica de tal forma complexa e multifacetada que merece, a meu ver, que concebamos seu estatuto psicopatológico sob o paradoxo da unidade na diversidade.[2] Por um lado, reconhecemos uma unidade que compõe a adicção, unidade esta constituída por um conjunto de parâmetros fenomenológicos, psicodinâmicos e de modos de funcionamento psíquico singulares que justificam considerá-la uma categoria própria dentro de uma psicopatologia propriamente psicanalítica; mas, por outro, é evidente que existem diversos tipos ou grupos de adictos, e que neles reconhecemos interfaces diversas com as estruturas clínicas classicamente descritas, tais como a perversão e o fetichismo, as neuroses narcísicas e mesmo as neuroses e as psicoses – assim como, também, com os casos fronteiriços, com os pacientes ditos psicossomáticos e normopatas, e com as neuroses atuais! Assim, é fundamental termos em conta que, no presente estudo, elegi como foco um dos ângulos psicopatológicos pertinentes a uma abordagem das adicções. Trata-se, sem dúvida, de um ponto de vista pouco explorado, mas que acabou por se mostrar igualmente importante e esclarecedor para a compreensão de suas dinâmicas.

Ora, é inegável que a clínica das adicções, juntamente com outros tantos quadros, recoloca em cena a importância do “fator atual”, o que nos convida a redesenhar com mais nitidez, na teoria e na prática da psicanálise, o que poderíamos denominar uma dialética entre o inatual e o atual. O inatual, enquanto foco incialmente privilegiado na história da psicanálise, faz referência direta a uma “clínica do recalcamento”; já a consideração pelo fator atual nos leva a uma ampliação considerável de tal modelo. No que se refere às adicções, tal ampliação pôs em relevo temas tais como a articulação psicossomática e o quimismo do sexual, e retomou com ênfase particular uma dimensão dos processos psíquicos que voltou a ganhar um relevo insuspeitado: o econômico, o quantitativo e o aspecto energético do impulso pulsional.[3]

Pois bem: para abrir a discussão sobre o atual – em seu complexo entrecruzamento entre psicopatologia, metapsicologia e clínica –, elegi como ponto de partida a questão das chamadas “novas adicções”.

 

O “atual” e as “novas adicções”: psicopatologia contemporânea?[4]

 

Em se tratando das ditas “novas adicções”, a realidade social e a realidade clínica falam por si mesmas. Pois hoje se observam em abundância vícios pela internet, pelo trabalho, por comida, pelo sexo, pela relação amorosa e afetiva com o outro, por fazer compras, pelo uso do celular, pelos jogos eletrônicos, pela pornografia digital e toda a gama de entretenimentos via rede ao lado dos “velhos” vícios por álcool e substâncias psicoativas, pelo jogo, pela televisão, por livros, etc. A partir desta constatação gritante e inequívoca – ainda que sujeita a uma revisão crítica , por vezes se tem chegado à ideia das “novas adicções”.

Há alguns anos já encontramos uma literatura sobre o assunto. Um bom exemplo é o livro de Guerreschi[5] (2007). O autor aborda tais quadros segundo a distinção entre uso e abuso ou entre “normalidade e patologia” , e parte, por exemplo, de uma breve história da internet e se apoia em diversas pesquisas, muitas delas quantitativas. Ele discute a questão diagnóstica e faz uma tentativa de definição, seguindo os modelos do DSM-IV das classificações de dependência química ou jogo patológico: os “sintomas” são detalhados, seja em termos de “tolerância” e “reação à abstinência”, seja em termos de suas características e efeitos (preocupação excessiva com internet e empobrecimento social e de trabalho). Com as definições surgem, naturalmente, as siglas, como a PIU – “uso problemático da internet” , assim como a discussão da comorbidade, na qual se destaca a significativa aproximação com a depressão. O tema é, então, desenvolvido e desdobrado em diversas direções: as consequências físicas deste tipo de adicção (transtorno do sono, fadiga, baixa imunitária, alimentação irregular, etc.), as consequências familiares, os problemas no trabalho e na escola e até os problemas financeiros dela decorrentes; o abuso da internet no local de trabalho; a adicção ao sexo virtual, bastante frequente, que é discutida em detalhes em termos de sua aproximação com as perversões e de seu impacto na família e na relação com os filhos; a adicção a relacionamentos virtuais; os adolescentes e universitários como grupos de risco; e a “sobrecarga cognitiva” relacionada à adicção da internet, à maneira de um “fast-food” de informações.

Bem, a abordagem do autor apoia-se em uma combinação entre os modelos sistêmico-relacional e cognitivo-comportamental, distanciando-se da abordagem psicanalítica por nós adotada. Causa-nos especial estranheza, entre diversos aspectos, a aproximação proposta por Guerreschi entre as “novas adicções” e o chamado “transtorno obsessivo-compulsivo” (TOC), justificando um modelo de tratamento comum. A confusão entre dois tipos de quadros ou de funcionamento psíquico tão diferentes – e até opostos, em certos aspectos – é hoje frequente na psiquiatria descritiva, que desconhece os aspectos psicodinâmicos das formas psicopatológicas.[6] Mas, apesar das divergências significativas de ponto de vista, muitas observações convergem, e um intercâmbio de ideias pode e deve ser mantido. Assim, evitando compreender a toxicomania unilateralmente, seja em termos das características da substância química, seja pela postulação de uma “personalidade dependente’’, o autor propõe que focalizemos a atenção na relação que se instaura entre o sujeito e o objeto como um processo único e particular. Ao definir a adicção no entrecruzamento entre o poder da substância e o poder que lhe é atribuído pelo sujeito, Guerreschi e diversos autores consideram que sua etiologia não segue uma estrutura unicausal e linear, e sim que a “dependência” se constrói em uma circularidade de necessidades e significados. A própria experiência de uso do objeto retroalimenta as causas, reestruturando a vivência e a autopercepção; assim, um sujeito com suas necessidades vive, no encontro com o objeto, uma experiência particular de reestruturação de si mesmo. A partir deste ponto, surge uma certeza individual de haver encontrado “exclusivamente em um lugar a resposta fundamental a necessidades próprias e desejos essenciais, que não podem ser satisfeitos de outra maneira” (RIGLIANO apud GUERRESCHI, 2007, p. 16).

Note-se como as teses sistêmicas que subjazem a esta definição se aproximam de diversas formulações psicanalíticas – especialmente aquelas derivadas de um pensamento das relações de objeto , e que a ideia do “encontro com a droga” engendrado de uma experiência única e originária pode ser reconhecido tanto em Olievenstein (1990) quanto em Radó (1926), autor clássico da psicanálise das adicções, para quem a farmacotimia nasce do encontro de um indivíduo com a droga a partir de um estado de “depressão tensa” bastante particular. Isto nos faz ver a relevância do “fator atual” na etiologia das adicções, temática discutida por Freud no início de sua obra, em seus estudos sobre as neuroses atuais. O que observamos é que a conduta adictiva constitui, em si mesma, um fator atual que interfere de tal forma na vida psíquica e no destino do sujeito que ela quase que subverte e reconfigura a sua estrutura clínica pregressa. Ora, a “atualidade” das adicções se torna uma problemática relevante quando compreendemos que elas ganham novas configurações conforme os objetos oferecidos e visados pelas necessidades e os desejos dos homens se modificam de tempos em tempos.

Bem, considerando-se a força indutora de processos psíquicos do caldo cultural “atual” em que estamos imersos, surge uma indagação: novos tempos implicam em novas patologias?

É indubitável que as mudanças sociais alteram as experiências subjetivas individuais e proporcionam elementos novos, que, por sua vez, passam a integrar as formações psicopatológicas. Assim, o advento da informática, da comunicação digital e da internet proporcionou novos e poderosos meios de engendramento de realidades virtuais, o que repercutiu na vida psíquica de maneiras que ainda mal compreendemos. Mas, nota-se, esses novos instrumentos são também veículo de velhas experiências psíquicas, sob novas roupagens: o espaço virtual da internet é propício para diversas formas adictivas já conhecidas, como os jogos (do tipo Second life), o sexo, os relacionamentos e as compras. A adicção à internet é, sem dúvida, uma nova forma de adicção, e comporta especificidades e desafios específicos a serem considerados; mas, por outro lado, ela recoloca em cena a dimensão adictiva tão frequente na vida psíquica dos homens. Neste contexto, os meios de comunicação digital, com o mundo virtual por ele fomentado e a invenção da internet, podem ser entendidos como um instrumento, uma ocasião e um cenário privilegiado para colocar em ação e potencializar as diversas formas adictivas, articulando os velhos vícios em um novo e poderoso meio. Mas será que este “novo meio” reinventa ou reconfigura a própria natureza das adicções em algum aspecto significativo? Estaríamos, aqui, em um novo patamar na história dos vícios? Como compreender este entrecruzamento do velho e do novo?

Do meu ponto de vista, as chamadas “novas adicções” constituem, certamente, um campo fundamental a ser urgentemente explorado pelos pesquisadores e clínicos, mas sem perder de vista o elo que as une ao universo das adicções, à psicopatologia geral e a natureza da vida psíquica individual e coletiva.

Ora, esta discussão se insere em um círculo mais amplo: o estudo das chamadas “novas patologias”, “patologias atuais” ou “patologias da época”. Ao longo da história da psicopatologia – seja ela psicanalítica ou não – observamos mudanças significativas no quadro geral das patologias descritas. Diversas categorias novas são propostas, outras caem em desuso, e outras ainda são assimiladas, incorporadas ou fundidas a outras formas clínicas; compreender estes movimentos de maneira crítica é de fundamental importância.

Tomemos o exemplo da histeria. Se o diagnóstico de histeria entrou em declínio ao longo do século XX de modo evidente na psiquiatria, nos causa espanto observar um certo esquecimento da mesma no interior da própria psicanálise. Hoje sabemos que a histeria assume roupagens variadas nas diversas épocas como a figura da bruxa da Idade Média, ou a da grande exibidora de sintomas exóticos para capturar a atenção dos médicos do século XIX , e que em muitas das chamadas “novas patologias” podemos encontrar traços inequívocos da velha histeria, tais como na anorexia, na síndrome do pânico, na fibromialgia e em diversas formas de depressão e em diversos quadros adictivos. Há também que se considerar a sensibilidade dos histéricos aos movimentos de massa, e a facilidade com que a influência sugestiva molda sua conduta. Assim, um bombardeio de notícias na mídia sobre um novo tipo de doença pode contribuir com a ampliação exponencial de uma epidemia, em um processo complexo de realimentação contínua; conforme este processo avança, aí sim temos uma grande notícia![7]

A formação de “grupos de ajuda mútua” para tipos de patologia, assim como de centros de tratamento especializados pode também contribuir com este processo de produção e reprodução de novas patologias. Bollas (2000) chegou a propor que isto se dá também com os grupos de adictos; tal qual as “comunidades de distúrbios alimentares”, há o

mundo dos jogadores, dos beberrões, dos fornicadores e dos viciados pelo trabalho, que se esfacelam em novos gêneros de perturbação, com novas equipes de médicos e terapeutas florescendo diante de si, tal como as cidades que germinavam ao longo das recém-construídas linhas de trem do século XIX. (BOLLAS, 2000, p. 159-160)

 

Segundo Bollas, este fenômeno psicossocial reflete e reforça um processo tipicamente histérico, o “desmantelamento do self adulto”: uma tendência a reduzir os recursos mais maduros da personalidade do indivíduo em troca de uma infantilização empobrecedora, na qual passa a reinar o “bom menino” que satisfaz a equipe de profissionais. Esta tendência é um dos fatores mais sutis e desafiadores de resistência ao avanço de um processo analítico, contribuindo para a perpetuação de uma “adicção de transferência”. Bem, estas observações levantam uma questão importante a respeito de uma aproximação possível entre adicções e histeria.

Assim como no caso dos processos histéricos, devemos superar uma visão ingênua da autonomia do quadro clínico em relação ao contexto social. Há uma grande determinação recíproca entre estas duas esferas, e as adicções mantêm uma relação muito íntima com a cultura do consumo em que vivemos. Em outro lugar,[8] propus que a produção e a reprodução da máquina de consumo hoje dominante têm como engrenagem principal o engendramento de uma espécie de “objeto-totem”, que guarda em si o segredo da felicidade; o conceito de fetichismo, seja em sua dimensão clínica e psicanalítica, seja em sua dimensão social e marxista, nos permite avançar na compreensão deste paralelo, aprofundando a dimensão psicossocial da alienação em causa. Não se pode esquecer que a toxicomania se tornou um problema social em grande escala a partir do século XX, o que, em si mesmo, é muito significativo.[9],[10]

Bem, se, por um lado, é recomendável uma cautela nas conclusões apressadas sobre as “novas patologias”, faz-se necessário, por outro, considerar o desenvolvimento histórico das formas clínicas. Pois são nítidas, na história da psicanálise, as transformações que a prática clínica, os modelos teóricos e, por decorrência, a psicopatologia sofreram ao longo do tempo. Uma vez que a matriz clínica original da psicanálise foi a psiconeurose, a sua construção conceitual foi marcada por aquilo que neste campo clínico se revelava: a divisão do aparelho psíquico entre instâncias, o conflito com a sexualidade, o mecanismo princeps do recalcamento, o trabalho da memória segundo uma articulação contínua entre o infantil e o atual, etc. Foi principalmente na era pós-freudiana que os psicanalistas enfrentaram o desafio de ampliar o escopo do tratamento psicanalítico para outras formas clínicas, o que transformou, significativamente, o esquema conceitual e operativo. Assim, fortaleceu-se a pesquisa clínica com os casos ditos difíceis, com os pacientes fronteiriços, com as patologias narcisistas, as adicções, os transtornos psicossomáticos, etc., ao mesmo tempo que surgiram ou foram mais bem explorados conceitos tais como o de falso self, dissociação, mentalização, psicose branca, depressão esquizoide e depressão essencial, mãe morta, etc. Neste sentido, é importante compreendermos como a adicção surge, no quadro da psicopatologia psicanalítica, neste segundo tempo da história da disciplina, sendo, por isto, muitas vezes incluída no rol das “novas patologias”;[11] ainda assim, é digno de nota que houve trabalhos de peso sobre toxicomania já na década de 1930 – em particular, os de Radó (1933), Glover (1932) e Wulff (1932) , e que, ainda antes disto, encontramos as primeiras indicações sobre o tema nas obras de Freud, Abraham (1925) e Ferenczi.

 

O “fator atual” e o resgate da perspectiva histórica

 

Ora, falar em termos de “novas adicções” ou “patologias da época” ganha um novo destaque quando compreendemos a relevância do fator atual; eis aqui a verdadeira “atualidade” do tema.

Mas o que a psicanálise tem a dizer sobre o fator atual?

Há um mal-entendido segundo o qual a psicanálise, em um suposto determinismo estrito, ignoraria o valor do presente, e atribuiria todo o peso exclusivamente ao passado. Mas no pensamento freudiano há um lugar muito particular para o atual, em uma articulação sutil e complexa com o inatual. O inatual se refere à bagagem psíquica que carregamos conosco e que se constituiu ao longo das experiências de vida, com um peso especial para aquelas dos primeiros anos, sempre experimentadas e significadas de acordo com a fantasia e a vida pulsional do momento, e com o ponto de vista predominante na época. O viver é o entretecimento contínuo entre este inatual – por vezes denominado “o infantil” – e aquilo que se apresenta no momento atual, em uma dialética entre repetição e abertura potencial para uma reordenação transformadora advinda do experienciar.

Assim, na teoria das neuroses, Freud propôs uma série complementar para explicar sua etiologia, tendo de um lado o fator constitucional – composto, por sua vez, pelo hereditário e o conjunto das experiências sexuais infantis – e o atual; para ele, cada neurose tem sua história, na qual os fatores desencadeantes – atuais – são parte integrante. A teoria do sonho comporta, também, uma dialética entre o atual e o inatual, ou entre o desejo infantil e recalcado e aquilo que é cotidianamente retirado da vida de vigília (os restos diurnos); segundo a célebre metáfora proposta por Freud (1900), para se produzir um sonho é condição necessária o estabelecimento de uma sociedade entre o “empresário” (detentor dos meios de produção ou dos meios de expressão do psíquico, na forma dos processos psíquicos pré-conscientes) e o “capitalista” (detentor da energia necessária para a produção: o capital-desejo e o infantil inatual). É segundo este mesmo processo interjogo dialético entre atual e inatual – que a memória do homem se constrói e se reconstrói ao longo de toda a vida.

Na era pós-freudiana, uma nova ênfase no atual tem surgido. Pois, de fato, o trabalho clínico com as neuroses fez a pesquisa psicanalítica se concentrar, predominantemente, no poder do infantil, mas o trabalho com casos mais complexos exigiu um redirecionamento da atenção para o atual o factual, o traumático, a ambiência, o relacional, o estresse, etc. Uma simples constatação de nossas experiências cotidianas nos faz ver que, sob a tensão do estresse que tão frequentemente acomete as pessoas em nossa vida urbana hiperativa, não é possível pensar, nem reconhecer o que foi assimilado da experiência, observar seus efeitos, agir de modo adequado, fazer escolhas, etc. Este movimento levou diversos analistas a revalorizar as intuições iniciais de Freud sobre as “neuroses atuais”, relativamente eclipsadas em favor da teoria das neuroses, que ficou mais consagrada.

Ora, na clínica das adicções, o fator atual não pode ser negligenciado. O poder determinante do encontro com o objeto na história da “doença” é indubitável, mesmo que se possa considerar – corretamente, sem dúvida – o peso de uma personalidade pré-mórbida, descrita por alguns como “personalidade dependente”, ou simplesmente na forma de uma fragilidade egoica. A memória do encontro com o objeto – a droga, o jogo, etc. – e do júbilo aí vivido ganha o status psíquico de um fator constitucional, tal qual a experiência originária de satisfação do bebê. Trata-se de uma espécie de gozo inaugural que engendra uma neo-necessidade, cujo poder fundador não pode ser negligenciado. Nesta clínica, é possível buscar o sexual infantil, segundo o modelo da psiconeurose, e negligenciar o poder da droga em dominar o sujeito e transformá-lo ao ponto de este mesmo “sexual infantil” se tornar inacessível, desprezado e aparentemente irrelevante? Bem, daí decorrem implicações importantes para as estratégias elegidas no atual do tempo do tratamento, dos esforços preventivos no campo da saúde mental, das políticas públicas adotadas, da vida familiar de indivíduos adictos, etc.

Em suma: a atualidade do tema é inquestionável, mas precisa, ela mesma, ser pensada com olhos críticos. A presença, no cotidiano da sociedade, de condutas adictivas e seus efeitos deletérios para os indivíduos, famílias, grupos e instituições é gritante, justificando qualquer esforço de pesquisa científica – teórica e aplicada – sobre o tema. O debate deve ser estimulado, e as diversas visões e iniciativas devem ser valorizadas; há lugar para todos, e a extensão do desconhecimento e dos desafios é assustadora. A psicanálise pode e deve comparecer com sua parte, mas precisa rever, ela mesma, suas teorias e métodos diante dos desafios que a clínica das adicções coloca; se permanecer rígida e inflexível, ela simplesmente perderá o bonde da história, e não cumprirá com o seu imperativo ético e sua missão de contribuir com a compreensão da vida psíquica humana e de desenvolver instrumentos práticos, a fim de nela operar para buscar construir um melhor viver. Se a mídia nos traz com vivacidade a força dos desafios da atualidade, a psicanálise deve comparecer, de modo complementar, aprofundando a discussão em direção a suas raízes históricas, investigando os processos inconscientes subjacentes e alertando sobre os processos sutis de alienação e engodo, próprios dos movimentos de massa.

Assim, a “atualidade” do tema pede, como que em um contraponto, um resgate da perspectiva histórica; retrocedamos um pouco, pois, aos inícios – e, até, à pré-história da psicanálise.

 

O “vício primário”: origem da metapsicologia do atual

 

A base de uma psicanálise das adicções se encontra, historicamente, na teoria da sexualidade.[12] Mas se, usualmente, partimos da teoria da sexualidade apresentada por Freud (1981 [1905]) nos “Três ensaios sobre a sexualidade”, pode ser também bastante interessante retomar algumas formulações que antecederam e prepararam esta obra seminal. Na última década do século XIX, Freud explorava, em paralelo ao seu trabalho com a histeria, uma outra vizinhança do campo das “doenças nervosas”: a neurastenia e a neurose de angústia. O protótipo das “neuroses atuais” foi uma das primeiras referências psicopatológicas para pensar as adicções, e contém ressonâncias que se estendem até nossos dias.

