MONOGRAFIA

A psicossomática da dor: da dor no corpo à dor do corpo


The psychosomatic of pain: From body pain to pain of the body
Camila de Lima Tostes

RESUMO
A dor pode ser uma das manifestações sensitivo-sensoriais que mais aproxima as experiências corporais das psíquicas. É quase impossível estabelecer uma fronteira entre dor física e sofrimento emocional. Por isso, após uma breve revisão da ciência biológica da dor, este artigo faz uma análise dos aspectos psíquicos e afetivos que existem entremeados a este sintoma, através de observações clínicas do cotidiano.

Palavras-chave: Dor, Psicossomática, Angústia, Corpo.

ABSTRACT
Pain can be one of the sensory manifestations that brings bodily experiences closer to psychic ones. It is almost impossible to establish a boundary between physical pain and emotional suffering. Therefore, after a brief review of the biological science of pain, this article analyzes the psychic and affective aspects that exist intertwined with this symptom, through clinical observations.

Keywords: Pain, Psychosomatic, Distress, Body.


Introdução

 

Talvez a dor seja a manifestação sensitivo-sensorial que mais aproxima as experiências corporais das psíquicas, e vice-versa, uma expressão psicossomática por excelência.  É quase impossível estabelecer uma fronteira entre dor física e sofrimento emocional. Uma clara evidência disso é que, ao pesquisarmos o significado da palavra dor no dicionário, podemos encontrar a seguinte definição:

 

Sensação corporal penosa, classificada pelo seu tipo, intensidade, caráter e ocorrência: dor de barriga; dor difusa.

Sofrimento provocado por uma decepção, pela morte de alguém, por uma tragédia; mágoa: dor de perder o pai. (DICIO, s. d.)

 

 

Segundo a Associação Internacional para o Estudo da Dor (IASP), o conceito de dor é: “uma experiência sensitiva e emocional desagradável associada, ou semelhante àquela associada, a uma lesão tecidual real ou potencial” (RAJA SRINIVASA et al., 2020).

Essa definição de dor reconhece os avanços dos conhecimentos pautados na moderna neurociência da dor, mas não se restringe a eles, incorporando, neste processo, outros fatores relevantes, como cognição, comportamentos, fatores culturais e educacionais. Atualmente, o entendimento desse sintoma não se limita a indivíduos com comprovação de lesão orgânica associada à dor (SANTOS e RUDGE, 2014).

Considerando a subjetividade da dor e a dificuldade em quantificá-la e qualificá-la, questionamentos sobre manifestações dolorosas que incidem no corpo têm sido fonte de discussões não apenas no âmbito médico, mas em diferentes campos da saúde, justamente pela dificuldade em diagnosticar e tratar um sujeito que sente e sofre de dores, mesmo sem indícios de danos orgânicos que as justifiquem.

 

A ciência da dor

 

A dor física pode ser um importante mecanismo de defesa do organismo. Ela atua como um sinal de alarme de que algo não vai bem, servindo como um guia para identificar um dano ao organismo e poder buscar uma solução (SILVA e RIBEIRO FILHO, 2011).

Podemos classificar o quadro álgico em: dor aguda ou dor crônica, sendo esta última aquela que pode se prolongar por um tempo maior que três meses. A dor aguda costuma ser um sinal de injúria imediata, como um estiramento muscular ocasionado em um jogo de futebol, por exemplo. Quando rapidamente tratada, na maioria dos casos, a dor aguda pode ser adequadamente resolvida. A dor crônica, por sua vez, pode ser secundária a doenças orgânicas crônicas, como a artrite reumatoide, de etiologia autoimune. No entanto, frequentemente, os médicos deparam com pacientes portadores de dores crônicas que não podem ser explicadas adequadamente pelo grau de lesão ou inflamação observado no corpo. Um dos principais protótipos deste grupo é denominado de fibromialgia (HOCHEBERG et al., 2015).

Fibromialgia é um termo médico utilizado para designar uma dor musculoesquelética crônica e disseminada pelo corpo, na qual não se identificam lesões corporais causadoras deste sintoma. Os estudos mais recentes mostram que os pacientes com fibromialgia apresentam uma sensibilidade maior à dor do que pessoas sem fibromialgia. Em geral, essa condição está associada a outros sintomas inespecíficos, como fadiga, cefaleia, perda de memória, constipação intestinal funcional, distúrbios do sono e do humor. Alguns estudos populacionais sugerem que de 5% a 15% da população apresentam quadro de dor crônica generalizada em algum momento da vida, e que ela é 1,5 vez mais comum nas mulheres do que nos homens (HOCHEBERG et al., 2015).

Este sintoma álgico não acompanhado de lesão orgânica nos locais doloridos do corpo tem gerado curiosidade em cientistas, que, procurando entender sua origem, identificaram anormalidades na neuroimagem funcional e na bioquímica sérica de pacientes com dor crônica musculoesquelética difusa. Um estudo de Gracely et al. (2004) mostrou, através de análise de ressonância magnética funcional, que pacientes com fibromialgia apresentavam maior quantidade de ativação neuronal nas regiões do cérebro de processamento da dor do que indivíduos controle ao receber a mesma quantidade de estímulos de pressão (HOCHEBERG et al., 2015; GRACELY et al., 2004).

