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TEMA

Perlaboração: caminhos para sonhar



 

Em agosto de 2022, o Departamento de Psicossomática Psicanalítica do Instituto Sedes Sapientiae recebeu a presença de Christophe Dejours,[1] que veio nos trazer uma valiosa apresentação sobre o tema “A Clivagem, entre a Violência e a Sublimação”.

Nesse encontro, Dejours levantou a seguinte questão:

“Na situação de violência, como um sujeito pode passar da condição de vítima para a condição de carrasco?”

O autor também questionou o quanto uma situação de violência implica, para a vítima, uma certa necessidade de repetição que acaba por atravessar gerações, revivendo as mesmas situações de violência como vítima ou como abusador.

Com base na teoria da sedução generalizada de Laplanche, Dejours (2019) teceu um raciocínio sobre os impactos envolvidos no funcionamento psíquico e no desenvolvimento emocional em casos de pacientes que foram expostos a violência na infância. Temos o acidente da sedução, ou seja, um adulto, transbordado pela excitação que vem do seu próprio inconsciente, reage com um comportamento que ele não controla (compulsão, passagem ao ato, abuso de violência) contra o corpo de uma criança.

Frente ao comportamento compulsivo do adulto, a criança, transbordada pela sobrecarga de excitação, não pode mais pensar nem traduzir o que se passa em seu corpo; forma-se então o inconsciente amencial, que, para Dejours, “seria a marca, a entalhadura – e até, por vezes, a brecha – produzida pelos acidentes da sedução na formação do aparelho psíquico” (2019, p. 292).

A criança, então, submetida aos desejos de um adulto abusador através da intromissão e supraexcitação, é tomada por uma paralisia do pensamento, sem capacidade alguma para defender-se, sem a possibilidade de agir, reagir, protestar, revoltar-se ou contra-atacar e denunciar. A violência pode, assim, ser caracterizada pela impossibilidade de encontrar uma saída. Para afastar o risco de descompensação ou de crise psicopatológica, a clivagem e a submissão viriam como uma “solução”, evitando assim uma desorganização ainda maior.

Inconsciente amencial é o não representado, e não tem um conteúdo ideativo nem simbólico, estando proscrito, exilado ou excluído do agir expressivo dali em diante. Por isso, não se trata de recalque, mas de proscrição, exclusão. A teoria da terceira tópica sugere que aquilo que foi proscrito está em relação com a violência do adulto sobre o corpo da criança. O inconsciente amencial, por essa razão, traduz-se também em paresias e impotências do corpo, de um lado, e em uma mutilação do narcisismo, do outro.

A clivagem é o que permite afastar os conflitos intrapsíquicos e os transferenciais e, ao que parece, está presente em todo ser humano. Em certos arranjos, essa clivagem se mantém por uma vida toda; em outros casos, às vezes, ela é desestabilizada, causando descompensação/desequilíbrio psicossomático. Dejours nos fala que:

 

A submissão toma, então, o lugar da tradução impossível da violência vivida, e vem como uma forma calma de alienação, em que o conflito parece ausente ou ultrapassado. É caracterizada pela formação de um par conceitual específico (o par domínio-submissão), em que o desejo de um ser passa a habitar o outro ser, substituindo o desejo do sujeito. É como se o sujeito tivesse parado de lutar, e, por isso, a submissão ocorre sem turbulência. (DEJOURS, 2019, p. 260)                          

 

Existe uma relação entre a submissão e o medo, entre a necessidade de punição e o ódio. O medo se fixa no inconsciente amencial, manifestando-se como submissão. O ódio no adulto pode se transformar em ódio de si mesmo, manifestando-se em necessidade de punição e, por vezes, intensificando a violência do agressor ou direcionando a agressividade a uma pessoa vulnerável na passagem ao ato violento.

Como acessar o proscrito (exilado) ou o amencial?

Dejours (2019) considera que o trabalho de análise não consiste na interpretação exaustiva, mas em uma forma de trabalho psíquico realizada pelo próprio paciente, em que uma parte do que está escamoteado no inconsciente amencial pode ser traduzida e repatriada pelo inconsciente sexual recalcado. Este trabalho passa pelo sonho. É uma “perlaboração” pelo sonho, podendo oferecer aos pacientes possibilidades diferentes de funcionamento psíquico, por meio das quais haja acesso aos conteúdos proscritos do inconsciente amencial, tornando possível um viver a partir de seus próprios desejos.

Com base nas ideias de Christophe Dejours, brevemente aqui apresentadas, convidamos nossos debatedores a uma problematização de situações nas quais o circuito da violência se faz presente, bem como uma reflexão sobre o trabalho analítico de perlaboração através dos sonhos.

Esperamos, desta forma, ampliar as contribuições tão ricas e atuais que tivemos em nosso encontro com Dejours, possibilitando aos leitores um contato ainda mais próximo com suas colocações.



 


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ano - Nº 4 - 2022
publicação: 26/11/2022
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Notas

[1] Psiquiatra e psicanalista. Membro do Institut de Psychosomatique de Paris (IPSO) e da Association Psychanalytique de France (APF). Diretor científico do Instituto de Psicodinâmica do Trabalho de Paris.

 

Referências bibliográficas

DEJOURS, C. Psicossomática e teoria do corpo. São Paulo: Blucher, 2019.


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