 

Comecei a compreender que a masturbação é o primeiro e o único dos grandes hábitos, o “vício primário”, e que todas as demais adicções, como a adicção ao álcool, à morfina, ao tabaco, etc., só surgem ao longo da vida como seus substitutos e deslocamentos. A importância que esta adicção tem na histeria é imensa, e talvez se encontre aqui, no todo ou em parte, o meu grande obstáculo, que ainda não pude esclarecer. Naturalmente surge, por decorrência, a dúvida sobre se tal adicção é curável ou se a análise e a terapia devem se deter aqui, conformando-se em converter a histeria em neurastenia. (FREUD, 1981 [1897], p. 3594)

 

Estes comentários de Freud, em uma carta a Fliess, merecem uma análise cuidadosa.

Antes de tudo, deve-se observar como aqui a sexualidade é colocada em um plano fundamental: pois é em uma das formas de sua expressão – a masturbação – que se encontra o protótipo de todas as adicções. Se antes Freud já notara um tipo de adicção ligado ao sexual – que ele denominara vagamente como “aberrações sexuais”,[13] e que hoje preferimos pensar como “sexualidades adictivas” – agora se trata do vício primário. Ora, sabemos como a busca pelo primário sempre esteve no modo de pensar freudiano: a defesa primária, o processo primário, o recalcamento primário, o narcisismo primário... O primário é sempre pensado em contraste com um secundário, constituindo um tempo anterior ao mesmo tempo lógico e cronológico, e uma dimensão fundante e originária dos fenômenos psíquicos. O primário relaciona-se, ainda, com as noções de primitivo e de originário.

Mas a masturbação é uma adicção? Será que Freud se refere aqui a certas situações em que a masturbação ganha, de fato, um caráter compulsivo e irrefreável, tornando-se um vício? Ou será que ela é, em si, “viciante”?

É necessário examinarmos o estatuto que tinha a masturbação para Freud, especificamente em relação ao eixo universal / patológico. Freud mostrou-se muito cuidadoso ao abordar o tema, como vemos em seus comentários no simpósio sobre a masturbação (1981 [1912a]). Ele reafirmou suas proposições dos “Três ensaios sobre a sexualidade” sobre a presença regular e pouco reconhecida da masturbação na vida infantil e sobre a existência de três etapas da masturbação de acordo com a idade: a masturbação do lactante, da infância e da puberdade. Em seguida, atacou a questão: a masturbação é prejudicial? A sua resposta é complexa e, ao observar que, nas neuroses, esta prática, em alguns casos, se torna prejudicial, distingue três modalidades de dano. Em primeiro lugar, há um dano orgânico, ligado à frequência exagerada e à satisfação insuficiente; este aspecto refere-se à etiologia da neurose atual. Em segundo, há um dano ligado ao estabelecimento de um protótipo psíquico segundo o qual a satisfação se obtém sem necessidade de uma modificação no mundo exterior. E, em terceiro, em casos em que a masturbação se prolonga da adolescência à vida adulta, observa-se um “infantilismo psíquico”, ou seja: a fixação nos fins sexuais infantis. Estes dois últimos fatores referem-se ao campo da psiconeurose.

“A masturbação é a executora da fantasia” (FREUD, 1981 [1912a], p. 1707). Ao ressaltar a importância das fantasias que tão frequentemente acompanham ou substituem o ato masturbatório – “este reino intermediário entre a vida ajustada ao princípio do prazer e a governada pelo princípio da realidade” (FREUD, 1981 [1912a], p. 1707) –, Freud opina que os desenvolvimentos e sublimações sexuais da fantasia não representam progressos e que, apesar de eventualmente proteger o sujeito de uma queda na perversão e dos malefícios da abstinência sexual, se trata de uma evitação do crescimento proporcionado pelo trabalho psíquico com os objetos da realidade. Neste sentido, a nocividade da masturbação enquanto atividade primária se deve à facilitação que proporciona para a perpetuação de uma vida de fantasia, em detrimento do investimento objetal que deve advir secundariamente ao autoerotismo. Esta inflação da fantasia é o caldo de cultura para a psiconeurose.

Nota-se como a segunda modalidade de dano indica como a prática onanista pode instaurar um protótipo psíquico de autossatisfação patológica, prenunciando aqui a questão do narcisismo. Neste aspecto, podemos entrever no trecho da carta uma questão que Freud perseguiu ao longo de, praticamente, toda a sua obra e que, de certa maneira, também o perseguiu sem descanso: aquilo que aqui denominou “meu grande obstáculo”. Se ele buscava, por um lado, chegar a uma “grande descoberta”, acabava sempre deparando com “um grande obstáculo”.  Tanto no campo teórico da “solução” do enigma da neurose quanto no campo clínico de seu tratamento, tais obstáculos ganharam várias versões: as “mentiras” e seduções das histéricas, o investimento narcisista do Eu que retira a libido do objeto e acaba com a transferência na psicose, a compulsão à repetição, a reação terapêutica negativa e o sentimento inconsciente de culpa (com a pulsão de morte à espreita), e a rocha da castração – obstáculos que indicam ou procuram explicar os limites do analisável. Seria o “vício primário” uma resposta ainda hoje plausível para o inanalisável?

Outro aspecto a ser ressaltado quanto à proposição da masturbação como o vício primário refere-se à questão do objeto da adicção. Pois este protótipo primário não envolve um objeto (a droga, a bebida, o jogo, etc.), como outras formas de adicção, o que nos sugere que uma das dimensões distintivas da adicção é a ação compulsiva, e menos o objeto da adicção. Ora, a atividade masturbatória considerada como um agir prenuncia futuros desenvolvimentos da investigação psicanalítica.[14]

 

O modelo da neurose atual e a toxicidade da libido

 

O “dano orgânico” atribuído à masturbação – o primeiro fator destacado por Freud – é, em geral, o menos reconhecido pelos psicanalistas. Para compreendê-lo, é necessário retomarmos a teoria da neurose atual. Esta foi construída em meados da década de 1890 e, apesar de pouco consagrada, foi reafirmada enfaticamente por Freud quinze anos depois, no simpósio sobre a masturbação, e vinte anos depois, em 1917, nas “Conferências introdutórias à psicanálise”.

A oposição entre psiconeurose e neurose atual constituiu uma das primeiras grandes divisões psicopatológicas propostas por Freud. Se, por um lado, ambas guardam uma etiologia sexual, o “sexual” das primeiras é psíquico e infantil, enquanto que nas outras ele é somático e atual. As psiconeuroses são resultantes de uma tentativa de se defender da reativação das marcas mnêmicas da sexualidade infantil recalcada, que retornam devido a certas circunstâncias desencadeantes; elas são, neste sentido, “neuropsicoses de defesa” – sendo a noção de “defesa” o princípio conceitual que preparou o terreno para a teoria do recalcamento, pilar fundamental da teoria psicanalítica das neuroses. As neuroses atuais, em contraste, resultam de certas práticas sexuais que implicam em uma satisfação inadequada; nelas, um excesso ou mau escoamento da libido produz uma formação neurótica comum e ordinária, em geral caracterizada por um estado de angústia simples e/ou por diversos distúrbios funcionais somáticos.

 “A constipação, a cefaleia e a fadiga dos chamados neurastênicos não podem ser referidos histórica ou simbolicamente a vivências efetivas” (FREUD, 1981 [1912a], p. 1705), como nas psiconeuroses. Tais sintomas “carecem de ‘sentido’, isto é, de significação psíquica [...], constituindo processos exclusivamente somáticos” (FREUD, 1981 [1917], p. 2364). Freud nos lembra que a função sexual não é nem puramente psíquica e nem puramente somática, e que exerce sua influência tanto no campo da vida psíquica quanto na “vida corporal”. Esta dupla face do sexual – que posteriormente será atribuída à pulsão, conceito-limite entre o somático e o psíquico – é muitas vezes negligenciada.

Para Freud, a gênese dos sintomas das neuroses atuais só pode ser qualificada de tóxica. Ou seja: há uma toxicidade da dimensão somática da libido que está ligada a um regime econômico do atual, determinando variações em termos de saúde ou de um estado neurótico ordinário. Freud foi ainda mais longe em suas especulações e supôs a existência de substâncias químicas no organismo de natureza libidinal. Daí a crença popular nos “filtros do amor”, e a ideia de que a paixão é uma forma de embriaguez. Ora, a hipótese de um quimismo do sexual possibilita uma aproximação entre sexualidade e adicções.

 

As neuroses atuais apresentam, em todos os detalhes de sua sintomatologia e em sua peculiar qualidade de influir sobre todos os sistemas orgânicos e sobre todas as funções, uma analogia incontestável com os estados patológicos ocasionados pela ação crônica de substâncias tóxicas exteriores ou pela supressão brusca das mesmas, isto é, com as intoxicações e com os estados de abstinência. (FREUD, 1981 [1917], p. 2364)

 

A neurose atual é, pois, uma espécie de intoxicação libidinal.

A “analogia incontestável” entre o mecanismo das neuroses atuais e a intoxicação não é meramente alegórica, como se vê no artigo “A sexualidade na etiologia das neuroses” (FREUD, 1981 [1898]). É justamente neste trabalho de 1898 que encontramos a primeira menção de Freud às adicções em um artigo científico, desde o trabalho sobre a hipnose (FREUD, 1981 [1890]), trazendo a público as ideias que só havia até então compartilhado com Fliess. Freud dirige-se aqui aos médicos, a fim de convencê-los da importância central do fator sexual na etiologia das neuroses e de alertá-los quanto à necessidade de alterar os seus métodos terapêuticos em função desta descoberta. Ele enfatiza a necessidade de uma clareza diagnóstica das formas de neurose para orientar as indicações terapêuticas, e concentra-se no diagnóstico diferencial entre psiconeurose e neurose atual.

Após uma descrição detalhada dos problemas clínicos ligados à neurastenia e de uma avaliação crítica dos tratamentos realizados em balneários na época, Freud aborda o tema da masturbação e dos “hábitos sexuais”. Para ele, a masturbação é a causa de muitos casos de neurastenia, e o fato de os médicos não quererem reconhecê-lo torna a vida dos pacientes muito mais árdua, pois eles travam uma luta contra a masturbação muito difícil de vencer por si só. Freud propõe, nestes casos, uma “cura de abstinência” – um processo de quebra do hábito do onanismo que deve contar com a colaboração e a “contínua vigilância do terapeuta” (1981 [1898], p. 324). Há aqui um grande desafio, pois “abandonado a si mesmo, o masturbador recorre à cômoda satisfação habitual sempre que experimenta alguma contrariedade” (FREUD, 1981 [1898], p. 324). É por extensão à cura de abstinência da neurastenia que Freud retorna ao tema das adicções:

 

Esta observação pode ser aplicada também às demais curas de abstinência, cujos resultados positivos continuarão sendo aparentes e efêmeros enquanto o médico se limitar a tirar do doente o narcótico, sem preocupar-se com a fonte da qual surge a necessidade imperativa do mesmo. O “hábito” não é nada mais do que uma expressão descritiva, sem valor explicativo algum. Nem todos os indivíduos que tiveram ocasião de tomar durante algum tempo morfina, cocaína, etc., contraem a toxicomania correspondente. Uma minuciosa investigação nos revela, em geral, que estes narcóticos buscam compensar – direta ou indiretamente – a falta de prazeres sexuais, e naqueles casos em que não for possível restabelecer uma vida sexual normal, pode esperar-se com certeza uma recaída. (FREUD, 1981 [1898], p. 324)

 

Aqui temos, mais uma vez, uma breve e discreta menção de Freud à questão das adicções. Mas ela revela uma compreensão da dimensão clínica em jogo, e uma percepção aguda quanto à necessidade de construção de uma concepção sobre as adicções. Não basta uma visão que descreva o fenômeno do vício, ou uma visão equivocada que atribua a causa da toxicomania às propriedades do objeto-droga; pois grande parte dos usuários de drogas não se tornam toxicômanos! Faz-se necessário compreendermos a fonte de onde surge o impulso irrefreável ao objeto – e Freud encontra a resposta no fator sexual.

Neste artigo, Freud não articula direta e especificamente as adicções à masturbação; ele propõe que a força do impulso adictivo se origina em uma insatisfação sexual, cuja compensação é buscada no objeto-droga. Mas a teoria da neurose atual está aqui subjacente: Freud supõe que o restabelecimento de uma “vida sexual normal” seria o tratamento mais indicado para as adicções, já que, ao contrário de medidas paliativas (por exemplo, internação em balneários), este caminho atingiria a raiz do problema. À maneira das neuroses atuais, o tratamento das adicções seria uma “cura de abstinência”, e exigiria, portanto, uma “terapêutica atual”...

Ao aproximar adicções e neuroses atuais, Freud aponta uma direção para o pensamento teórico-clínico significativo: é um equívoco buscar entender o sintoma adictivo segundo o modelo da psiconeurose. Esta proposição, ainda que genérica, é bastante procedente; de fato, pouco se pode esperar de uma terapêutica que vise interpretar o ato adictivo como uma formação do inconsciente, supondo aí um sentido ou um simbolismo geralmente inexistente. Esta desadaptação das adicções à teoria da psiconeurose é, provavelmente, um dos motivos de sua baixa popularidade entre os psicanalistas, pelo menos até uma certa época.

A teoria da neurose atual não ganhou o mesmo desenvolvimento que a teoria das psiconeuroses por diversos motivos, sendo o mais óbvio o fato de este tipo de afecção não se prestar, em princípio, ao tratamento psicanalítico. Freud foi claro, tanto no artigo de 1898 quanto nos trabalhos subsequentes: tal tratamento é indicado para as psiconeuroses, ao passo que as neuroses atuais necessitam de uma abordagem médico-educativa. Tal abordagem consistiria – ao que tudo indica – em uma espécie de “orientação” que busca implementar um regime de hábitos sexuais saudáveis, em substituição aos “maus” hábitos adquiridos. No lugar da interpretação dos fenômenos inconscientes, a prescrição de um regime sexual; naturalmente, conta-se com o poder sugestivo da palavra do médico para que a prescrição possa ser adotada e mantida. Assim como a terapêutica, também a pesquisa psicanalítica seria alheia ao tema: “os problemas relacionados às neuroses atuais, cujos sintomas são, provavelmente, consequência de lesões tóxicas diretas, não se prestam ao estudo psicanalítico; este não pode proporcionar esclarecimento algum sobre eles, e deve, portanto, entregar este trabalho para a investigação médico-biológica” (FREUD, 1981 [1917], p. 2365).

É bem verdade que este estado de coisas é um pouco mais complexo, pois são muito frequentes os casos de “neuroses mistas”: uma mescla de psiconeurose e neurose atual. Os fatores etiológicos se combinam, e as duas dimensões interagem reciprocamente. Esta observação clínica sofreu, com o tempo, uma elaboração metapsicológica; assim, Freud veio a postular que “o sintoma da neurose atual constitui com frequência o nódulo e a fase preliminar do sintoma psiconeurótico” (1981 [1917], p. 2366). Pois se toda psiconeurose tem uma história e um momento de emergência, no qual fatores desencadeantes determinam a sua eclosão, dentre tais fatores pode-se, certamente, incluir um estado neurótico comum. Nestes casos, a neurose atual entra na série etiológica como um “fator debilitante”, e “a etiologia auxiliar que ainda faltava para a emergência da psiconeurose é proporcionada pela etiologia atual da neurose de angústia” (FREUD, 1981 [1898], p. 326). Freud já havia ressaltado como uma “facilitação orgânica” codetermina certas conversões histéricas, e reiterou, anos depois, que uma alteração somática patológica (por inflamação ou lesão) pode despertar a elaboração de sintomas, “convertendo o sintoma proporcionado pela realidade em representante de todas as fantasias inconscientes que estavam à espreita, aguardando a primeira oportunidade de manifestar-se” (1981 [1917], p. 2366). Nestes casos, diz Freud, podem-se seguir duas estratégias terapêuticas: abordar psicanaliticamente a neurose ou adotar um tratamento somático; o acerto da escolha só poderá ser avaliado por seus efeitos, já que “é muito difícil estabelecer regras gerais para estes casos mistos” (1981 [1917], p. 2366).

No simpósio sobre a masturbação, Freud também dera a entender que a exclusão das neuroses atuais da terapêutica psicanalítica talvez não devesse ser tão taxativa, revendo sua posição anterior sobre este ponto:

 

hoje eu reconheço – no que antes não acreditava – que um tratamento analítico pode ter também uma influência terapêutica indireta sobre os sintomas atuais, uma vez que coloque o indivíduo doente em uma situação de abandonar a nocividade atual, modificando seu regime sexual. Encontramos aqui, evidentemente, uma perspectiva promissora para nosso afã terapêutico. (FREUD, 1981 [1912a], p. 1706)

 

Sim, pois – de fato – a superação das inibições neuróticas derivadas do recalcamento coloca o sujeito em melhores condições quanto ao seu “regime atual”; e, também, a recíproca é verdadeira: a psiconeurose – em suas repetições sintomáticas – não favorece em nada o estabelecimento de um regime sexual saudável.

 

O químico, o sexual e a experiência de prazer

 

O parentesco entre adicções e neuroses atuais recoloca em pauta uma questão controvertida: o quimismo do sexual.

Ferenczi (1991 [1911]) propôs que, no estado maníaco, se dá uma “produção endógena de euforia”, que é análoga ao efeito de intoxicação por drogas psicoativas (ele se apoia em trabalho anterior de Gross). Também Freud, em seu conhecido comentário sobre o uso de drogas em “O mal-estar na cultura”, abordou o paralelo entre a intoxicação química e os processos psiconeurológicos de prazer / desprazer:

em nosso próprio quimismo devem existir, da mesma maneira, substâncias que cumprem uma finalidade análoga [análoga às substâncias psicoativas que, ingeridas, provocam sensações de prazer e anulam sensações desagradáveis], pois conhecemos pelo menos um estado patológico – a mania – no qual se produz uma conduta similar à embriaguez, sem incorporação de droga alguma. Também em nossa vida psíquica normal a descarga de prazer oscila entre a facilitação e a coerção, diminuindo ou aumentando a receptividade para o desprazer. É bastante lamentável que esta raiz tóxica dos processos mentais tenha ficado obscura até agora para a investigação científica. (FREUD, 1981 [1930], p. 3026)

 

O quimismo da intoxicação exógena pode ser aproximado, assim, de um quimismo endógeno: o quimismo do sexual e o quimismo do prazer, ambos interligados no pensamento freudiano. Mesmo que a teoria da psicossexualidade tenha revelado uma independência da sexualidade humana em relação aos processos biológicos e às determinações somáticas, a correlação entre somático e psíquico nunca foi negligenciada por Freud – ainda que algumas leituras unilaterais de sua obra tenham tentado expurgar o biológico e o somático da psicanálise. Muito ao contrário, vemos Freud até o fim lamentando a falta de conhecimentos psiconeurológicos, e desejando uma complementação da investigação psicanalítica com aquela derivada deste campo científico vizinho. A proposição da pulsão como um conceito-limite entre o somático e o psíquico e a teoria das neuroses atuais são exemplos desta preocupação de Freud, às quais podemos acrescentar, certamente, a psicanálise das adicções.

Ora, as intuições de Freud anteciparam muitas das descobertas ulteriores da neurologia e da farmacologia, e abriram caminho para o trabalho de diversos psicanalistas criativos. Nesta direção, Byck (1975 [1974]) assinalou o pioneirismo de Freud para campo da farmacologia, já no período da cocaína. Couvreur (1991), por sua vez, nos lembra de uma descoberta recente, que é, também, sugestiva: em casos de transtornos do comportamento alimentar, se verificou a produção intracerebral de substâncias opioides de efeito morfínico ameno, confirmando o paralelismo entre quimismo exógeno e quimismo endógeno, assim como o parentesco entre as toxicomanias e outras adicções sem drogas. Ao mesmo tempo, a correspondência entre o efeito euforígeno de certas drogas e o estado maníaco tem se consolidado, também, como uma espécie de exemplo-modelo deste paralelismo.

Alguns autores veem na suposição de Freud da existência, no organismo, de substâncias químicas de natureza libidinal uma antecipação da descoberta dos hormônios sexuais. Em suas especulações, Freud manifestou uma dúvida sobre se se trataria de duas substâncias diferentes – uma masculina e outra feminina – ou uma única. De fato, as pesquisas posteriores revelaram uma situação complexa: os hormônios da hipófise (FSH e LH) atuam em ambos os gêneros, enquanto que a testosterona, produzida nos testículos, está associada aos caracteres masculinos, e os estrogênios e a progesterona, secretados pelos ovários, atuam no sistema feminino. Os estrogênios são responsáveis pela formação das características primárias e secundárias femininas, e a progesterona está relacionada à preparação do útero e das mamas para o processo reprodutivo, ou seja: mais ligada à maternidade. Em suas incursões especulativas na interface somatopsíquica, Freud antecipou, também, a estrutura do neurônio (em “Projeto de uma psicologia para neurologistas”, de 1895), assim como a heterogeneidade fundamental da qualidade do funcionamento cerebral entre os estados de sono sem sonho e os períodos de sonho (sono REM).

Radó (1926 e 1997 [1933]) trabalhou com a hipótese de um “orgasmo farmacológico” análogo a um suposto “orgasmo alimentar”, aproximando, assim, o quimismo endógeno do toxicômano com a economia libidinal e com um suposto quimismo endógeno da mesma. Este modelo condensa vários elementos: ele atrela, intrinsecamente, o prazer e a sexualidade na figura do orgasmo, aproxima o circuito alimentar, o erotismo oral e o circuito genital, e se permite, sobretudo, uma circulação bastante livre entre as dimensões somática e psíquica de tais experiências humanas. Wulff (2003 [1932]) fez, também, uma curiosa observação concernente à fronteira psicossoma para o campo das adicções. Segundo ele, muitos neuróticos se tornam toxicômanos devido ao sono / sonho artificial que a droga lhes proporciona, dando livre acesso às delícias da satisfação pulsional inconsciente. Esta ideia parece muito simples, mas se torna bastante sugestiva quando Wulff nos mostra que, em alguns casos de histeria, a atuação adictiva surge como um substituto perfeito dos ataques histéricos. Tais ataques se situam, por si mesmos, no limite entre o somático e psíquico, pois são, ao mesmo tempo, a derivação catártica e direta, em ato, do sexual, e a representação simbólica, de forma encenada, de certos enredos ligados à história psicossexual pregressa; mas, ao se transformarem em um sintoma propriamente toxicomaníaco, eles radicalizam a queda em direção ao somático, própria das neuroses atuais.

Em seu cuidadoso estudo sobre a adicção bulímica, Brusset (2003 [1991]) ressaltou alguns destes aspectos, sublinhando o interesse de uma “biologia do prazer”.

A existência de endorfinas como substâncias opioides produzidas no cérebro em certos comportamentos abre o caminho da biologia do prazer e do gozo (e correlativamente o da dor). As endorfinas proporcionam euforia e apaziguam (a serotonina intracerebral parece desempenhar um papel de paraexcitação). Novos modelos permitirão talvez proporcionar uma teoria renovada das relações da representação psíquica em suas fontes somáticas, bem como explicar os efeitos da atividade representativa no corpo na dupla perspectiva da patologia psicossomática e do gozo. (BRUSSET, 2003 [1991], p. 159)

 

Vê-se como aqui se descortina um projeto de pesquisa científica bastante ambicioso, e que necessariamente recoloca as questões sobre a correspondência, o paralelismo, a determinação e a derivação recíproca entre o somático e o psíquico, à maneira do espírito mais aberto de Freud. Sem cair no organicismo, os psicanalistas podem reconhecer que

 

a anorexia mental, a bulimia e as toxicomanias implicam processos fisiológicos que não são apenas consequências, mas também causas: a causalidade, implicando a recursividade em todos os níveis, vai, assim, do psíquico ao somático e ao comportamento, do comportamento ao somático e do somático ao psíquico. (BRUSSET, 2003 [1991], p. 159)

 

Neuroses atuais, psicossomática e adicções

 

Apesar do declínio da investigação e da terapêutica da neurose atual pela psicanálise – “lebre levantada” e parcialmente enterrada pelo próprio Freud –, a temática voltou a fazer história e passou a ser resgatada no campo pós-freudiano, especialmente no estudo dos fenômenos psicossomáticos. Observou-se que diversos sintomas e afecções psicossomáticas também não apresentavam o sentido simbólico dos sintomas psiconeuróticos, constituindo – tal qual nas neuroses atuais – “processos exclusivamente somáticos”, ainda que correlacionados com eventos emocionais e tensões da vida pulsional do paciente. A tensão pulsional não chega a transpor-se para um plano simbólico e representativo e não é objeto da “elaboração psíquica”, que é a marca da psiconeurose. Tais sintomas foram designados como somatizações, a fim de distingui-los das conversões histéricas. Esta discussão foi inicialmente promovida pela Escola Psicossomática de Paris, sendo Pierre Marty uma de suas figuras pioneiras, e, ao longo dos anos, observamos que tal “espírito teórico-clínico” tem se espalhado e tem sido absorvido por diversos psicanalistas, ainda que a origem histórica nem sempre seja totalmente reconhecida.[15]

O resgate do modelo da neurose atual foi importante, mas é claro que este modelo serviu como inspiração, e sofreu uma reelaboração significativa. A ênfase nas práticas sexuais stricto sensu não se manteve, ainda que o modelo da derivação direta da tensão pulsional para o soma, sem mediações psíquicas, tenha perdurado. Tais tensões já não são mais consideradas exclusivamente do plano sexual; as moções agressivas passam a cumprir um papel proeminente nestas afecções. E, mais do que tudo, agora as atenções se dirigem para a estruturação do aparelho psíquico em si mesma: afinal, por que a esperada elaboração psíquica dos estímulos somáticos não se dá – ou se dá de modo incompleto e deficiente? Esta é a questão que impulsionou uma nova direção da investigação psicanalítica. E, sobretudo, à medida que uma elaboração teórica foi surgindo para responder a esta questão, compreendeu-se que havia, sim, um importante campo de atuação terapêutica para o psicanalista nesses casos clínicos. Uma nova meta do tratamento surgiu: fomentar as condições de elaboração psíquica do sujeito, ou buscar converter uma neurose atual em psiconeurose, no sentido inverso que Freud previra na carta a Fliess... Bem, e as ferramentas de trabalho para tanto não serão mais apenas a interpretação, mas também aquilo que Winnicott designou como “manejo”, e Lacan chamou de “ato analítico”.

Ora, a problemática da deficiência de elaboração psíquica não se restringe aos pacientes psicossomáticos. Outras formas clínicas mostraram-se, neste aspecto, afins ao modelo da neurose atual, tais como certas estruturas caracterológicas e narcisistas, os casos-limite, certas depressões de natureza esquizoide, certas personalidades impulsivas – e, é claro, as adicções.[16] Alguns autores da psicossomática psicanalítica têm desenvolvido uma rica linha de pesquisa sobre o tema. Baseados no parentesco entre adicções e neuroses atuais, eles têm assinalado a precariedade da organização psíquica dos adictos, assim como a pertinência de tais quadros a uma “clínica do agir”. Assim, Fain (1981) propôs uma aproximação metapsicológica da toxicomania e, posteriormente (Fain, 1993), na companhia de Donabedian (1993), Smajda (1993) e Szwec (1993), desenvolveu uma teorização sobre os chamados “procedimentos autocalmantes”, que têm nas adicções um dos seus modus operandi.

Assim, creio que a aproximação entre adicção e neurose atual é, de fato, bastante pertinente.[17] Enquanto modelo psicopatológico, a teoria das neuroses atuais nos faz levar em conta a falha da elaboração psíquica e a predominância de um circuito econômico-quantitativo sobre o representativo-qualitativo. A falha da função onírica é um bom protótipo de tal situação. O sexual e o pulsional não deixam de estar em jogo, mas, predominantemente, na sua faceta atual de uma derivação direta ao corpo, tanto no âmbito de seu funcionamento somático quanto na esfera da ação. Ou seja: o corporal serve como receptáculo e destino da descarga energética da tensão pulsional, e a pulsão conta muito mais por sua “pressão” (Drang) – um dos seus quatro atributos fundamentais, segundo Freud.

O modelo da dualidade neurose atual / psiconeurose nos possibilita colocar em pauta a questão da articulação psique-soma. A temática estava presente desde o período da cocaína, quando Freud buscava uma droga mágica que, por influência direta sobre o sistema nervoso, pudesse minorar os sofrimentos da alma – projeto de uma terapêutica farmacológica –, e prosseguiu no período da hipnose, a partir da qual Freud vislumbrou o poder mágico da palavra para influenciar tanto o psíquico quanto o somático, e formalizou o tratamento pelo psíquico. As observações de Freud quanto a tal articulação, no texto “Psicoterapia” (1981 [1890]), são notáveis e ousadas, adiantando hipóteses controvertidas até para a investigação psicossomática atual.

Neste artigo, Freud (1981 [1890]) partiu da interação recíproca entre o somático e o psíquico e descreveu uma série de situações em que o psíquico influencia o somático. Baseando-se em suas observações clínicas das doenças nervosas (neurastenia e histeria), ele postulou que a causa de todos os transtornos corporais que se apresentam se encontra no psiquismo – tratando-se, portanto, de “padecimentos meramente funcionais do sistema nervoso” (FREUD, 1981 [1890], p. 1016). Em seguida, ele estendeu suas observações, como é de praxe, do campo do patológico para uma “psicopatologia da vida cotidiana”. Freud apontou que toda expressão de emoções é sempre acompanhada de mudanças corporais concomitantes: “tensões e relaxamentos da musculatura facial, direcionamento dos olhos, ingurgitação da pele, atividade do aparelho vocal e atitude dos membros, sobretudo as mãos” (1981 [1890], p. 1016); no caso dos afetos de medo, ira, dor psíquica e êxtase sexual, as manifestações são ainda mais evidentes (alterações da circulação sanguínea, das secreções e da musculatura voluntária). Mas mesmo os processos mais intelectuais – como o pensamento em repouso, que é constituído basicamente por “representações” – também são de certo modo “afetivos”, “e a nenhum falta a expressão somática e a capacidade de alterar processos corporais” (FREUD, 1981 [1890], p. 1017).

Freud assinalou, em seguida, que os estados depressivos se refletem em alterações da nutrição e no envelhecimento precoce, enquanto que, nas situações em que predomina uma excitação prazerosa ligada ao sentimento de felicidade, o organismo floresce e recupera algumas manifestações da juventude. Os afetos influenciam também na resistência do organismo a doenças infecciosas: a depressão é muitas vezes causa direta de doenças, e os “afetos tumultuosos” agravam doenças já presentes. Ora, mesmo a duração da vida é influenciada por tais fatores: ela pode ser abreviada por afetos depressivos, ou ser repentinamente interrompida devido a um susto violento, uma ofensa, uma injúria ou mesmo uma alegria inesperada. Também a vontade e a atenção influem profundamente nos processos corporais – a dor é um ótimo exemplo – e desempenham um papel importante como estimulantes e inibidores de doenças orgânicas: “é bem possível que o propósito de sarar e a vontade de morrer não carecem de importância para o desenlace de algumas enfermidades, ainda que graves e de caráter duvidoso” (FREUD, 1981 [1890], p. 1018). As expectativas cumprem também um importante papel: se o medo e a “expectativa ansiosa” podem facilitar o adoecimento, “a expectativa confiante ou esperançosa é uma força curativa com a qual na realidade temos que contar em todos nossos esforços terapêuticos ou curativos” (FREUD, 1981 [1890], p. 1018).

Assim, Freud vai bastante longe em sua crença no poder do psíquico. Se mesmo os processos mais intelectuais e representacionais são afetivos e, portanto – na acepção própria da palavra –, afetam o corporal; e se até o medo de ser contaminado predispõe um sujeito, no caso de uma epidemia, a se contaminar mais facilmente – e este exemplo é dado por Freud –, não estaríamos diante da fantasia de onipotência do pensamento, típica do obsessivo e do homem primitivo? Não é esta dimensão primitiva da magia que Freud (1913) veio a identificar no homem primitivo e no neurótico? Será que o poder mágico e curativo das drogas (refiro-me ao período da pesquisa de Freud sobre a cocaína) migrou agora para o psíquico e para a palavra, a ponto de a “expectativa confiante” (desejo?) ser tida como uma “força curativa” tão poderosa?

Podemos supor que estas observações sobre a influência do psíquico no somático correspondem, no fundo, a uma “amplificação hipocondríaca” da fantasia deslocada para o corporal, criando “doenças imaginárias” e “curas mágicas”? Bem, o próprio Freud ressaltou que não se devem menosprezar as “dores imaginárias”, já que, “qualquer que seja a causa da dor, mesmo que se trate da imaginação, as dores nem por isto são menos reais e menos violentas” (1981 [1890], p. 1018). Vemos aqui surgindo o valor e a verdade do psíquico, postulado fundamental para a criação da psicanálise. Trata-se do mesmo princípio que se desdobrará no valor atribuído ao sonho – visto não apenas como “vã espuma” – e na metamorfose da teoria da sedução em teoria da fantasia inconsciente. O valor e a verdade do psíquico culminarão no conceito de uma realidade psíquica referida ao inconsciente, “o psíquico verdadeiramente real”.

Ora, se há aqui algum “exagero juvenil e ingênuo” de Freud, não creio que devamos jogar fora o bebê com a água suja. Pois muitas de suas observações estão na ordem do dia da pesquisa em psicossomática psicanalítica. O postulado através do qual Marty reabriu o campo das doenças somáticas para a investigação psicanalítica foi o de que a economia psicossomática do indivíduo influencia de modo inequívoco a aquisição e a evolução de praticamente todos os processos de adoecimentos. Este postulado é tomado em sua radicalidade e posto à prova na teoria e na clínica; hoje podemos reconhecer nas formulações da Escola Psicossomática de Paris uma das grandes contribuições para a psicanálise na segunda metade do século XX.

Marty defendeu, na verdade, uma concepção monista[18] do psique-soma: “nossa linha abandona abertamente o princípio do dualismo psique-soma, cujo valor se dilui e desaparece na prática” (MARTY, 1984, p. 10). A “influência” do psíquico sobre o somático, especialmente em termos de seus reflexos sobre os processos de adoecimento, é compreendida, sobretudo, através do conceito de mentalização,[19] herdeiro da ideia de elaboração psíquica das excitações, que, para Freud, diferencia as psiconeuroses das neuroses atuais. Ali onde a mentalização falha, sobrevém uma espécie de “intoxicação do somático”, sobrecarga que abre as portas para as disfunções do soma. Nestas, incluem-se tanto doenças leves e de remissão espontânea, que cumprem, muitas vezes, a função paradoxal de estancar um processo de desorganização através de uma doença (as “regressões reorganizativas”), até processos violentos de adoecimento grave e progressivo. Para Marty, muitos processos de adoecimento que culminam na morte são marcadamente codeterminados por um desequilibro na economia psicossomática em um indivíduo com uma estrutura particularmente vulnerável (má mentalização). As condições psíquicas do sujeito são, assim, determinantes de sua saúde ou doença somáticas, “condições” que incluem a estrutura psíquica (fator constitucional) e as circunstâncias atuais (traumatismos, perdas, conjuntura relacional). É notável que, dentre as manifestações visíveis de uma deterioração do psíquico e da vitalidade do sujeito que abrem caminho para somatizações graves, Marty destacou os estados depressivos, e mais particularmente uma forma de depressão que qualificou de essencial.

Vemos, assim, como as observações de Freud, formuladas em um período pré-psicanalítico e que se atêm ao plano descritivo e fenomenológico, sem alcançar ainda uma teoria mais elaborada sobre os meios de influência do psíquico no somático, convergem de maneira surpreendente para a psicossomática psicanalítica, que nasceu depois de sua morte. Ora, a crença na onipotência mágica do psíquico e no poder curativo da palavra do médico talvez constitua um pano de fundo de toda investigação psicossomática...

Bem, no que se refere às adicções, percebemos que os breves e esparsos comentários de Freud sobre o tema das adicções deste “período pré-psicanalítico”, quando compreendidas sob o pano de fundo da teoria das neuroses atuais, nos permitem reconhecer aqui uma espécie de gênese do estudo das adicções sob a ótica da articulação psicossomática.

Assim, em “Psicoterapia”, Freud lembrou a interferência das drogas psicotrópicas no circuito psique-soma, assinalando que a introdução de tóxicos no cérebro perturba as funções psíquicas e pode “despertar determinados estados patológicos” (1981 [1890], p. 1015). As drogas, portanto, ao agir no aparelho somático, produzem efeitos no psíquico, “despertando”, inclusive, sua dimensão patológica. É claro que esta simples descrição não abarca o enigma central: o que faz um indivíduo sucumbir à compulsão ao objeto? Mas, ainda assim, ela é importante por conter uma intuição sobre uma das dimensões fundamentais do problema: as toxicomanias implicam um apelo a um circuito direto – um “curto-circuito”, uma “ligação direta” – do soma à psique, que só é passível de ser atingido por uma intoxicação química. Esta ação única e específica é possibilitada, como indicam as pesquisas, por uma espécie de mimetização da ação de substâncias existentes no próprio sistema nervoso. Ao produzir efeitos psíquicos pela ação direta no somático, o curto-circuito desta ligação direta tem como corolário a atrofia progressiva e sistemática da elaboração psíquica das excitações, em uma espécie de ataque ao trabalho do pensamento.[20]

Neste sentido, o toxicômano obriga o psicanalista a recolocar na ordem do dia a dupla face – somática e psíquica – dos caminhos da libido, e resgatar a hipótese um pouco empoeirada do quimismo do sexual e da toxicidade da libido.[21] O apelo ao somático não pode mais ser ignorado.

Como temos ressaltado, a aproximação entre adicções e neurose atual nos leva a olhar com desconfiança para todo esforço de compreender o “sentido do sintoma” adictivo. Ela nos leva, também, a ratificar e, ao mesmo tempo, a retificar a crítica que tem sido feita nos últimos anos sobre o “esquecimento”, no interior da própria psicanálise, do papel da sexualidade na etiologia das neuroses e na constituição psíquica do homem. Trata-se de reafirmar o papel importante deste fator, mas também de ressaltar que um certo tipo de apagamento do sexual se deu, sobretudo, em relação à etiologia atual e ao somático da libido. Os modelos biológicos – como aquele utilizado por Freud em “Além do princípio do prazer” (1981 [1920]), ou a “metabiologia” de Ferenczi (1993 [1924a]) – são, em geral, tomados como alegorias metafóricas do psíquico, e um pensamento sobre a face somática stricto sensu ficou obscurecido. Ora, uma abordagem psicanalítica das adicções que leve em conta a dupla face psique-soma em jogo contribui, certamente, para resgatar estes valores. Afinal, qualquer um que queira se aproximar da clínica das adicções não pode negligenciar o poder químico do tóxico em atacar diretamente a articulação somatopsíquica, e talvez se sinta impelido a revisitar a dimensão da teoria freudiana que concebe o somático e o químico imbricados no psíquico e no sexual.

 

Das neuroses atuais à “técnica ativa”: rumo a uma terapêutica das adicções

 

É de grande valor e atualidade resgatarmos também algumas lições e indagações, oriundas deste período da história da psicanálise, relacionadas à técnica no tratamento psicanalítico, e que são bastante pertinentes à terapêutica das adicções.

Freud já havia defendido, em 1890, o tratamento psicoterápico das adicções. Este deveria se assentar no poder sugestivo da palavra do médico, e compreenderia sempre o risco dos efeitos colaterais: a dependência em relação a ele. Neste aspecto, a hipnose é, segundo Freud, “uma faca de dois gumes”. Em 1898, Freud enfatizou que as “curas de abstinência” só serão bem-sucedidas se partirem de uma compreensão de sua etiologia sexual e se, portanto, aplicarem uma terapêutica que se dirija a este fator. A cura continua sendo “psicoterápica” – e dependente do poder mágico da palavra do médico –, mas toma a forma de uma prescrição educativa sobre os hábitos sexuais. Pelo fato de as adicções serem assimiladas ao modelo das neuroses atuais, a indicação da forma de abordagem terapêutica seria, pois, médico-psicoterápica, e não psicanalítica (Freud não falava mais, neste momento, no uso de meios químicos, abandonados com o declínio do projeto cocaína[22]). A terapêutica psicanalítica stricto sensu, concebida então exclusivamente como um trabalho de desvendamento de sentidos simbólicos ocultos do sexual psíquico, não se prestaria ao tratamento das neuroses atuais e, por dedução, das adicções.

Ora, estas proposições nos fornecem, por um lado, uma direção inicial para a compreensão e para a terapêutica das adicções, mas representam também um freio na investigação psicanalítica das adicções. Pode-se compreender o relativo desinteresse sobre o tema que perdurou por muito tempo; além das enormes dificuldades enfrentadas pelo clínico que se propõe a tratar de pacientes adictos, esta concepção de adicção aparentada às neuroses atuais contribuiu para uma certa proscrição do tema. Com o passar do tempo, conforme o valor do “fator atual” foi sendo resgatado e a concepção da terapêutica psicanalítica ampliada para abarcar modos de funcionamento psíquico não psiconeuróticos, esse estado de coisas pôde se alterar.

Algumas noções fundamentais deste período inicial podem, porém, ser resgatadas hoje de modo proveitoso, ganhando, a posteriori, uma significação mais clara. Nesta retomada, temos um ponto de partida relativamente sedimentado: deve-se cuidar de não aplicar o modelo do sentido do sintoma psiconeurótico para o sintoma adictivo; o fator atual e o curto-circuito da ligação direta psique-soma parecem cumprir nestes casos, em contraste, um papel proeminente, exigindo consideráveis reelaborações metapsicológicas e técnicas.

Ora, nos surpreendemos aqui em encontrar na noção de hábito uma espécie de “elo perdido” entre o modelo das neuroses atuais e a terapêutica das adicções. Esta trilha foi aberta por Ferenczi (1993 [1925]), que, mais de duas décadas depois desses trabalhos iniciais de Freud, nos brindou com um surpreendente estudo sobre a “metapsicologia do hábito”, justamente – e não por acaso – no ápice de suas pesquisas sobre a “técnica ativa”.  As decorrências de sua proposta para uma possível terapêutica das adicções é notável: certos “maus hábitos”, conforme se cristalizam, podem exigir do analista uma “técnica ativa” que almeje, através de proibições e injunções, liberar a libido estancada e indisponibilizada para servir ao trabalho de análise. É curioso notar que, se a “mudança de hábito” era buscada, logo no início, pela influência hipnótica, esta mesma meta foi, em certo momento, abraçada pela “técnica ativa”. No lugar da hipnose – e nos momentos em que a associação livre parece mostrar-se impotente – surge a intervenção “ativa” do analista, indicando que uma vez mais o poder mágico da palavra do médico precisa ser invocado ali onde o trabalho de interpretação é ineficaz.

A proposição da técnica ativa por Ferenczi, desenvolvida e apresentada em uma série de artigos publicados entre 1919 e 1926, nasceu de uma parceria inicial com Freud, que acabou adotando uma posição de maior distância em relação a este polêmico projeto. Este parece constituir-se mais um lance significativo da complexa relação Freud-Ferenczi, plena de trocas, admiração e afetos recíprocos, mas também de diferenças, conflitos e ambivalência crescentes, culminando no afastamento mais marcado dos últimos anos, já bastante conhecido e debatido.[23] Assim como neste período final da obra de Ferenczi, o eixo fundamental da polêmica se concentrava em questões da técnica psicanalítica, mas – é preciso sempre ressaltar – envolvia necessariamente uma série de problemáticas metapsicológicas e concepções mais de fundo. Talvez não por acaso, o pontapé inicial dado por Freud[24] no “projeto técnica ativa” se deu em Budapeste, em um Congresso de Psicanálise – portanto, no território de Ferenczi –, em um dramático momento histórico de pós-guerra.

Freud (1918) inicia sua conferência propondo-se a revisar o estado da terapêutica psicanalítica então e sugerir novas direções que poderiam vir a ser adotadas. Após retomar o papel central da resistência no tratamento e de propor uma interessante discussão sobre o conceito de análise, com implicações tanto éticas quanto técnicas – uma vez que o analista não deve se ocupar de uma “psico-síntese” – esta cabe unicamente ao analisando –, ele se dedica à questão da atividade no trabalho do analista. Trazer o recalcado à consciência e revelar as resistências já constitui em si uma atitude ativa por parte do analista; mas Freud indaga: a sua atividade deve parar por aí? Ora – responde –, uma atividade que dê um suporte ao analisando para vencer as resistências e que, para tanto, intervenha, eventualmente, em circunstâncias exteriores de sua vida que contribuam com os processos patológicos está plenamente justificada.

Bem, em seguida, Freud introduz, de forma engenhosa, a dimensão metapsicológica de fundo que está implícita na atividade do analista – e que é, aliás, tão central na clínica das adicções: a questão da abstinência, considerada em termos da dinâmica da aquisição das neuroses e de seu tratamento. Quanto a tal dinâmica, Freud nos lembra que o surgimento de uma neurose tem como fator desencadeante uma privação. Tal aspecto havia sido desenvolvido longamente em artigo dedicado ao tema (FREUD, 1981 [1912b]), no qual o papel da frustração é discutido em detalhe e em toda sua complexidade. Pois a frustração pode ser tanto “externa” quanto “interna”, ou mesmo “relativa” – provocada, por exemplo, por um incremento libidinal circunstancial. O que está aqui em jogo é o fator quantitativo, assim como as características do conflito entre o Eu e a libido. Ora, assim como na etiologia das neuroses, também na situação de tratamento a relevância do fator quantitativo se reapresenta: pois, em diversas circunstâncias, pode se dar uma espécie de “escape” da energia necessária para o prosseguimento do trabalho analítico, chegando a retardá-lo ou mesmo inviabilizá-lo. As duas principais formas de escape desta energia durante a análise são a criação precipitada de vias de satisfação substitutivas na vida real do paciente e a cronificação destas vias de satisfação na transferência com o analista. É precisamente diante desses riscos que o analista deve ficar atento, e buscar a dita “abstinência”; nota-se, aqui, como tal abstinência de refere tanto às possíveis satisfações substitutivas na transferência – e, neste caso, cabe também ao analista “abster-se” – quanto aos escapes na vida “real” do paciente fora do setting analítico, frente aos quais pode ser necessária uma intervenção mais ativa por parte do analista.

Ora, se a atividade do analista é uma decorrência do princípio de abstinência, encontramo-nos aqui no fio da navalha entre as condições técnicas para o avanço do trabalho analítico e as condições éticas implicadas em não assumir uma função “sintetizadora” antianalítica. Freud reafirma que não se deve estruturar o destino ou impor nossos ideais aos pacientes, nem tampouco oferecer-lhes uma “visão de mundo” à qual deveriam aderir; por outro lado, faz-se necessário, por vezes, intervirmos a fim de propiciar a evolução do processo de tratamento. Nesta conferência, Freud é breve, mas contundente em suas proposições, e antecipa grande parte dos problemas que surgirão nas controvérsias ulteriores sobre o assunto. Ele deixa claro o princípio subjacente a uma técnica ativa, e toda a problemática técnica e ética nela implicada; e, para não deixar dúvidas quanto ao que está propondo, apresenta duas situações clínicas nas quais tal procedimento seria indicado: sugerir a um paciente fóbico “saia na rua e enfrente sua angústia”, e “atacar” a obsessão sem fim dos neuróticos obsessivos conforme ela se instale no próprio processo analítico.

Mas será Ferenczi quem desenvolverá à exaustão, baseado exatamente nos princípios assentados por Freud, tais proposições. No ano seguinte à Conferência de Freud em Budapeste, Ferenczi (1993 [1919a]) publicou um relatório clínico de aplicação da “técnica ativa”, contendo as linhas gerais que a caracterizam. É digno de nota que, neste relato, um dos principais pivôs da discussão tenha sido justamente a atividade masturbatória, o que nos remete diretamente à discussão anterior, a propósito das neuroses atuais e suas relações com as adicções – lembremos do “vício primário”. Ferenczi ressalta que tal atividade não é nociva em si mesma, mas pode ser um forte fator de resistência quando “atuada” inconscientemente, produzindo um curto-circuito somático que aborta a elaboração psíquica do material recalcado. O problema da resistência estava no centro das preocupações da técnica ativa, conforme Freud havia anunciado; no caso da paciente de Ferenczi, tratava-se de uma análise estagnada, muitas vezes também congelada pelo amor de transferência, que suscitara no analista várias tentativas de intervenção, incluindo a fixação de um prazo e interrupções no tratamento. Mas o caminho das pedras só foi encontrado quando Ferenczi se deu conta de que determinado comportamento da paciente – cruzar as pernas durante a sessão – era acompanhado de sensações eróticas genitais, e servia regularmente como via de escape do trabalho psíquico; Ferenczi decide então proibir tal prática. A via de escape ressurgiu sob diversas outras roupagens – variantes de um “onanismo larval”, que Ferenczi passa a identificar em inúmeras manifestações, gestos e tiques dos pacientes –, todas elas interditadas pela atividade do analista, o que possibilitou, devido a um “efeito fulminante”, uma evolução surpreendentemente favorável do trabalho analítico.

As práticas e os hábitos sexuais são, assim, (re)colocados no centro do debate. Ferenczi alude diretamente à então já relativamente “esquecida” teoria das neuroses atuais, e afirma peremptoriamente que “só dispõe de potência normal aquele que é capaz de reter e de acumular por um certo tempo as moções libidinais e de deixá-las afluir plenamente a órgãos genitais na presença dos objetos e metas sexuais apropriados. O desperdício permanente de pequenas quantidades de libido é nocivo a esta capacidade” (1993 [1919a], p. 5). Ele menciona, ainda, a situação específica tanto da neurastenia quanto da neurose de angústia, retomando seus respectivos mecanismos básicos, conforme as proposições de Freud. No entanto, é curioso notar como, neste momento, Ferenczi refere-se a um caso de histeria – ou seja, de psiconeurose –, o que indica uma articulação bem mais complexa, que usualmente se supõe entre o campo das psiconeuroses e das neuroses atuais.[25] Segundo penso, tal bipartição necessita ser reexaminada com bastante cuidado. Deve-se notar, ainda, que aqui cabe a Ferenczi um mérito inegável: como podemos averiguar, revendo a conferência de Freud de 1918, não estava presente em seu horizonte uma articulação direta entre a técnica ativa e a dimensão experiencial e atual da vida sexual, articulação esta de responsabilidade de Ferenczi. Vemos aqui mais um surpreendente golpe das lançadeiras tecelãs na complexa rede de pensamentos que constitui o tecido das ideias na história da psicanálise, bem ao gosto do Goethe de Freud.

Ferenczi conclui, pois, que, em certos casos, “devemos barrar as vias inconscientes de escoamento da excitação psíquica para obrigá-la, graças ao ‘aumento de pressão’ da energia assim obtido, a vencer a resistência oposta pela censura e a estabelecer um ‘investimento estável’ por meio de sistemas psíquicos superiores” (1993 [1919a], p. 7). Assim, acrescenta-se aqui à eventual indicação de uma maior atividade do analista para vencer as resistências, fundada no ponto de vista econômico (tanto em relação à etiologia das neuroses quanto à dinâmica no tratamento), um novo ingrediente: o psicossoma e sua relação com a sexualidade. Pois a atividade sexual pode servir, em si mesma, tanto para produzir estados neuróticos atuais – quando o delicado equilíbrio excitação/satisfação for comprometido – quanto como uma via de escape da atividade psíquica necessária para o trabalho analítico. A tensão que nasce no corpo (libido somática) e que se desdobra em uma excitação psíquica pode ganhar diferentes destinos: quando devidamente sustentada, ela pode ensejar o trabalho de elaboração psíquica da fantasia inconsciente, e quando descarregada automaticamente, produz estados neuróticos e formas de escape que favorecem a resistência em análise. Um “investimento estável por meio de sistemas psíquicos superiores” – nos termos de Ferenczi –, que supostamente se busca no trabalho de análise, refere-se justamente a esta tensão sustentada.

A pesquisa de Ferenczi que se seguiu nos anos ulteriores impressiona qualquer analista que se decida a acompanhar tal percurso. A quantidade de casos e situações clínicas descritas demonstram o quanto ele pôs em prática e levou a sério as proposições clínicas, metapsicológicas e éticas implicadas na técnica ativa, desenvolvendo-a em diversas direções, discutindo suas indicações e contraindicações, reconhecendo equívocos e corrigindo algumas rotas. Trata-se de um grande acervo de ensinamentos para o praticante envolvido com a psicanálise, que não perde seu valor e interesse por seu suposto caráter anacrônico e equivocado.

No contexto do presente trabalho, veremos como tal pesquisa levou Ferenczi a elaborar uma espécie de “psicanálise dos hábitos”, a fim de assinalar, a partir daí, algumas de suas implicações para a clínica das adicções.

 

A psicanálise dos hábitos em Ferenczi

 

Em seu notável ensaio de 1925 dedicado ao assunto, Ferenczi (1993 [1925]) realizou um salto de qualidade em sua pesquisa: se, por um lado, ele se propôs a trabalhar a problemática técnica no campo específico dos hábitos sexuais, Ferenczi a articulou, por outro, à complexa e sofisticada teorização que vinha desenvolvendo a respeito da genitalidade. Mas o alcance do ensaio não termina aí, pois, apoiado nos resultados desta articulação – acompanhada de muitos relatos clínicos –, Ferenczi se dirige a uma elaboração bem mais ampla e ambiciosa: ele nos apresenta alguns elementos fundamentas para uma metapsicologia os hábitos, estudando-os tanto em sua gênese quanto no que diz respeito a sua abordagem terapêutica.

A teoria da genitalidade de Ferenczi, apresentada em “Thalassa: ensaio sobre a teoria da genitalidade” (1993 [1924a]), é uma engenhosa retomada das elaborações freudianas dos “Três ensaios sobre a sexualidade” (1981 [1905]), mas acrescida de novos elementos e de uma leitura muito própria. De modo muito esquemático, Ferenczi vê no encontro sexual genital uma busca de retorno à situação intrauterina e – no plano filogenético – ao tempo em que as espécies viviam no ambiente marinho. Esta tendência regressiva se realiza simultaneamente de forma real (o destino das células germinativas após a ejaculação), simbólica (pela experiência dos genitais durante a penetração enquanto objetos parciais) e alucinatória, pela vivência do sujeito como um todo na inconsciência do orgasmo, equivalente a um sono primordial. Ora, a possibilidade deste encontro é descrita como uma verdadeira conquista, em duplo sentido: enquanto ponto de chegada de um longo processo de desenvolvimento psicossexual (segundo Freud) e enquanto resultado da “luta entre os sexos”, que caracteriza o tempo propriamente genital desta história. Esta “luta” tem como base os elementos agressivos de domínio sobre o outro, remete o sujeito a sua travessia edipiana e, no plano filogenético, à catástrofe experimentada pelas espécies, desta vez na era glacial, mas seu encaminhamento implica uma elaboração bem-sucedida de tais elementos, que culmina em uma experiência de realização do Eu e de satisfação pulsional ímpar, à maneira de uma grande festa. Bem, os tempos pré-genitais deste processo são descritos e trabalhados por Ferenczi em detalhe, segundo uma hipótese de base: a “anfimixia” dos erotismos. Por efeito de uma espécie de “recalcamento orgânico”, as tendências libidinais relativas aos erotismos parciais oral, anal e uretral ficam livremente móveis ao longo do processo de desenvolvimento e, espera-se, são paulatinamente empurradas para uma concentração em torno da função genital.

Ora, foi justamente no ano seguinte à publicação de “Thalassa...” que Ferenczi nos apresentou a face clínica de suas elaborações, aplicando-as diretamente ao estudo dos hábitos sexuais. Partindo inicialmente dos hábitos pré-genitais, Ferenczi sugere, à maneira do que havia proposto em seu estudo pioneiro de 1919, que a persistência de diversos hábitos uretrais, anais e orais serviam como impeditivos do avanço do trabalho de análise, e que intervenções ativas nestes hábitos podem conduzir a uma reanimação produtiva de tal trabalho. Os exemplos citados e as experiências clínicas ensaiadas por ele são inúmeras: vontade de urinar durante a sessão, retenção anal obstinada, hipertrofia de prazeres ligados ao comer e ao beber e toda sorte de manobras mais ou menos explícitas ou sutis de experiências com o corpo a serviço da resistência, sedimentando-se muitas vezes em verdadeiros traços de caráter. Bem, a interferência em tais hábitos, “atacados” pela técnica ativa, mobiliza a libido ali retida e que deveria ser dirigida para uma realização genital mais plena, e revela, ao mesmo tempo, como tais estratégias buscam, na verdade, evitar regressivamente o conflito edipiano e a angústia de castração. Assim, a própria experiência de abstinência traz a oportunidade de uma descoberta com sabor de conquista: a possibilidade de suportar melhor o desprazer habilita o sujeito a se candidatar a um “ganho de prazer erótico superior”, “e essa convicção confere-lhe um certo sentimento de liberdade e de autoconfiança de que o neurótico está particularmente desprovido” (FERENCZI, 1993 [1925], p. 333). Podemos denominar esta uma conquista do Eu.

Em seguida, Ferenczi concentra-se mais diretamente nos hábitos sexuais propriamente ditos, de caráter genital; aqui temos o centro do seu artigo, e a apresentação das proposições mais ousadas e interventivas na atividade sexual dos pacientes. Ele parte da combinação de duas sugestões de Freud relativas à abstinência. A primeira delas, extraída da conferência de 1918, em Budapeste, refere-se a uma advertência e uma limitação colocada por Freud no uso deste princípio técnico, que Ferenczi amplia de forma ousada: caberia ao analista “propor”, em alguma medida ou em algum contexto específico, uma abstinência sexual de seu paciente durante a análise? Ferenczi sustenta, neste momento, que sim. A segunda sugestão de Freud, oriunda de “Psicologia das massas” (1981 [1921]), é que a não satisfação libidinal fortalece o vínculo entre os indivíduos e o líder; desta observação pode-se depreender que, em contraste, os vínculos sofrem um enfraquecimento devido a satisfações libidinais constantes, e isto se dá em vários campos: na educação de uma criança, no relacionamento amoroso ou na transferência. Assim, “se, durante a análise, deixa-se a tensão sexual descarregar-se constantemente pela satisfação, ficará impossível realizar as condições que criam a situação psicológica necessária à transferência” (FERENCZI, 1993 [1925], p. 338). Tal proposição é bastante contundente, e o são mais ainda as consequências técnicas que dela se podem depreender; penso que uma reação imediata de rejeição a elas que surge naturalmente aos analistas merece ser refreada, abrindo lugar para uma leitura e um exame mais cuidadoso do assunto.

Antes de tudo, deve-se observar como, nos diversos exemplos relatados por Ferenczi, a “anagogia sexual” por ele proposta é situacional e dirigida a hábitos sexuais que, segundo sua ótica, aprisionam os pacientes em diversas formas crônicas de sofrimento: insatisfação sexual, estados neuróticos com sintomas de disfunção sexual, fixação a relacionamentos infelizes,[26] etc. E isto vale tanto para sujeitos que tenham uma parceria amorosa-sexual estável quanto para os que não tenham. O inventário clínico das formas de sofrimento nesta área realizado por Ferenczi é notável: a manutenção de encontros eróticos movidos por uma dependência afetiva em um relacionamento infeliz, a hiperatividade sexual-genital como compensação do sentimento de fraqueza, como dissimulação do ódio latente e movida pela angústia de castração e – como não podia deixar de ser – os casos de neuroses atuais, descritas por Freud. Mas, ao contrário dele, Ferenczi posiciona-se de forma inequivocamente favorável a colocá-las no rol das indicações para o tratamento psicanalítico. Ora, a revisitação deste artigo de Ferenczi deixa muito claro o quanto o tratamento psicanalítico das neuroses atuais (ou das formas “comuns” de neurose, como Freud se referiu na conferência de 1917) fazia parte do “hábito” e do cotidiano clínico de Ferenczi, e também o quanto que, como ele mesmo testemunha, a observação e a cura de tais problemáticas vinham sendo “até agora bastante negligenciadas pelos psicanalistas” (FERENCZI, 1993 [1925], p. 340). E aqui Ferenczi se aproxima, curiosamente, das pesquisas então realizadas por Reich, com quem diz “compartilhar inteiramente” da opinião de que “todos os casos de neurose, e não apenas aqueles de impotência manifesta, são acompanhados de distúrbios mais ou menos importantes da genitalidade” (FERENCZI, 1993 [1925], p. 331).

Ferenczi apoia-se nos princípios básicos propostos por Freud em sua teoria das neuroses atuais, mas acrescenta a ela diversos elementos, articulando-a a um quadro teórico-clínico amplo e de grande interesse. Assim, se a “descarga inadequada” é o fator etiológico da neurastenia, tal forma de sofrimento pode ser redescrita como “um protesto angustiado por parte do Eu corporal e psíquico contra a exploração libidinal” (FERENCZI, 1993 [1925], p. 340), levando a uma espécie de “angústia hipocondríaca do Eu”. Ora, se pensarmos que este Eu que reage à exploração libidinal com um protesto é ainda fraco para fazer frente a ela, e que devido a isto fica aprisionado em um ciclo vicioso de compulsão à repetição, parece em tese plausível que o analista entre em cena com seu Eu “auxiliar”, emprestando sua força, sua atitude e sua capacidade de se posicionar e de interditar – em suma, sua atividade – para pôr em marcha um processo estagnado. O orgasmo do neurastênico é atingido às custas das funções do Eu,[27] “arrancando-lhes por assim dizer um fruto ainda não maduro”, e tendo como consequência um estado crônico de “remorso físico” (FERENCZI, 1993 [1925], p. 341). É de grande interesse notar como iremos reencontrar esta metáfora do fruto arrancado prematuramente no último artigo de Ferenczi, ao descrever o “bebê sábio” que resulta das formas dissociativas organizadas em situações traumáticas, que conduzem a sentimentos de culpa devido à identificação com o agressor – mais uma volta na espiral do processo de construção do pensamento! Bem, em contraponto à neurastenia, na neurose de angústia, nos diz Ferenczi, tal angústia que dá nome ao quadro provém de uma libido objetal represada. Vemos aqui como Ferenczi assimila à sua maneira o acréscimo proposto por Freud à teoria das neuroses atuais em “Introdução ao narcisismo” (1981 [1914]), considerando a angústia do Eu neurastênico como de natureza hipocondríaca, em contraste com a angústia da neurose de angústia – e aqui seguindo a primeira teoria da angústia de Freud – como referida à libido de objeto. Bem, mas Ferenczi mantém, também no caso do tratamento da neurose de angústia, o mesmo princípio técnico “radical”: ainda que tal angústia seja resultante de uma abstinência sexual, deve-se paradoxalmente “reforçar a regra da abstinência apesar da angústia” (FERENCZI, 1993 [1925], p. 342), e dar prosseguimento, em paralelo, à investigação analítica.

Em resumo: para Ferenczi, a utilização do princípio de abstinência no tratamento analítico tem dois principais efeitos esperados (além de possíveis efeitos colaterais indesejados, que não devem ser esquecidos ou negligenciados!). São eles: disponibilizar a libido aprisionada devido a “maus” hábitos para uma experiência sexual mais satisfatória e desenterrar importante material inconsciente que se mantivera até então escondido. Como seria de se esperar, os pacientes apresentam reações a estas medidas técnicas, sendo a mais óbvia um incremento de angústia; mas observa-se, também, as não menos importantes reações de cólera e vingança, inclusive na transferência. Por fim, deve-se ressaltar que, conforme Ferenczi sempre nos lembra, tais medidas e a mobilização que elas suscitam são insuficientes para restabelecer a capacidade de gozo do sujeito: “sabemos, desde os trabalhos de Freud, que a ascese e a abstinência absoluta são, tanto uma quanto a outra, impotentes para curar uma neurose na ausência de uma resolução analítica dos conflitos internos” (FERENCZI, 1993 [1925], p. 343).

Mas, como disse, o estudo de Ferenczi não para aí: seu horizonte é bem mais amplo. A partir desta psicanálise dos hábitos sexuais – e passando por breves e contundentes considerações sobre a fantasmática inconsciente de natureza sádica que acompanha a atividade sexual e sobre a relação entre hábito e sintoma – Ferenczi tem como meta uma “psicanálise dos hábitos em geral”.

Quanto à primeira consideração, Ferenczi propõe que o homicídio sádico e o prazer masoquista – tanto na fantasia inconsciente quanto em práticas perversas manifestas – sejam compreendidos à luz da complexa conjunção entre gozo, dor e angústia que compõem a sexualidade humana. A dor hipocondríaca da zona genital e a angústia diante da atividade sexual, assim como a concepção do encontro sexual como uma “luta entre os sexos” com matizes de violência (assim como seu contraponto lógico, a angústia de castração) são inerentes à psicossexualidade. Se, por um lado, tal conjunção é inerente e universal, ela pode também produzir tanto sintomatologia neurótica quanto formas sexuais desviantes manifestas. A técnica ativa pode, também aqui, vir em auxílio do trabalho de análise. No caso do sujeito neurótico, a abstinência busca levá-lo a aprender a suportar fortes tensões, e assim vencer a angústia do coito; e, retomando a “necessidade de sofrer” assinalada por Freud em “O problema econômico do masoquismo” (1981 [1924]), Ferenczi propõe seu correspondente clínico, ao sugerir que suas experiências técnicas visavam “aumentar a capacidade de suportar a dor para além do limiar da angústia” (1993 [1925], p. 345). Ora, as implicações teórico-clínicas destas sugestões, apenas esboçadas, são de grande interesse, e também antecipam, entre diversas direções da pesquisa psicanalítica pós-freudiana, a importante contribuição de Melanie Klein e de outros quanto ao papel central e determinante das fantasias sádicas e primitivas na vida psíquica. A partir daqui, erótico e agressivo passam, definitivamente, a andar de mãos dadas no pensamento psicanalítico.

Examinando a segunda consideração, compreendemos como a articulação entre hábito e sintoma é um elo fundamental para chegarmos à metapsicologia do hábito. Pois existem inúmeras formas de “hábitos sintomáticos” que, se por um lado encobrem moções recalcadas, não estão manifestamente relacionadas ao sexual. Em seu trabalho clínico, Ferenczi reconhece e “cerca”, com muita atenção e meticulosidade, tais apresentações, intervindo analiticamente sempre que identifica aí uma dimensão sintomática. Assim, o comportamento motor e gestual durante as sessões é alvo de uma observação rigorosa; uma rigidez muscular excessiva, “maus hábitos” tais como roer unhas e coçar-se, tiques convulsivos, são assinalados pelo analista, que pode sugerir aí um abster-se destes comportamentos para pôr em marcha o trabalho de análise. E, destacando um fundamento conceitual que está implícito a esta psicanálise dos hábitos motores e corporais, Ferenczi retorna à clássica teoria da histeria e postula que todo sintoma conversivo tem sua gênese em hábitos da infância que se tornam inconscientes e automatizados – as chamadas “brincadeiras” infantis!

Vê-se, pois, o quanto o estudo dos hábitos-sintoma abre novas e promissoras perspectivas para a pesquisa psicanalítica.

 

Da psicanálise dos hábitos ao hábito da psicanálise

 

Bem, a partir daqui somos, mais uma vez, brindados com o particular talento observador e inventivo de Ferenczi, que, neste mesmo contexto, põe “em análise” a própria regra da associação livre. “A psicanálise também pode ser considerada um combate permanente contra os hábitos de pensar” (FERENCZI, 1993 [1925], p. 348). Ao nos advertir contra o risco de uma cronificação esterilizante do “hábito de pensar” em análise, ele observa que tanto a tendência a um pensamento orientado (controle da direção das pseudoassociações) quanto a “liberdade excessiva” de um pseudoassociar como fuga do material mais penoso são formas sutis, mas sérias, de resistência, e pedem do analista uma certa atividade para interceptar tais “vícios da psicanálise”.[28]

Ferenczi (1993 [1924b]) já havia se dedicado a tais questões em um notável artigo sobre a “atividade” na técnica da associação. Neste trabalho, ele nos adverte sobre a entrega gozosa de certos pacientes a devaneios sem fim como forma de resistência, assim como, no extremo oposto do espectro de tipos clínicos, “ataca” com ousadia um desafio que preocupa tantos analistas hoje: como lidar com pacientes cuja atividade fantasística é particularmente pobre. Aqui vemos a intuição clínica de Ferenczi trabalhar a fim de “provocar” ativamente a emergência da fantasia que, segundo sua hipótese, está soterrada pelos esmagadores ideais educativos antissexuais, antecipando e a até sugerindo, transitoriamente, tais fantasias pelo paciente. Nesta proposta técnica, podemos reconhecer uma versão preliminar tanto das “construções em análise”, propostas por Freud posteriormente, quanto da ideia tão difundida na psicanálise pós-freudiana de “emprestar” o Eu e as funções psíquicas do analista para seu paciente em análise; mas, sobretudo, vemos nela um espírito crítico muito aguçado, que nos convida sempre a uma autoanálise – e não apenas do “pessoal” do analista e de sua contratransferência, como também do próprio dispositivo analítico e seus efeitos – almejados ou colaterais, desejados e indesejados. Ora, se observamos frequentemente, do lado do paciente, um “mau uso” da liberdade de associação, deve-se também olhar para o lado do analista! Pois ele é, usualmente, muito mais “ativo” do que supõe ser, já que toda interpretação é obrigatoriamente ativa, uma vez que ela interrompe e redireciona o fluxo associativo do paciente. Ferenczi nos convida, assim, a quebrar dois tabus: o da sagrada e intocável regra da associação livre e o da autoimagem de passividade absoluta do analista.

Assim, tanto a atividade corporal – os hábitos-sintoma dos pacientes – quanto a atividade psíquica devem ser objeto de uma abordagem crítica que traga à luz a dimensão de habitualização sintomática que, eventualmente, delas possa se apossar. Se, por um lado, a finalidade desta habitualização é, a princípio, o encobrimento de material inconsciente, é necessário irmos mais longe: pois aqui também entra em ação – como veremos – uma compulsão à repetição, que resulta na estagnação do movimento do psíquico[29] e em uma cronificação, à maneira de um círculo vicioso.

Não é pouca coisa observarmos como tais articulações teórico-clínicas foram se construindo, no pensamento de Ferenczi, ao longo de um percurso contínuo e consistente. Pois ele foi pioneiro em compreender a importância e a necessidade de uma espécie de “psicanálise da regra fundamental”, parte integrante da “psicanálise do enquadramento psicanalítico” que conheceremos a partir de trabalhos clássicos de Winnicott (1992 [1954]) e de Bleger (1977 [1964a). Devido à sua inclinação para um pensamento independente rigoroso – em uma rara combinação entre referência à tradição e compromisso radical com sua própria pesquisa –, Ferenczi nos legou a complexidade dialética entre tradição e ruptura na história da técnica psicanalítica. Assim, em um brilhante artigo dedicado a um resumo da técnica psicanalítica “clássica”, que antecede o período da técnica ativa, Ferenczi (1992a [1919b]) prenuncia problemáticas fundamentais da práxis psicanalítica que nos ocupam até hoje, tais como a contratransferência, os aspectos formais da comunicação paciente-analista em paralelo à comunicação verbal (de conteúdo) e os abusos/distorções do processo associativo. Já neste momento ele propõe que também o analista precisa “relaxar” e “deixar falar o seu próprio inconsciente”, sem, porém, perder o senso crítico e manter sua “sentinela”; trata-se, precisamente, de uma “dissociação instrumental”[30] requerida pelo analista em seu trabalho – por um lado identificado e por outro discriminado em relação ao seu paciente –, mas também uma espécie de interjogo dialético entre relaxamento e tensão, ou entre entrega passiva à livre associação e à flutuação da atenção e uma postura “ativa”. Isto que, como Ferenczi mesmo apontou, parece ser uma grande contradição, requer do analista uma habilidade muito singular; “essa oscilação permanente entre o livre jogo da imaginação e o exame crítico exige do psicanalista o que não é exigido em nenhum outro domínio da terapêutica: uma liberdade e uma mobilidade dos investimentos psíquicos, isentos de toda inibição” (FERENCZI, 1992a [1919b], p. 367).

Vê-se, pois, como a “técnica ativa” emerge e se desenvolve como um trabalho intenso e incansável de exame crítico e pesquisa independente da chamada “técnica clássica”, acompanhado por atenta, extensa e perspicaz atividade de observação clínica; ela surge, sobretudo, a partir da técnica clássica, e não simplesmente em oposição ou substituição a ela. Penso que o próprio Freud tinha muita clareza disto, apesar das discordâncias e controvérsias dos últimos anos; assim, em carta a Ferenczi, de 1928, na qual comenta seu artigo sobre a elasticidade da técnica que dá início à fase final de seus trabalhos, Freud escreveu: “[este artigo] revela a judiciosa maturidade que o senhor adquiriu nos últimos anos, no âmbito da qual ninguém se aproxima do senhor” (apud JONES, 1989 [1955], p. 245). Se as “recomendações” feitas por Freud (1981 [1912c]) em seu conhecido artigo tinham um caráter negativo – o que não se deve fazer –, Ferenczi, em seu artigo, arrisca-se a formular as recomendações positivas na forma do uso do “tato” do analista em seu trabalho clínico. Freud reconhece, nesta carta, que suas próprias “recomendações” estimularam uma tendência ao dogmatismo, já que “analistas dóceis não perceberam a elasticidade das regras que expus e se submeteram a elas como se fossem tabus”; e ainda profetiza: “algum dia tudo isto deve ser revisto” (apud JONES, 1989 [1955], p. 246). Embora declare “alguma desconfiança” em relação às “concessões” sugeridas por Ferenczi – que poderiam justificar arbitrariedades subjetivas dos analistas movidas por seus complexos não dominados –, Freud é enfático ao declarar que “tudo o que o senhor diz sobre o ‘tato’ é certamente verdadeiro” (apud JONES, 1989 [1955], p. 246). Bem, penso que a revisão periódica de “tudo isto” é uma tarefa e um compromisso ético de todos nós: buscar o delicado equilíbrio entre compreender o sentido e o valor da tradição e reavaliá-la, reciclá-la e, eventualmente, transformá-la a partir dos impasses e desafios que o trabalho clínico coloca.

Esta dialética entre continuidade e ruptura na história da técnica – e, em particular, nos trabalhos de Ferenczi – é também ressaltada por Balint, para quem a técnica ativa “representa, sem dúvida, uma importante mudança, uma verdadeira renovação; entretanto, visto de um outro ângulo, é a continuação lógica do que precede” (1992a [1968], p. XII). Ademais, a pesquisa com a técnica ativa antecipa e prepara os últimos trabalhos de Ferenczi sobre a técnica e lhes confere um sentido histórico e profundo, o que em geral não é bem apreendido quando tais trabalhos são tomados de forma unilateral e esquemática.[31] Se uma primeira aproximação poderia nos levar a uma apreensão linear da evolução na teoria da técnica – do relaxamento da associação livre à tensão proposta pela técnica ativa, e depois um novo passo/retorno ao relaxamento nos últimos anos – percebemos com mais atenção que se trata de uma situação mais complexa, dificilmente redutível a simples oposições. De fato, a importância do relaxamento volta à cena com bastante força nos últimos anos de Ferenczi. Mas, para melhor compreendermos este movimento, é importante lembrar o quanto, neste caminho, a pesquisa de Ferenczi evoluiu em direção a um pensamento cada vez mais calcado nas relações de objeto. Neste novo contexto, ele passa a ressaltar o quanto o relaxamento, do lado do paciente, envolve uma entrega a um outro cuidador e uma regressão a um estado infantil, ou seja, implica em uma “regressão à dependência”, conforme veio a propor Winnicott. Ora, esta entrega supõe confiabilidade e sustentação, cujas falhas produzem insegurança e reações de defesa caracterológicas; cabe, portanto, ao analista, assumir uma certa “atividade” de sustentação necessária que ofereça a oportunidade de relaxamento para seu paciente, para além de uma posição passiva clássica. E, ainda, o relaxamento se coloca também do lado do analista, pois envolve analogamente uma entrega regressiva deste aos seus próprios processos primários e à memória de suas experiências mais primitivas – condição que reproduz, intrapsiquicamente, no espaço pessoal das ressonâncias contratransferenciais, a situação intersubjetiva da dupla cuidador-cuidado.

Ainda dentro desta temática, gostaria de destacar um breve comentário de Ferenczi em seu ensaio sobre os hábitos que tange a dimensão psicossomática do trabalho de análise, um dos eixos de nossa presente abordagem. Trata-se de uma nota a respeito da relação entre relaxamento e associação livre: “parece existir uma certa relação entre a capacidade de relaxamento muscular em geral e a capacidade de praticar a associação livre” (FERENCZI, 1993 [1925], p. 346 [nota de rodapé n. 24]). Esta observação indica como a perspectiva monista também se aplica à experiência psicanalítica, na qual a expressão verbal deve ser sempre considerada em sua relação intrínseca com a expressão corporal.

Ferenczi (1992a [1919b]) já havia assinalado não apenas um paralelismo, mas uma verdadeira identidade entre as atividades psíquicas (pensamento e atenção) e as inervações motoras. Fundamentando-se em elementos da metapsicologia de Freud, ele nos lembra da condição de inação para a regressão alucinatória dos processos oníricos, da descarga da tensão psíquica através do riso, da derivação do psíquico em somático nas conversões e da substituição da ação pelo pensamento nos obsessivos – assim como da leitura proposta por Freud da atividade de pensamento dos processos secundários e do princípio de realidade como equivalente a uma ação com doses mínimas de investimento.

Neste contexto, e em mais uma contribuição original e fecunda, Ferenczi propõe uma espécie de tipologia baseada no binômio motricidade/psiquismo: o “tipo motor” é o sujeito que desenvolve uma atividade muscular intensa enquanto reflete (por exemplo, em uma caminhada), e o “tipo inibido” é aquele que tende a interromper o movimento para poder pensar. Contrariando uma visão habitual que contrapõe ação e pensamento na forma de uma gangorra, ele sugere que o tipo inibido necessita “parar para pensar” a fim de concentrar-se e dirigir toda a sua atenção para algo penoso e difícil, habitualmente bloqueado por resistências internas, enquanto que o tipo motor é tão assolado pelo afluxo de pensamentos que necessita do movimento para moderar tal invasão psíquica, e assim torná-la operativa.[32] Em outro lugar (GURFINKEL, 2008b), propus um contraponto psicopatológico também apoiado no eixo pensamento/ação, mas caracterizado pelos polos da impulsividade e da compulsividade. Segundo este ponto de vista, o tipo impulsivo, tão característico em formas psicopatológicas ditas contemporâneas, não é aquele sujeito que dispõe de toda potência de sua atividade psíquica por estar relativamente livre de inibições, e sim aquele cuja descarga na ação é o corolário de um déficit marcante e estrutural da atividade simbolizante. Hoje parece difícil compreender este tipo dentro apenas de uma lógica do recalcamento – como um des-inibido –, pois estamos aqui diante do colapso do sonhar, em um outro registro do funcionamento psíquico, para além do princípio do prazer. Trata-se, mais precisamente, da pessoa para quem o agir passou a ser seu hábito de viver, ganhando os “hábitos sintomáticos motores” descritos por Ferenczi como um caráter estrutural e estruturante da personalidade. No “tipo motor” de Ferenczi, ao contrário, trata-se, em geral, muito mais da gestualidade do psíquico segundo o modelo do sonhar, com toda a sua potência criativa; mas sempre em uma corda bamba, podendo desviar-se para o devaneio, para o fantasiar estéril ou para a pura descarga.[33]

Ora, também a situação analítica pode ser vista segundo o binômio pensamento/ação. Pois ela está assentada sobre a lógica da interrupção da motricidade e da atenção dirigida ao exterior em benefício da ampliação da atenção dirigida aos processos psíquicos, segundo o modelo do sonho.[34] A proposição de um setting estável e fixo, como bem assinalou Bleger, oferece ao paciente um espaço para o depósito dos aspectos mais primitivos de sua personalidade: o divã, a neutralidade do analista com sua presença em negativo e outros tantos rituais que caracterizam o cotidiano de uma análise podem ser entendidos como estratégias para propiciar uma experiência regressiva análoga ao sono-sono; pois, como Freud já havia assinalado, a interrupção da motricidade é uma condição essencial para o dormir. Ora, tal leitura sobre o significado da situação analítica se baseia em uma suposta oposição – do tipo gangorra – entre pensamento e ação. Mas, se adotarmos a “identidade” entre atividade psíquica e inervação motora proposta por Ferenczi, podemos ir mais longe: vemos que relaxamento motor e psíquico andam juntos. Assim, observa ele, muitos pacientes apresentam uma rigidez excessiva, e, “com os progressos da análise, a resolução das tensões psíquicas pode ser acompanhada do desaparecimento da tensão física” (FERENCZI, 1993 [1925], p. 346).

Tais considerações sobre relaxamento e/ou tensão na situação analítica se mostraram cada vez mais importantes no trabalho analítico. Se já em 1919 Ferenczi havia sugerido que cabe ao analista “relaxar” para “deixar falar o seu próprio inconsciente”, na última fase de suas pesquisas sobre a técnica ele tomou a experiência de relaxamento na transferência como o foco nuclear de suas pesquisas (FERENCZI, 1992b [1930a]). Pois tal experiência passou a ser vista como o meio mais eficaz para se atingir e colocar em análise camadas mais profundas do psiquismo, especialmente aquelas atingidas e corrompidas por experiências traumáticas precoces; aqui, o campo da transferência-contratransferência passa a ser compreendido, de maneira mais definitiva, sob a ótica da situação intersubjetividade de cuidado adulto/criança. É importante notar, no entanto, que mesmo neste seu momento mais “radical”, o que Ferenczi veio a propor, a partir de uma revisão crítica dos possíveis efeitos nocivos da tensão gerada pela técnica ativa, foi um melhor equilíbrio entre os princípios da frustração e do relaxamento.[35]

Bem, a partir destas indicações inaugurais de Ferenczi, cabe um rápido vislumbre de como tal discussão evoluiu e floresceu na história da psicanálise.

Assim, algumas décadas depois, Winnicott veio a ressaltar a importância crucial do relaxamento na transferência, especialmente com pacientes incapazes de brincar devido a lacunas especialmente significativas na experiência de self. Em termos da associação livre, o relaxamento significa não intencionalidade e não direcionamento da atividade psíquica, na qual o absurdo e o desconexo podem emergir, dando oportunidade para o paciente habitar a área do informe. Mas tal relaxamento – ressalta – só é possível se há confiança e “fidedignidade profissional do setting terapêutico” (WINNICOTT, 1996 [1971], p. 55), o que nos remete diretamente à situação intersubjetiva, e a uma forma de compreender a transferência enquanto uma relação de objeto. Assim, o relaxamento em análise implica um ambiente humano que sustente tal entrega. Winnicott (1990 [1958]) designou tal condição ambiental e humana como um “relacionamento através do Eu” (ego-relatedness), no qual o sujeito é capaz de ficar só na presença do outro, e de onde pode emergir um “impulso pessoal” que conduz, eventualmente, a um “clímax psicossomático” do Eu. A atividade psíquica que se pode emergir neste contexto é um verdadeiro fluxo livre, espontâneo e criativo do pensamento, que implica em abertura ao novo e à surpresa; em contraste com ele, encontramos no “fantasiar dissociado” descrito por Winnicott um pensamento repetitivo, fechado em si mesmo e estéril – um “beco sem saída”.

Em outras paragens, certas abordagens psicoterápicas passaram a incorporar, de modo mais explícito, técnicas de relaxamento nas suas práticas. Tais técnicas envolvem, muitas vezes, um relaxamento que é tanto psíquico quanto corporal, como aquelas desenvolvidas pela equipe do IPSO, em Paris, com pacientes somatizadores. De modo geral, podemos considerar que o objetivo destas abordagens é complementar as ferramentas verbais e interpretativas habituais, que se mostram muitas vezes limitadas e insuficientes com certos pacientes cuja organização psíquica se presta pouco ao trabalho associativo.

Nestas e em outras revisões sobre a técnica, creio que podemos reconhecer uma concepção psicossomática do trabalho analítico. Do lado do paciente, há que se ter em conta tanto suas expressões verbais quanto as corporais e motoras, e, muitas vezes, tomá-las como material implícito ou explícito para as intervenções. Do lado do analista, deve-se, em primeiro lugar, estar atento e sensível à dimensão psicossomática da contratransferência; mas pode também se fazer necessário complementar as interpretações com um manejo que comporta uma dimensão tanto psíquica quanto corporal – seja no sentido simbólico, ou mesmo efetivo –, e que implica sempre uma maior atividade do analista.

De modo geral, creio que podemos considerar todos esses esforços de revisão e de reinvenção da técnica psicanalítica como verdadeiras lutas contra os hábitos, como tão bem propôs Ferenczi. Aliás, a psicanálise em si mesma – em sua vocação de combate às resistências e em seu espírito à contrapelo – deveria posicionar-se sempre como um combate contra os hábitos. Observemos, porém, que nesta luta não há receitas: seja pelo recrudescimento das tensões através da abstinência, seja pela abertura regressiva proporcionada pelo relaxamento, trata-se de buscar os melhores caminhos para a viagem radical e exigente que é o tratamento psicanalítico. Se não colocarmos a psicanálise ela mesma – e seu dispositivo – em uma análise contínua, através de um trabalho autorreflexivo e autoanalítico, corremos o sério risco de uma alienação em nossos próprios hábitos, que cristalizam e ritualizam a práxis analítica de maneira esterilizante. Resgatar uma psicanálise dos hábitos nos permite manter viva a reflexão crítica sobre os possíveis vícios da psicanálise enquanto saber e prática “já instituídos”.

 

Metapsicologia do hábito e neo-pulsões

 

Chegamos finalmente ao núcleo da nossa questão: como se forma, afinal, um hábito? E quais são os meios, as possibilidades e o sentido de buscar transformá-lo?

A busca desta resposta levou Ferenczi a inserir a questão do hábito, de modo consistente e inequívoco, no rol de temáticas essenciais para se compreender a natureza do funcionamento do psíquico e, por consequência, a colocá-la na caixa de ferramentas do analista como um instrumento indispensável no seu trabalho cotidiano. A partir das ampliações sucessivas do seu tema de pesquisa – da análise dos hábitos sexuais pré-genitais e genitais e da fantasia inconsciente sádica na atividade sexual ao paralelo entre hábito e sintoma, estudando os hábitos motores e o hábito de pensar , Ferenczi passa finalmente a abordar os hábitos em geral. Mas, ao fazê-lo, nosso autor lança mão de fundamentos da metapsicologia freudiana – tanto de sua teoria pulsional como de seu modelo da tópica psíquica, especialmente aqueles recém-propostos então, a partir da chamada virada de 1920 – para daí formular uma verdadeira metapsicologia do hábito. Trata-se, sem dúvida, de uma articulação genial e engenhosa, plena de ressonâncias e bastante promissora em termos das perspectivas futuras para a psicanálise – mesmo que, do meu ponto de vista, ainda não tenha sido devidamente explorada.

Acompanhando as formulações de Freud (1981 [1920]) em “Além do princípio do prazer”, Ferenczi propõe que consideremos o hábito uma forma de compulsão à repetição. Esta sugestão, aparentemente simples, me parece muito acertada, correspondendo bastante bem ao que observamos na vida cotidiana e na clínica.  Aqui vemos como Ferenczi capta muito bem o espírito do que Freud nos traz sobre a radicalidade de um princípio da repetição na vida psíquica, estendendo-o a situações e exemplos que o próprio Freud não chegou a explorar.[36] Para compreender o hábito, Ferenczi destaca da teoria pulsional as dimensões de descarga e de um princípio regressivo próprios da compulsão à repetição. Com a virada de 1920, a repetição passou a ser cada vez mais considerada como uma tendência em si mesma, não mais a serviço do princípio do prazer ou dos processos de defesa do Eu – e, portanto, oriunda de fontes pulsionais primárias do Isso. Enquanto tal, e ainda que inconscientes, elas diferem substancialmente do material recalcado, pois, ao contrário destes últimos, não dispõem de meios expressivos através de um trabalho de representabilidade – trabalho realizado pelo pré-consciente, que permite tornar consciente o inconsciente, ou trazer para os domínios do Eu certas porções do Isso. Ora, se o único meio de derivação destes impulsos é a descarga da excitação em forma direta, a única maneira de tornar tal material acessível ao trabalho analítico – nos diz Ferenczi é bloqueando tal tendência à descarga através de uma técnica ativa.

Mas é recorrendo ao modelo da segunda tópica, articulado à teoria da compulsão à repetição, que Ferenczi encontra seu insight mais preciso. Em uma fórmula simples, ele propõe que, se a formação de um hábito é a transformação de ações voluntárias em automatismos, o “lugar” onde se instalam os hábitos é justamente o Isso; desta forma, os hábitos passam a funcionar de modo análogo às pulsões. É notável a semelhança entre tal analogia e uma hipótese teórico-clínica que veio a ganhar força no campo da psicanálise das adicções: a proposição das neo-necessidades.[37] Uma neo-necessidade é uma “falsa” necessidade, criada artificialmente, que gera, segundo Braunschweig e Fain (2001 [1975]), um curto-circuito na via erótica e um desvio da angústia de castração, pervertendo regressivamente formas desejantes ao reduzi-las ao status de necessidade próprio das funções de autoconservação. Segundo Ferenczi, podemos acrescentar aqui que os hábitos são uma espécie de neo-pulsões, material de experiência do Eu que regride à forma primitivas dos impulsos pulsionais.

Bem, se os hábitos se instalam como neo-pulsões no Isso e lá se acomodam, cabe ao trabalho do Eu buscar atacar os hábitos, em um esforço de... recuperar um certo livre-arbítrio! Utopia ferencziana? “Adquirir um hábito significa, portanto, entregar ao Id um antigo ato (de adaptação) do Ego, enquanto que, inversamente, eliminar um hábito implica que o ego consciente se apoderou de um modo de descarga antes automático (no Id) em vista de um novo uso” (FERENCZI, 1993 [1925], p. 350). Note-se que, uma vez que o trabalho do Eu tem uma vocação adaptativa, ele opera em uma direção progressiva e em aliança com o princípio de realidade, investindo a percepção, a atenção, a consciência, o discernimento e as diversas funções psíquicas correlatas, enquanto que o hábito, à maneira de como Freud havia redefinido o status das pulsões no texto de 1920, tem um caráter eminentemente conservador e regressivo. E, como já deve estar bem evidente, o trabalho da análise é aqui aproximado, por Ferenczi, a este trabalho do Eu, pois ele visa “substituir esses métodos habituais e inadequados para resolver conflitos a que chamamos de sintomas para uma nova e real adaptação” (FERENCZI, 1993 [1925], p. 350), fazendo com que segundo a célebre e controvertida fórmula de Freud –, onde havia Isso, uma porção de Eu possa advir. Portanto, neste sentido, a psicanálise mesma pode ser entendida como um verdadeiro combate contra os hábitos.

Esta é, pois, a leitura da articulação entre a teoria das pulsões e a teoria da tópica que permitiu a Ferenczi, ainda que sucintamente, assentar as bases para uma metapsicologia dos hábitos.

A relevância da temática dos hábitos para a compreensão da vida psíquica, tanto em sua dimensão mais geral quanto no que diz respeito ao âmbito da clínica, me parece de grande relevância, com muito ainda a ser explorado. Pois uma observação atenta e cuidadosa nos faz reconhecer o quanto os hábitos estão onipresentes na nossa vida cotidiana, constituindo uma das dimensões mais características do humano, em um leque que vai de formas mais patológicas e estereotipadas até as formas mais sutis, simples e supostamente benignas. O trabalho de Ferenczi foi, neste campo assim como em diversos outros, pioneiro e inaugural, e constitui um ponto de partida e uma referência básica a ser resgatada e retrabalhada. Seguindo suas proposições, começamos a compreender o quanto os hábitos, ao abrir trilhas que automatizam e “pulsionalizam” experiências subjetivas, são uma faca de dois gumes. Pois, se por um lado se dá aqui uma economia de energia e de espaço para o Eu trabalhar de maneira menos sufocada pelas exigências, menos sobrecarregada e mais “relaxada”, por outro, criam-se, nesta estratégia de acomodação perfeitamente compreensível, neo-necessidades que se impõem de modo automático e compulsivo, gerando um curto-circuito do psíquico que pode se tornar consideravelmente nocivo, já que, nas descargas automáticas e recorrentes – que podem se tornar crônicas e até violentamente compulsivas, como no caso das adicções , se carregam junto, como em uma enxurrada, porções significativas de material psíquico, constituindo caminhos de escape recorrentes e cronificados. À medida que abrimos mão do “trabalho do Eu”, que implica sempre um custo em termos de sustentação de uma tensão constante e de um gasto de energia – ao trocarmos o esforço de adaptação pela acomodação nas vias de descarga da repetição, de caráter regressivo – temos um outro preço a pagar: no limite, corremos o risco, maior ou menor, de ficarmos submetidos a uma compulsividade que nos domina. Tal submissão, assim como no estado de escravização do adicto, implica uma restrição bastante mutiladora do pequeno “espaço de liberdade” que nos resta, e que nos seria possível habitar.

A perspectiva que aqui se abre para a pesquisa psicanalítica é de grande envergadura, e me restrinjo a enunciar algumas de suas linhas possíveis.

Em primeiro lugar, cabe descrever e desenvolver as diversas modalidades de hábitos observáveis, que cobrem uma enorme extensão de situações e fenômenos. Assim, podemos estudar os hábitos em uma espécie de psicopatologia da vida cotidiana e analisar os processos de aquisição e quebra dos hábitos e seus efeitos. Apenas um exemplo: quais são os efeitos e como é vivido o processo de alguém que decide parar de fumar? Mas o hábito pode também ser compreendido como a construção cotidiana de modo de ser/estar, de uma referência estabilizadora de um Eu, ou até de uma espécie de forma expressiva do self; abrem-se aqui outras perspectivas, já desvinculadas de referências patologizantes implícitas quando tomamos o hábito como um sintoma.

Outra linha de pesquisa fundamental concerne à necessidade de distinguirmos com mais nitidez – tanto em termos descritivos quanto conceituais, considerando-se possíveis diferenças de mecanismos e dinamismos psíquicos as diversas modalidades de repetição já mencionadas: os vícios, os hábitos, os rituais, os traços de caráter, os modos de ser, etc. Trata-se de diferenças quantitativas ou qualitativas? Quando e como um hábito se torna um vício? Quando se instala uma verdadeira e “diabólica” compulsão à repetição? Qual é a relação entre estas diferenças e a estrutura e a constituição psíquica do sujeito, ou suas vulnerabilidades idiossincráticas? Em um plano mais conceitual e geral, pode-se também caminhar na pesquisa: como avançar em uma metapsicologia do hábito e na psicanálise das adicções, estudando-as, por exemplo, com base na formulação das “neo-pulsões” aqui esboçada?

Um último tema de pesquisa que quero apenas mencionar, e que me parece de grande relevância, refere-se a um olhar reflexivo para a própria experiência da análise a partir dos processos de habitualização, sobre os quais Ferenczi nos alertou tão bem. A seção final de seu artigo de 1925 se dedica exatamente a isto, abordando a questão da desabituação da análise (FERENCZI, 1993 [1925]). Como sabemos, as pesquisas sobre a técnica ativa, desde sua “largada” iniciada por Freud, tinham como uma de suas preocupações a estagnação do processo analítico em uma espécie de análise sem fim, e a eventual proposição de um limite temporal para o encerramento desta passou a ser uma das medidas cogitadas então. Ora, qualquer análise está sujeita a tal habitualização alienante e perniciosa, e aqui uma psicanálise do enquadramento psicanalítico se torna particularmente necessária. A dissolução da transferência, a conquista da autonomia possível dentro de um horizonte de interdependência humana e os possíveis vícios da psicanálise são temáticas que estão na ordem do dia, para as quais uma psicanálise dos hábitos muito pode contribuir.[38]

Percorrer e revisitar este caminho histórico conceitual, explorando a aproximação entre neuroses atuais e adicções, possibilita-nos, creio, um avanço considerável nas pesquisas psicanalíticas. Se, em seu artigo de 1925, Ferenczi (1993 [1925]) realizou ampliações sucessivas do seu objeto de investigação – dos hábitos sexuais aos hábitos sintomáticos em geral (sejam eles motores, discursivos ou mesmo aqueles fomentados pela própria cultura psicanalítica), e daí para uma metapsicologia dos hábitos , proponho aqui – como já deve estar claro um novo passo na pesquisa: caminharmos da metapsicologia dos hábitos para uma psicanálise das adicções, e vice-versa.

 

A terapêutica das adicções, a “clínica do agir” e a análise do caráter: por uma maior atividade do analista?

 

No que diz respeito à técnica e ao manejo clínico no trabalho com as adicções, penso que a aproximação entre hábito e adicções é particularmente frutífera; mas ela nos convida a acrescentar mais um elo significativo nesta série psicopatológica: a problemática do caráter. Nestes territórios da clínica, recorrer à proposição da técnica ativa me parece um caminho quase natural.

A técnica ativa não foi concebida, na sua origem e no seu espírito, como associada ou dirigida a formas psicopatológicas específicas. Freud logo mencionou a sua pertinência na terapêutica de certas fobias persistentes e processos obsessivos crônicos, assim como para “atacar” eventualmente o problema das “análises sem fim”. Nos artigos de Ferenczi, encontramos uma grande diversidade de exemplos de utilização de tal técnica em quadro clínicos bem variados, começando pela histeria e outras formas de psiconeuroses, mas também com as neuroses atuais, em casos de impotência, em formas caracterológicas diversas e até com perversões masoquistas – e, ainda, possivelmente, nas neuroses infantis e psicoses.

Ainda que possamos discutir o valor e o uso de uma técnica ativa nas mais variadas situações clínicas, quero aqui concentrar-me no âmbito de uma “clínica do agir”, na qual a atividade do analista se coloca de modo muito mais pungente. Considero pertinente traçarmos aqui uma linha que vincula análise do caráter, patologias do agir e adicções,[39] a fim de compreender as indicações de uma atividade no trabalho do analista, especialmente no que se refere à terapêutica das adicções.

A “análise do caráter” se refere, simultaneamente, a dois aspectos: à análise de uma certa forma psicopatológica – as ditas “neuroses de caráter” – e à análise dos traços caracterológicos, que estão presentes, em maior ou menor grau, em qualquer indivíduo. O ponto de partida desta linha de pesquisa foi dado por Freud (1981 [1908]), que propôs a distinção fundamental entre sintoma neurótico – compreendido à luz do retorno de representações inconscientes recalcadas do infantil sexual – e traço de caráter, entendido como uma cristalização direta dos erotismos em formas de ser e agir, constituindo parte da ossatura do Eu. A temática floresceu com vigor na década de 1920, especialmente no trabalho de analistas como Abraham,[40] Ferenczi – que dedicou muita atenção a tal problemática , Reich e outros. Mesmo na fase final de seu percurso, Ferenczi (1992b [1930b]) não deixou de reafirmar a análise do caráter como uma das fronteiras mais importantes e atuais dos campos de aplicação da teoria e da técnica psicanalíticas, em uma conferência dedicada especialmente ao assunto.

No âmbito de suas elaborações sobre a técnica ativa, Ferenczi considerou os traços de caráter como “psicoses privadas”, uma vez que constituem anomalias do Eu sustentadas e encobertas por um Eu narcísico, que protege uma porção maior ou menor da personalidade de “entrar em transferência” – daí sua dificuldade de ser analisada. O caráter se nos apresenta, em geral, como uma “muralha” nos diz Ferenczi (1993 [1920], p. 121) , e a técnica ativa seria particularmente importante para fazer frente a tal muralha. A estratégia por ele proposta é, através da atividade, exacerbar e conduzir ao absurdo os traços de caráter, apostando em uma espécie de implosão; estratégia de risco, como Ferenczi mesmo logo reconhece, pois pode facilmente acarretar na ruptura da análise. Ao abordar os hábitos pré-genitais, Ferenczi retoma o tema da análise do caráter, e afirma que a atividade do analista permite – como vimos acessar com mais rapidez material até então incessível; a estratégia terapêutica aqui se dá através de intervenções interditoras, que buscam reduzir o investimento de interesse em tais erotismos. Esta dimensão do trabalho de análise ambiciona uma verdadeira reavaliação de certos traços de caráter; e ela pode, de fato, levar a mudanças significativas em tais tendências e comportamentos, pois tais medidas “convencem o paciente de que é capaz de suportar mais desprazer, inclusive de utilizar este mesmo desprazer a fim de obter um ganho de prazer erótico superior, e essa convicção confere-lhe um certo sentimento de liberdade e de autoconfiança” (FERENCZI, 1993 [1925], p. 333). Assim, onde se havia instalado um caráter anal pronunciado, a avareza pode dar lugar a surpreendentes sinais de generosidade, ou, no caso de um caráter uretral facilmente inflamável, pode sobrevir uma maior capacidade de suportar tensões e uma maior moderação. 

Mesmo depois de sua revisão crítica dos experimentos com a atividade e do redirecionamento de sua pesquisa dos últimos anos, Ferenczi nunca deixou de considerar o lugar primordial da análise do caráter. “O tratamento analítico é tão indicado para as pessoas de caráter doente quanto para os histéricos e obsessivos” (FERENCZI, 1992b [1930b], p. 217). Em uma reavaliação em retrospectiva, observa que, no início de sua carreira, não agia sobre o caráter e mais do que isto – evitava fazê-lo por um respeito excessivo e para não arranhar um “pacto tácito de amizade”; mas com o tempo se deu conta de que o mecanismo dos sintomas estava misturado “de maneira excessivamente íntima” com os traços de caráter patológicos, como que os encobrindo e protegendo, em um verdadeiro pacto inconsciente. Assim, o paciente “utiliza de forma inconsciente estes traços de caráter para a resistência” coloca-se, pois, aqui a necessidade de uma análise do caráter. Aqui, assim como no caso da formação do hábito, Ferenczi lança mão do referente da compulsão à repetição para compreender as formações caracterológicas, e para pensar as resistências mais tenazes que se apresentam na abordagem analítica de tais formações, sempre com o risco iminente de rupturas na transferência; mas sustenta que tal análise do caráter pode levar a um “esgotamento” de tal compulsividade, abrindo caminho para uma possível mudança de caráter.

Ferenczi mostra-se cada vez mais convencido de que a análise do caráter deve ser levada adiante o mais longe possível, e em especial na análise dos analistas. Pois, mesmo em casos em que distorções caracterológicas não sejam tão evidentes, é preciso considerar que atitudes excessivas ou hipersensíveis são formas subliminares de uma espécie de “caracteriopatia da vida cotidiana”, no fundo derivada do narcisismo – a mesma fonte que leva a reações e resistências quando tais aspectos da personalidade são tocados. É preciso falar disto com os pacientes de maneira direta e clara, colocando em análise o reativismo e a hipersensibilidade, certos hábitos no fundo um tanto “ridículos”, e até aspectos da apresentação e da aparência do paciente. Ora, para sustentar esta sua posição implacável, corajosa e, no fundo, otimista quase que não deixando pedra sobre pedra nas organizações defensivas , Ferenczi lança mão de sua estratégia ativa: “no âmbito da minha chamada técnica ativa, aconteceu-me de ordenar expressamente ao meu paciente que dominasse os seus processos psíquicos e físicos habituais: isso permitiu-me com frequência pôr a descoberto camadas mais primitivas, remontando aos primeiros tempos da infância” (1992b [1930b], p. 219).

Assim como em seu ensaio sobre o hábito, Ferenczi também propôs novos desenvolvimentos para a teoria do caráter à luz dos novos modelos metapsicológicos de Freud, com a virada de 1920. Ele acrescentou, assim, novos referenciais para se pensar o assunto, para além daquele que considera o caráter como precipitados derivados dos erotismos pré-genitais e genitais, conforme sugeriu Freud inicialmente e foi desenvolvido por Abraham à exaustão. Ao lado de uma aproximação ao conceito de compulsão à repetição de “Além do princípio do prazer”, Ferenczi tomou a formação do Supereu como modelo para a estrutura caracterológica. Mas, apesar de a introjeção das figuras parentais constituir o nódulo para as formações de caráter – e de as patologias do Supereu se tornarem referência para compreender as tendências antissociais mais extremadas , é preciso considerar uma definição de caráter mais ampla. Tal modelo é importante para Ferenczi por ele permitir combatermos posições fatalistas e biologizantes, que tenderiam a considerar o caráter como inato e derivado diretamente de fontes orgânicas: “a maior parte do que chamamos de caráter não é inato, mas constrói-se em reação ao mundo exterior e isso, muito precocemente, no decorrer do período de latência ou ainda mais cedo e, por esse fato, é suscetível de ser melhorado por meio da técnica psicanalítica” (FERENCZI, 1992b [1930b], p. 220). Esta é uma proposição bastante contundente, que, fundamentando-se na concepção da formação do Supereu no campo relacional, produz uma verdadeira abertura para as perspectivas de uma análise do caráter. Mas, ainda que tudo isto possa parecer um projeto terapêutico bastante otimista, Ferenczi reconhece as dificuldades e limitações desta empreitada, já que modificar o caráter não é algo nada simples; os resultados que podemos esperar, nos diz, é que o paciente ganhará um melhor conhecimento de si mesmo, e com isto poderá dominar suas reações caracteriais, que eram deflagradas automaticamente até então, e melhor adaptar-se à realidade.[41]

Não me parece, aqui, despropositado tomarmos a problemática do caráter – correlacionada, por sua vez, com a questão do hábito como um modelo e matriz clínica para o estudo das patologias do agir e, no campo mais específico que aqui recortamos, para a terapêutica das adicções.[42] Pois o que está em causa nestas últimas é uma redução significativa e crônica um curto-circuito – dos processos de representação. A impulsividade típica destas formações psicopatológicas está correlacionada à hipertrofia da esfera do agir em detrimento do trabalho de simbolização do psíquico; trata-se de neo-pulsões que, enquanto tal – e seguindo as proposições de Freud retomadas por Ferenczi – carecem de meios de expressão por intermédio de cadeias associativas de representações pré-conscientes, irrompem de modo abrupto na forma de ações cruas, que carecem de sentido simbólico e expressivo. Tais eclosões do agir são o avesso do gesto. Elas parecem responder muito pouco às intervenções clássicas do psicanalista centradas na interpretação, justamente por passarem ao largo dos processos de representação; neste sentido, podemos pensar que elas “pedem” algum outro tipo de intervenção. O espírito da técnica ativa se adequa aqui muito bem, pois se trata de buscar estancar a sangria desatada das neo-pulsões através de estratégias de contenção e, com isto, redirecionar e mobilizar as energias em direção da elaboração psíquica. Trata-se de uma estratégia de risco, sempre na corda bamba entre acionar o gatilho das atuações mais brutas ou abrir o espaço possível para o pensar em lugar do agir de descarga.

Assim, creio que a técnica ativa tem uma vocação particular para ser utilizada nos quadros clínicos compreendidos no âmbito de uma “clínica do agir” (GURFINKEL, 2008b), nos quais a qual a função primordial de mediação realizada pelos processos de simbolização está significativamente comprometida, e as moções pulsionais tendem a derivar, de modo mais regular e sistemático, para uma ação de descarga. Ali onde a mediação do trabalho de representação está precarizada e o potencial de mudança psíquica está entrincheirado na estruturação do Eu narcisista, o trabalho de interpretação e de perlaboração perde grande parte de sua eficácia; a fim de dar condição para um crescimento psíquico, faz-se necessário estancar tal escape, ainda que ao preço de um aumento de tensão e do desprazer, e correndo-se o risco de provocar novos escapes.

Creio que podemos reconhecer o espírito geral destas proposições em diversas considerações técnicas de autores que, nas décadas seguintes, se dedicaram ao trabalho com pacientes com características semelhantes.

O extenso e profundo trabalho de Otto Kernberg com a personalidade borderline é um bom exemplo. A atividade do terapeuta é por vezes requerida no tratamento destes pacientes, “surpreendendo o analista clássico”, nos diz. Dada a impulsividade, a vulnerabilidade emocional e o senso fragmentado de self destes pacientes, o risco de sobrevirem atitudes destrutivas a si mesmo, a outros e ao setting é considerável; devido a este risco, “o terapeuta pode ser forçado a desviar-se da neutralidade técnica e a introduzir parâmetros estruturantes para controlar o acting out” (KERNBERG e outros, 1989, p. 74).[43] Cabe ao analista, também, clarificar e confrontar, buscando com isto melhorar o senso de realidade e abrir caminho para interpretações, às quais não se deve prescindir. “Nem a atividade nem a inatividade é desejável por si só” – nos diz , mas “o terapeuta está livre para ser ativo quando necessário” (KERNBERG e outros, 1989, p. 123). Ainda assim, adverte Kernberg, sua proposta de modificação da técnica “não inclui o uso de técnicas suportivas abertas, tais como oferecer reasseguramento direto, dar sugestões e conselhos, educar o paciente em assuntos práticos, enfatizar capacidades e talentos e realizar intervenções no ambiente” (KERNBERG, 2006, p. 118). Pois, como deixa bem claro, o trabalho terapêutico tem como objetivo uma mudança estrutural e está focado em acessar os níveis mais profundos da psique do paciente.

O trabalho de Claude Olievenstein, agora especificamente com os toxicômanos, também guarda alguma inspiração semelhante. Diante da relação tão estreita do toxicômano com a droga especialmente nos casos mais graves é preciso uma estratégia terapêutica especial, que leve em conta esta situação particular. Trata-se de dispositivos terapêuticos “transicionais”, conforme interessante denominação proposta por Olievenstein: inicialmente, há um “desmame”, que implica na organização de “um espaço e um vivido transicional que seja o primeiro compromisso entre a dependência total e a independência mais ou menos conseguida” (OLIEVENSTEIN, 1990, p. 110); o segundo passo é um isolamento do meio onde predomina a cultura toxicomaníaca, oferecendo-se uma possibilidade de identificações com um grupo de toxicômanos abstinentes e com novas figuras terapêuticas; segue-se, então, a psicoterapia específica, que não se dá nos mesmos moldes de uma análise clássica. Nela é preciso, a cada momento, obter uma “promessa” do toxicômano, um compromisso que se constrói pelo aprendizado da “democracia psíquica” e pela entrada no “domínio da opinião”. O compromisso estabelecido, mesmo que instável, parece justo, já que se trata de uma lei construída em conjunto. É preciso partilhar a fantasia com o toxicômano, procurando uma imunização contra a intensidade do afeto doloroso: trata-se de uma espécie de sedução; a escuta ao contrário da técnica clássica não pode ser silenciosa, já que não há ainda possibilidade de espera. Há algo de mágico nesta relação, um imaginário relacional que busca substituir o sonho acordado ou sono da droga: “o terapeuta deve aceitar que a cinética de uma relação meio-cúmplice, meio-perversa permite ao sujeito construir, de alguma maneira, um novo edifício psíquico mais ou menos sólido” (OLIEVENSTEIN, 1990, p. 121).

Mas, se existe aqui, aparentemente, uma estratégia de “manipulação”, ela só é concebível se aliada a uma ética: o objetivo não é trocar uma dependência por outra; “insistimos no fato de que não se trata aqui nem de compaixão, nem de reconforto, mas a técnica terapêutica tem sempre como objetivo a independência psíquica do sujeito” (OLIEVENSTEIN, 1990, p. 120). Assim, em um determinado momento do percurso do tratamento, a falta e o sofrimento devem perder a exclusividade e a onipotência; por uma “estratégia de guerra”, que, no seu ritmo, deixa pouco lugar para a angústia e para a memória, introduzem-se elementos da ética social e da ética de vida, inserindo paulatinamente o indivíduo no universo da cultura. Tomando o cuidado de evitar uma intrusão sádica dos próprios valores, o terapeuta oferece-se como um ponto de referência uma segurança; esta ilusão de segurança, se permanece além da medida, torna-se não operatória e subverte a “perversão” necessária própria da dependência com o terapeuta. A ética no trabalho terapêutico com toxicômanos se baseia, portanto, no duplo reconhecimento da realidade explosiva do prazer e do momento em que se deve indicar o “fim da festa”.[44]

A semelhança entre a estratégia terapêutica e as preocupações éticas de Olievenstein e as que norteiam a técnica ativa é notável. As dificuldades no trabalho clínico com certos pacientes – neuroses de caráter, patologias do agir, adicções, etc. – levaram os analistas a considerarem a pertinência e a necessidade de formas de intervenção que buscassem estancar minimamente os escapes oriundos do curto-circuito da descarga pulsional automática, própria da compulsão à repetição; sem estas estratégias, o horizonte terapêutico parecia condenado ao fracasso. Por outro lado, e desde as advertências levantadas por Freud, sabemos dos riscos inerentes a tal atividade: um direcionamento “moral” na vida dos pacientes, uma dependência crônica na transferência e o autoengano do analista, que, no narcisismo de seu furor curandis, se crê vencedor de uma batalha quando, no fundo, está aprisionado em um conluio com a perpetuação da imaturidade do sujeito.

Outro aspecto da abordagem de Olievenstein que merece destaque é a aproximação entre adicções e perversão. De um certo ponto de vista, podemos reconhecer aqui uma interface significativa, considerando-se uma semelhança na fenomenologia dos quadros clínicos e no funcionamento psíquico, ainda que se faça necessário reconhecer muitos casos de adicções em sujeitos neuróticos, psicóticos e fronteiriços, assim como nas neuroses narcísicas e nos pacientes ditos psicossomáticos. Quanto a isto, tenho trabalhado com a hipótese do paradoxo da unidade na diversidade, uma vez que podemos considerar aspectos gerais e comuns a todas as adicções, e ao mesmo tempo diferenças significativas de “tipos” clínicos – o que tem sido, muitas vezes, trabalhado sob a rubrica de uma comorbidade.[45] Mas é, sem dúvida, inegável o parentesco entre adicções e perversão; tal aproximação ganha maior relevância quando a compreendemos no contexto da história da psicopatologia psicanalítica que ora retraçamos, na qual podemos reconhecer matrizes clínicas diversas que estão na raiz das formas psicopatológicas contemporâneas. Pois, a partir do surgimento da análise do caráter como uma demanda fundamental do trabalho do analista, foi ganhando visibilidade e sentido uma certa “clínica do agir”, na qual estão compreendidas, como bem assinalou Fenichel (1981 [1945]) desde a década de 1940, perversão, neuroses impulsivas e adicções. Do ponto de vista da técnica terapêutica, creio que o estudo em paralelo de uma “perversão de transferência” e uma “adicção de transferência” é particularmente profícuo.[46]

 

Cura de abstinência?

 

Chegamos, por fim, à questão da abstinência, dimensão central da técnica psicanalítica que toca, de modo bastante instigante, em aspectos fundamentais do tratamento das adicções.

Como temos visto, a aproximação entre técnica ativa e adicções procede em vários sentidos; mas há ainda um outro elo fundamental a ser considerado, e que nos remete ao nódulo mesmo da problemática adictiva: a questão da abstinência. A técnica ativa procura instaurar uma abstinência para pôr em movimento uma análise estagnada; mas e quando a impossibilidade de abstinência é o cerne do problema e a alma do sintoma, como nas adicções? O tratamento das adicções instaura, necessariamente, uma crise do dispositivo psicanalítico da cura pela fala, o que nos obriga a apelar a outras forças de influência “direta” do terapeuta. Afinal: a abordagem psicanalítica pode fazer frente ao apelo da ligação direta do somático ao psíquico, ou deveríamos decretar mais uma inanalisibilidade? Recordemos que, sobre isto, Freud escreveu a Ferenczi que os viciados não são muito adequados para o tratamento psicanalítico, pois qualquer dificuldade na análise os leva a recorrer novamente à droga.[47]

A instauração de um princípio de abstinência no tratamento analítico visa, em última instância, propiciar o desenvolvimento psíquico. A suposição implícita aqui é derivada do modelo freudiano dos dois princípios do funcionamento mental, no qual o desenvolvimento é compreendido como a passagem paulatina do princípio do prazer para o princípio da realidade. Assim, a tolerância ao desprazer e à frustração, a possibilidade de sustentar a tensão inerente a esta situação e de esperar até a ocasião propícia e mais favorável a uma experiência de satisfação, é o que possibilita tal desenvolvimento. Ora, esta articulação entre o modelo dos dois princípios do funcionamento mental e a técnica psicanalítica não cessará de absorver os esforços elaborativos de Ferenczi, desde seu artigo de 1909, sobre introjeção, passando pelo estudo de 1913, sobre o sentido de realidade, e a série de estudos sobre atividade na técnica, até o denso e engenhoso “O problema da afirmação do desprazer”, de 1926.

Ora, com a metapsicologia do hábito, Ferenczi pôde articular tais considerações, de ordem predominantemente econômica e pulsional, com o modelo tópico e com a máxima “onde havia Isso, o Eu advirá”; trata-se, em última instância, de recolocar os desafios do desenvolvimento psíquico sob uma outra perspectiva. Pode-se compreender como a instauração de neo-pulsões – e aqui podemos nos referir aos hábitos, às estruturas caracterológicas e às adicções – coloca novos e maiores desafios para a construção do sentido de realidade, uma vez que aqui há uma lacuna estrutural do trabalho de simbolização realizado no pré-consciente, ou por intermédio do Eu.

No manejo clínico de pacientes adictos, o analista se vê constantemente diante do desafio de se equilibrar entre os princípios de abstinência e de tolerância. Se, por um lado, faz-se necessário, por meios mais ativos do que de hábito, buscar estancar a sangria desatada dos escapes das neo-pulsões que limitam ou até inviabilizam qualquer trabalho de elaboração, é igualmente necessário considerar as limitações ou até impossibilidades do paciente em tolerar e sustentar a abstinência – e isto em diversos âmbitos. Os difíceis, e por vezes dramáticos, esforços terapêuticos dos profissionais da área da saúde mental dedicados a este campo têm levado à conclusão de que impor a abstinência a qualquer preço pode conduzir a situações absurdas e improdutivas, assim como a impasses éticos muito agudos. A necessidade de desenvolver um espírito de tolerância ao agir de descarga, envolvendo uma revisão contundente da atitude do analista, foi se impondo; assim, flexibilização, disponibilidade, exercício de limites, “buscas ativas” e tantos outros recursos têm sido adotados, e têm levado o analista, por vezes, a uma espécie de “exaustão na contratransferência”.

É digno de nota o quanto tais considerações, oriundas da teoria da técnica em psicanálise, encontram um parentesco e uma afinidade com o pensamento da chamada “redução de danos”, política na abordagem da questão de álcool e drogas, de caráter interdisciplinar e bastante mais amplo. O reconhecimento dos limites de possiblidade de uma política de abstinência estrita, da sua ineficácia e mesmo dos efeitos danosos e perversos a que conduz em seus extremos mais violentos e cegos, tem norteado um real amadurecimento na abordagem da problemática clínica e social e da toxicomania nas últimas décadas. Faz-se necessário ressaltar que a política de redução de danos não significa uma omissão aos riscos e sofrimentos inerentes à questão, e muito menos uma negação da importância da abstinência no tratamento das adicções; a abstinência enquanto um horizonte e um instrumento terapêutico continua na ordem do dia para qualquer profissional envolvido neste campo. Mas faz-se necessário, ao mesmo tempo, compreender os limites e impasses da adoção de uma imposição de abstinência como medida em si mesma, sem considerar a complexidade e os enormes desafios implicados nessas estruturas clínicas. A busca de um equilíbrio entre abstinência e tolerância parece ser a orientação que melhor se coaduna com os desafios envolvidos, o que coloca o trabalho terapêutico em um fio da navalha sempre instável e difícil.

O que pensar, pois, de uma “cura de abstinência”? Qual é seu lugar e alcance, e qual é sua relação com a ética e a técnica da psicanálise?

Estamos aqui em um campo bem mais complexo do que pareceria à primeira vista. Vimos como, desde o período da hipnose, Freud já tinha em mente tal problemática; podemos supor que a questão já estivesse presente nas preocupações da psiquiatria da época, já que casos de adicção se apresentavam na prática clínica. A posição de Freud, então, era de que empreendimentos terapêuticos meramente comportamentais que ignorassem o fundamento sexual do impulso adictivo estariam seriamente limitados em seu alcance terapêutico. O estudo dos hábitos sexuais dos anos seguintes, oriundo do trabalho com as neuroses atuais, levou-o a sugerir uma abordagem médico-educativa que buscasse estabelecer ou recuperar um regime “saudável” na vida sexual, prática que não corresponderia ao método da psicoterapia psicanalítica. A cura de abstinência estaria, pois, fora de suas indicações e propósitos. Anos depois, com o estabelecimento da psicanálise enquanto ramo do saber, o tema da abstinência ressurgiu, curiosamente, no horizonte, mas em outro contexto. Tratava-se de um princípio técnico que visava proporcionar e manter as condições adequadas para o tratamento psicanalítico, procurando refrear vias de escape que poderiam esvaziar a energia e a motivação necessária para o prosseguimento do trabalho de vencer as resistências. Podemos pensar que retorna, na história da psicanálise, a pertinência de se considerar o valor e a importância de uma cura de abstinência? Ou melhor: de uma cura em abstinência – através da ou sob abstinência?

Esta curiosa coincidência semântica no uso do termo abstinência em dois contextos históricos e clínicos diversos é, para nós, do maior interesse, já que toca no núcleo mesmo da problemática adictiva.

É fundamental atentarmos ao fato de que uma abordagem médico-educativa das neuroses atuais pode ser um tanto perigosa, uma vez que corre o risco de adotar de modo acrítico um ideal higienista e normativo sobre as práticas sexuais, como bem nos alertou Foucault em sua História da sexualidade (1980). Estes mesmos ideais podem, como bem sabemos, estender-se para os mais diversos campos, inclusive para aquele ligado às práticas supostamente “transgressivas” de uso de substâncias psicoativas. A política proibicionista que adota um princípio estrito de abstinência parece abraçar, justamente, tais ideais, com todos os problemas éticos e humanos que lhes são inerentes. Um princípio cego de abstinência, isolado de seu contexto e de uma leitura metapsicológica bem fundamentada, tenderá sempre a cair nesse mesmo descaminho.

Por outro lado, um princípio de abstinência considerado em outro contexto ganha um sentido completamente diferente. Pois interferir no curto-circuito da compulsão à repetição a fim de abrir caminho para um trabalho de elaboração e de apropriação das neo-pulsões que escravizam o sujeito comporta, justamente, uma posição profundamente ética, em contraste com uma posição meramente “passiva”, que, por isso mesmo, se mostra seriamente omissa. Deste outro ponto de vista, compreendemos que o que se visa na análise dos hábitos é a busca de um equilíbrio psicossomático; há, sim, um conceito de saúde aqui implícito, mas também uma observação clínica da maior relevância: ali onde o sujeito fica impotente diante de sua própria compulsividade, faz-se necessário buscar formas de manejo que auxiliem no restabelecimento das condições mínimas propiciadoras da retomada do processo de amadurecimento psíquico estagnado. Aplicando-se o espírito de “redução de danos” para vastos setores da clínica, considerar como uma orientação geral da técnica a busca de um equilíbrio entre abstinência e tolerância. Não se trata aqui de adotar o viés moral de uma abordagem proibicionista, e sim uma perspectiva eminentemente ética, política e técnica: não deixar de reconhecer as limitações impostas pela compulsão à repetição em um trabalho interpretativo estrito, e não se omitir diante de uma corresponsabilização necessária no sentido de fazer frente à sangria psíquica desatada, que muitas vezes toma conta do quadro. Creio que a técnica ativa, conforme foi praticada, desenvolvida e pensada por Ferenczi, segue esses mesmos princípios.

Penso que a busca do equilíbrio psicossomático, nos termos aqui desenhados, pode ser aproximada de uma busca por sustentabilidade. Conforme sugeri em outro lugar (GURFINKEL, 2019a), a construção da sustentabilidade pode ser entendida como o avesso do extravio do processo de desenvolvimento em direção a uma interdependência horizontalizada, que caracteriza a vida adulta, extravio que é próprio das adicções. O trabalho de sustentabilidade é o investimento cotidiano em uma auto-higiene que é, a um só tempo, psíquica, psicossomática e relacional, e compreende uma infinidade de aspectos e dimensões do viver do sujeito. Desde os trabalhos de Ferenczi, com seu engajamento clínico e ético tão singular, os analistas têm sido convidados a participar “ativamente” deste processo de construção de seus pacientes.

A perspectiva histórica que aqui adotamos nos auxilia a compreender como a chamada técnica no trabalho terapêutico evoluiu, de uma posição inicial de Freud que opunha tratamento psicanalítico indicado para as psiconeuroses e abordagem médico-educativa indicada para as neuroses atuais e estruturas afins , para uma abordagem que poderia ser qualificada de “mista”. Lembremos que, desde o início, como que em um contraponto, o mesmo Freud reconheceu a quantidade enorme de casos mistos de combinação entre psiconeurose e neuroses atuais, assim como, em uma visão um tanto mais complexa, assinalou um entremeado entre estas duas formas clínicas, já que o sintoma da neurose atual constitui com frequência o nódulo e a fase preliminar do sintoma psiconeurótico. Mas uma parte considerável do campo psicanalítico pós-freudiano avançou – de modo consciente ou não – para um trabalho terapêutico que incorpora, de maneira bastante orgânica, o fator atual; o surgimento de uma “técnica ativa” emergiu como uma resposta a esta demanda dos desenvolvimentos da técnica analítica, buscando adaptar-se e melhor responder aos impasses e dificuldades, tão desafiadoras quanto paralisantes, que se apresentavam na prática diária dos clínicos. Ali onde a compulsão à repetição se apoderava dos processos psíquicos, resultando – como bem assinalou Ferenczi – na rigidez do hábito e das formações caracterológicas, faz-se necessária uma revisão da atitude “supostamente passiva” e exclusivamente interpretativa do analista. O espírito que regeu tal revisão da técnica pode ser reconhecido nas considerações e propostas desenvolvidas por diversos autores, oriundos, aliás, de tradições e linhagens tão diversas como Marty e o grupo do IPSO, Kernberg e Olievenstein, mas também Winnicott e Balint, e tantos outros.

Assim, ao final deste percurso, creio que temos material para esboçar algumas orientações gerais, do ponto de vista da técnica, para o tratamento das adicções.  Vale ressaltar que tais orientações se aplicam a um leque significativo de formas clínicas, que podemos reunir sob a rubrica de uma “clínica do agir”. Aqui se incluem as neuroses de caráter e uma parcela dos casos fronteiriços formas que se distanciam de clássica “clínica do recalcamento” , e tangenciam também as estruturas somatizantes, tais como as chamadas “neuroses de comportamento”, e também a normopatia.

Apoiados na tradição de pesquisa de Ferenczi com a técnica ativa e inspirados nas problemáticas que emergem da clínica das neuroses atuais, podemos considerar que a abordagem terapêutica deve se assentar em uma combinação entre trabalho clássico e técnica ativa. Ferenczi denominou a primeira uma técnica “puramente passiva”, que aguarda e acompanha a emergência e o fluxo das associações de “análise por baixo”, pois ela parte de uma dada superfície psíquica e busca o investimento pré-consciente do material das representações inconscientes. Em contraste, uma “análise pelo alto”, sob o signo da atividade, visa “criar um obstáculo às reações de descarga (abstinência, privação, interdição de atividades agradáveis, imposição de atividades desagradáveis), aumenta as tensões ligadas às necessidades internas e traz para a consciência o desprazer até então inconsciente” (FERENCZI, 1993 [1925], p. 351) – um “complemento necessário” da técnica clássica.

Desta forma, chegamos a uma visão do trabalho analítico que, segundo penso, corresponde em grande parte ao que observamos na prática cotidiana dos clínicos de hoje. Ao sintetizar este trabalho duplo através da bela metáfora do processo de perfuração de um túnel, ele nos lembra das vantagens e conveniência que pode haver em fazê-lo a partir de seus dois lados, em movimentos que podem ser alternados ou simultâneos, criando uma complementaridade sinergética.

Análise por baixo e análise pelo alto: pois bem, podemos considerar esta duplicidade de estratégias como uma alternância entre um foco prioritário ora no inatual, ora no atual. É não é esta a dança que tanto testemunhamos no trabalho tão “atual” quanto inatual dos psicanalistas de hoje?

 



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ano - Nº 4 - 2022
publicação: 26/11/2022
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Autor(es)
• Decio Gurfinkel
Departamento de Psicanálise e de Psicossomática Psicanalítica do Instituto Sedes Sapientiae

Psicanalista. Doutor pelo IPUSP, realizou seu pós-doutorado na PUC-SP. Autor de diversos escritos e livros, tais como Relações de objeto (Blucher, 2017); Adicções: paixão e vício (Casa do Psicólogo, 2011); Sonhar, dormir e psicanalisar: viagens ao informe (Escuta, 2008); Do sonho ao trauma: psicossoma e adicções (Casa do Psicólogo, 2001); e A pulsão e seu objeto-droga: estudo psicanalítico sobre a toxicomania (Vozes, 1996).

Notas

[1] Ao comentar minha sugestão de acrescentar duas matrizes clínicas às quatro por ele mesmo propostas, Mezan (2017) sugeriu uma retificação: o fetichismo e as neuroses atuais deveriam ser consideradas matrizes clínicas "genuinamente pós-freudianas", já que elas não teriam representado, para Freud, "matrizes clínicas no sentido estrito: não chegaram a constituir prismas através dos quais tenha considerado o conjunto dos processos psíquicos".

[2] Apresento esta proposição em "O conceito psicanalítico de adicção" (GURFINKEL, 2011).

[3] Ver, por exemplo, o trabalho de Bergeret (1981) sobre os aspectos econômicos das adicções.

[4] A seção que segue baseia-se em material retirado do meu livro Adicções: paixão e vício (GURFINKEL, 2011), reelaborado, atualizado e acrescido de novos desenvolvimentos para a presente publicação.

[5] Fundador e presidente da Sociedade Italiana para a Intervenção em Patologias Compulsivas, dedica-se, especificamente, ao estudo e ao tratamento de diversas formas de adicção (tais como o alcoolismo e o jogo patológico), assim como à divulgação e ao debate da temática no âmbito social.

[6] Sobre esta distinção, ver "A clínica do agir" (GURFINKEL, 2008b).

[7] Para uma excelente apresentação desta discussão, consultar o livro Histeria, de Silvia Alonso e Mario Fuks (2004).

[8] "Sujeito quase" (GURFINKEL, 2001).

[9] Para mais detalhes, ver Gurfinkel, "Drogas, adicções e toxicomania'' (1996).

[10] Pedro Santi estudou detidamente o consumo à luz de conceitos derivados da clínica das adicções, e distinguiu duas modalidades de relação com o consumo: uma, legítima para a formação de uma subjetividade singular, estaria sob a égide do desejo, enquanto que a outra seguiria uma lógica adictiva, na qual se verifica um "movimento compulsivo que visa preencher um vazio subjetivo fundamental" (2011, p. 139). Para Santi, esta modalidade é predominante na contemporaneidade, que estimula modos adictivos de comportamento e de consumo. Ao lado dos referenciais psicanalíticos, o autor se apoia também em trabalhos oriundos das Ciências Sociais e da Filosofia, e discute ainda as implicações éticas para o campo de propaganda e marketing.

[11] Assim, por exemplo, a revista argentina Psicoanálisis y el hospital dedicou um número especial (n.24, novembro de 2003) ao tema "Patologias da época?", nesta forma interrogativa, a fim de pôr em questão o que seria um "mal da época", ou a "nervosidade pós-moderna"; os principais quadros ali enfocados são a toxicomania e o alcoolismo, os transtornos alimentares e as patologias do agir. De modo semelhante, no Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae existe um grupo de trabalho dedicado, há vários anos, ao estudo desta questão e, no Curso sobre Psicopatologia Contemporânea que tal equipe desenvolve, abordam-se, especificamente, as depressões, os transtornos alimentares, os transtornos do sono e a toxicomania; dentre os diversos trabalhos publicados por este grupo, ver artigo de Mario Fuks (2000), que oferece um bom panorama sobre o assunto.

[12] Apresento de maneira mais extensa a história da psicanálise das adicções em Adicções: paixão e vício (GURFINKEL, 2011).

[13] Refiro-me aqui ao artigo de Freud "Psicoterapia: tratamento pelo espírito", de 1890 (1981) - período de suas pesquisas com a hipnose. Nele Freud menciona também a questão das adicções, levantando, ainda, de maneira pioneira e visionária, a problemática ética e técnica tão importante da adicção de transferência. Sobre isto, ver capítulo "Vício e hipnose", do meu livro sobre adicções (GURFINKEL, 2011).

[14] Cf. "A clínica do agir" (GURFINKEL, 2008b).

[15] Para uma melhor apreciação do papel do modelo da neurose atual para a psicossomática psicanalítica, consultar Laplanche (1998), Ferraz (1997) e M'Uzan (2003 [2001]).

[16] Em trabalho anterior, abordei o paralelo clínico entre as adicções e os fenômenos psicossomáticos sob este prisma, propondo a expressão "colapso do sonhar" para melhor precisar a natureza da falha de elaboração psíquica aqui referida (GURFINKEL, 2001).

[17] Sylvie Le Poulichet assinalou que a inclusão das intoxicações no quadro das neuroses atuais "pode sem dúvida parecer disparatada, mas os avanços freudianos concernentes às neuroses atuais são de fato ricos em paradoxos e devem ser confrontados com a clínica" (1996 [1993], p. 543).  E ainda: "me parece extremamente notável que Freud tenha situado os processos tóxicos fora da dimensão do sentido, mesmo que não tenha extraído disto tudo o que poderia" (2005 [1987], p. 98).

[18] Uma concepção monista do psicossoma pode ser claramente reconhecida, também, tanto em Ferenczi quanto em Winnicott, assim como em outros autores.

[19] Cf. Marty, 1998.

[20] Esta afirmação é abusiva em sua generalização, mas nos serve aqui, por ora, em função da discussão em questão.

[21] Deve-se notar que o modelo da neurose atual, ao colocar o acento no quimismo do sexual e na toxicidade da libido, adequa-se mais à toxicomania - portanto, a uma das formas de adicção. À medida que avançamos, na história das ideias, para o modelo da relação de objeto - seja em Freud ou depois dele - notamos que tal modelo nos permite compreender melhor as adicções de modo mais geral, mesmo que nele se conserve o fundo sexual e pulsional do investimento objetal.

[22] Sobre o período de Freud com a cocaína e sua relação com a psicanálise das adicções, consultar "O jovem Freud, a cocaína e as adicções" (GURFINKEL, 2011).

[23] Sobre as controvérsias Freud-Ferenczi, em Relações de objeto (GURFINKEL, 2017), os capítulos dedicados a Ferenczi e a Balint.

[24] É bom frisar, no entanto, conforme nos informa Jones (1989 [1955], p. 243), que Freud já conhecia o primeiro artigo de Ferenczi sobre o assunto - publicado em 1919 - quando proferiu sua conferência em Budapeste, e que concordava com suas sugestões técnicas e o apreciava muito.

[25] Tal articulação complexa já fora ressaltada com muita agudeza pelo próprio Freud (1981 [1894]) na seção final de seu artigo precursor sobre a neurose de angústia, dedicada às chamadas "neuroses mistas".

[26] Hoje poderíamos considerá-los como modalidades de "relacionamentos adictivos" (GURFINKEL, 2011).

[27] Esta importante observação pode ser aproximada a um aspecto que será ulteriormente desenvolvido por Winnicott quanto à relação entre o Eu e o risco de uma "exploração" libidinal: "um impulso do Isso pode ser tanto disruptivo para um Eu fraco quanto fortalecedor para um Eu forte" (1990 [1958], p. 33).

[28] Em outro lugar, procurei também discutir "os vícios da psicanálise" enquanto uma "adicção de transferência" (GURFINKEL, 2011), sob um ângulo diferente, mas que pode ser colocado em diálogo com o que aqui levantamos.

[29] Em "A gestualidade do sonhar: movimentos" (GURFINKEL, 2008a), propus que considerássemos o sonhar como o paradigma do "movimento do psíquico"; animado pelo impulso vital do Isso - movimento do si-mesmo que busca comunicação -, é o sonhar que põe em marcha o trabalho de transformação, desenhando as linhas de força da esperança enquanto desejo projetado na tela do futuro. Por decorrência, a função do sonhar constitui a matéria mesma do movimento e das potenciais mudanças no processo analítico. Se, para Ferenczi, a psicanálise é um verdadeiro combate contra os hábitos, podemos considerar o sonhar - em sentido lato - o fundamento e um aliado terapêutico essencial nesta luta.

[30] Como enunciado por Bleger, em qualquer situação de atendimento o analista "deve estar dissociado: em parte atuando com uma identificação projetiva com o entrevistado e em parte permanecendo fora desta identificação" (1980 [1964b], p. 27). Esta simples formulação condensa uma postura básica - técnica e ética - de todo psicoterapeuta em seu trabalho.

[31]  Sobre a o papel e a importância desta última fase de Ferenczi, ver "Ferenczi: a criança e o cuidado" (GURFINKEL, 2017).

[32] Curioso notar como esta tipologia dialoga, de forma indireta e distante, com aquela proposta por Jung - extrovertidos e introvertidos -, que Ferenczi (1992a [1914]) conheceu, reconheceu o valor (talvez até com admiração) e criticou, assim como o havia feito em relação ao trabalho de Jung que foi o disparador de sua exclusão do movimento psicanalítico (FERENCZI, 1992a [1913]); neste período, Ferenczi parece ter assumido um papel proeminente - científico e político - no encaminhamento do expurgo de Jung. Ao lado da ampliação não aceita do conceito de libido proposta por Jung, o que estava em questão então era a compreensão da psicose a partir da teoria das neuroses edificada por Freud; ora, é justamente a partir do contraste psicopatológico entre esquizofrenia e histeria que Jung (2020 [1913]) construiu sua tipologia. O "tipo inibido" descrito por Ferenczi parece caracterizar-se por uma introversão da libido - aquela descrita por Freud em Introdução ao narcisismo como própria das psiconeuroses, em uma acepção diversa da adotada por Jung em relação ao termo introversão, cujo protótipo era, para ele, a esquizoidia; esta última foi teorizada por Freud, como bem sabemos, através do conceito de narcisismo. Nota-se, pois, como, em contraste com Jung, o eixo que norteia esta tipologia pouco conhecida de Ferenczi é o binômio psíquico/motor, pouco tematizado por Jung em sua conhecida tipologia, que se desdobrou através do estudo de quatro funções psicológicas básicas tomadas como pares complementares (pensamento, sentimento, sensação e intuição). Penso que estes paralelos merecem um estudo e um debate cuidadoso.

[33] Em "Andarilhos e sonhadores: brincadeira de esconde-esconde" (GURFINKEL, 2008a), abordei esta dupla face do caminhar: enquanto "comportamento autocalmante" ou enquanto sistema de continência e de sustentação para a atividade criativa do self.

[34] Desenvolvi este argumento em "A realidade psíquica, o sonho, a sessão" (GURFINKEL, 2001).

[35] Cf. "A técnica em questão: frustração ou relaxamento?"(GURFINKEL, 2017).

[36] Em trabalhos anteriores, tenho adotado a compulsão à repetição como o protótipo de uma série de fenômenos e formações mais ou menos sintomáticas regidos por um princípio de repetição, nos quais o grau de compulsividade é variável e gradativo, tais como: os rituais (mais ou menos obsessivos), os traços de caráter, os hábitos e, em um plano um pouco mais distante das matrizes psicopatológicas, simplesmente "os modos de ser" de cada um (Cf. "O conceito psicanalítico de adicção". GURFINKEL, 2011). Propus então considerarmos a adicção como uma das formas mais exemplares da compulsão à repetição - bem mais característica, aliás, do que o jogo infantil do carretel (Fort-Da) proposto por Freud, no qual a criança parece estar muito mais, sob o regime do princípio do prazer, "brincando" com seu objeto transicional.

[37] O termo, cunhado por Denise Braunschweig e Michel Fain (2001 [1975]), analistas ligados à chamada Escola Psicossomática de Paris, em clássico e cuidadoso estudo sobre o funcionamento mental, foi retomado, nos anos posteriores, em trabalhos que vieram a aprofundar o estudo das adicções de maneira mais específica. Após uma abordagem metapsicológica da toxicomania realizada pelo próprio Fain (1981), merece destaque o desenvolvimento e a difusão destas proposições realizadas por Joyce McDougall (1986 e 1995); em meu próprio trabalho de pesquisa, tenho recorrido a tais construções em diversas ocasiões, procurando retomá-las, discuti-las e desenvolvê-las em contextos variados (GURFINKEL, 1996, 2001 e 2011).

[38] Sobre este tema, Bollas (2000) discutiu com acuidade o problema dos "adictos em transferência" no âmbito da clínica da histeria. Em "A adicção de transferência e os vícios da psicanálise" (GURFINKEL, 2011), procurei retomar a discussão sob o ângulo de uma psicanálise das adicções. Adotando esta perspectiva, encontramo-nos diante de um paralelo bastante sugestivo entre o funcionamento adictivo e a questão da transferência: em ambos os casos, estamos lidando com a problemática da dependência-independência, seus extravios e paradoxos. Sobre este último ponto, ver também "A insustentável dependência do Ser" (GURFINKEL, 2019a).

[39] Vale considerar, também, uma aproximação possível entre neuroses atuais e neuroses de caráter. Levando-se em conta o percurso que aqui retraçamos da história da psicopatologia e da técnica psicanalíticas, podemos considerá-las como parentes próximas, sendo as primeiras ascendentes das últimas. Tal paralelo merece, naturalmente, um estudo mais acurado.

[40] Cf. "Abraham: da ordem pré-genital à psicanálise do caráter" (GURFINKEL, 2017).

[41] É digna de nota, ainda, a extensão do trabalho de Ferenczi para o estudo da relação entre caráter e gênero (FERENCZI, 1992b [1929 e 1930]). Ele traz proposições que, apesar de parecer datadas e poder ser questionadas nos dias de hoje, contêm formulações bastante sugestivas, e que merecem ser revisitadas. Examinadas com cuidado, vemos o quanto elas dialogam com as proposições tardias de Freud sobre a feminilidade e com certos aspectos das pesquisas de Abraham, especialmente aqueles ligados à formulação de um suposto "caráter genital" (ABRAHAM, 1970 [1925]) -, assim como com suas próprias elaborações sobre uma teoria do sexual, especialmente a partir de "Thalassa...".

[42] Observação semelhante foi realizada por Sabourin (1982), que, ao examinar as reelaborações técnicas do último período de Ferenczi, notou como a técnica ativa foi se assentando então como orientada para o trabalho terapêutico com as neuroses de caráter.

[43] Em comunicação pessoal, O. Kernberg enfatizou como esta problemática é particularmente mais aguda e desafiadora no caso dos pacientes toxicômanos (em seminário realizado em abril de 2011, no Instituto de Desordens da Personalidade do Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de Cornell, New York).

[44] Discuti em mais detalhe esta proposta terapêutica de Olievenstein em "Formas de toxicomania e manejo clínico" (GURFINKEL, 2019b).

[45] Trabalhei estas considerações sobre o estatuto psicopatológico das adicções em "O conceito psicanalítico de adicção" (GURFINKEL, 2011) e abordei, posteriormente, aspectos técnicos relativos às diferenças de manejo de acordo com as diferentes formas de toxicomania em artigo específico sobre o tema (GURFINKEL, 2019b).

[46] Ver "A adicção de transferência e os vícios da psicanálise" (GURFINKEL, 2011), assim como o trabalho de Flávio Ferraz (2005) sobre o assunto.

[47] Carta de 1º.6.1916 (apud JONES, 1989 [1955], p. 196).

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