Por isso, cada vez mais, tem sido aventada a ideia de uma “anatomia da dor crônica”. Ou seja, o conhecimento das regiões cerebrais relacionadas à sensação dolorosa tem demonstrado que a dor crônica gera uma ativação neuronal complexa, que atua como um curto-circuito, em que a dor vira uma doença por si só, sendo capaz de gerar mais dor e acionar outros sintomas incapacitantes, como insônia, alteração do funcionamento intestinal, perda de memória, transtornos depressivos, entre outros (HOCHEBERG et al., 2015; CLAUW, 2014).

Em estudos de imagem funcional, a ínsula tem sido identificada como a região cerebral pivotal nessa integração sensorial. Giesecke et al. (2005) exploraram a relação entre depressão e dor em 30 pacientes com fibromialgia, descobrindo, através da análise de ressonância magnética funcional, que a região anterior da ínsula, uma região cerebral envolvida nos aspectos afetivos ou motivacionais de processamento da dor, era ativada mediante sintomas depressivos. Por outro lado, as regiões laterais/posteriores da ínsula foram acionadas mediante sintomas álgicos intensos não associados a sintomas depressivos. Esses dados, assim como os de outros estudos no campo da dor, indicam que existem diferentes regiões do cérebro responsáveis pelo processamento da dor dedicadas à intensidade sensorial e aos aspectos afetivos da sensação de dor, sugerindo que a primeira e os últimos são, em grande parte, independentes entre si (GIESECKE et al., 2005).

A dificuldade em conseguir ajudar de forma efetiva esses pacientes com dores crônicas disseminadas tem gerado muita frustração no consultório médico.

Em que medida medicina e psicoterapia praticada no campo da psicossomática psicanalítica podem compor uma parceria transdisciplinar cujo escopo abarque as complexidades objetivas e subjetivas envolvidas no fenômeno da dor? Talvez essas fronteiras não existam, e o sintoma corporal pode ser uma porta de entrada para acessar o território psíquico-afetivo. Alguns estudos (HOCHEBERG et al., 2015) mostraram que os pacientes com fibromialgia que conseguiram persistir no processo psicoterapêutico foram capazes de desenvolver novas conexões neuronais, menos associadas à dor, através da neuroplasticidade neuronal.     

 

Eu-dor

 

Praticamente todo mundo experiencia pelo menos uma sensação dolorosa ao longo da vida, seja ela física e/ou emocional. Estamos destinados a sentir dor desde o nascimento. Nascemos com o corpo esmagado, com o pulmão sufocado, expostos à separação do ventre materno e ao frio do ambiente extrauterino. É possível imaginar uma dor maior que essa? Também é difícil imaginar que seja possível distinguir dor, sofrimento e angústia nessa altura do campeonato, mas, de alguma forma, essas experiências de vida parecem ser fundamentais para a construção do EU integrado. Quem existe sente dor.

Por outro lado, viver com dor, dia após dia, pode ser uma experiência extremamente debilitante. A dor crônica altera o modo de vida de uma pessoa, levando à dificuldade para dormir, a um sono não reparador, a problemas nas relações sexuais, ao cansaço crônico, a mau humor, isolamento social, entre outros problemas, que só amplificam ainda mais a dor.

Para ampliar a discussão sobre a dor crônica, apresento alguns pequenos recortes do consultório médico nos próximos tópicos.[1]

 

O racismo e a dor

Raiana apresentava dores crônicas generalizadas e angústia por não entender a causa dessas dores e não aceitar as limitações consequentes ao quadro álgico. Por demonstrar uma boa capacidade simbólica e de mentalização, fiz questão de não a tachar com um diagnóstico de fibromialgia, e assim, juntas, podermos traduzir os sentidos dos sintomas apresentados em seu corpo. Inicialmente, eu percebia conteúdos relacionados a um sentimento de culpa por ter feito uma determinada escolha na vida que foi contra os valores da família. A dor surgia após episódios depressivos, como uma barreira protetora que a impedia de se aprofundar em suas questões subjetivas mais dolorosas. Em meio ao tratamento – que utilizava medicamentos, exercícios físicos, psicoterapia e fisioterapia – ela conseguiu enxergar sua dor como efeito de uma identificação com a mãe, que também sofria da dor, enquanto, por outras atitudes, se diferenciava da mãe. Refletindo sobre seus processos internos, ela parecia ter descoberto um tesouro perdido que escondia uma percepção muito profunda, ao mesmo tempo que negada, de que ela e a mãe se sentiam subalternas e submetidas a um outro, considerado superior a elas em função da raça. Seus sintomas álgicos melhoraram sensivelmente após ter sido possível introjetar e conscientizar-se de seu lugar e do lugar de seus antepassados na história familiar. Pôde autorizar-se a fazer escolhas e seguir sua trajetória singular, diferente da trajetória de sua mãe.

 

Psicose e dor

Há alguns anos, Catialine apresenta dores crônicas generalizadas, que alternam períodos de melhora extrema com períodos de muita dor. O diagnóstico de fibromialgia não foi facilmente digerido, mas permitiu que ela buscasse um caminho de elaboração de seus sintomas. Intrigava-me que as dores desaparecessem mediante boas notícias, acontecimentos positivos em sua vida e concomitantemente ao surgimento de alucinações, como ter visto fadas mágicas ou outras entidades que mais ninguém via. Chamava-me a atenção que Catialine não manifestasse sintomas depressivos, nem momentos de tristeza, ao passo que as dores e a enxaqueca surgiam quando não sentia que sua vida caminhava bem. Após alguns anos de seguimento ambulatorial e relativo controle da dor, presenciei, pela primeira vez, sintomas de tristeza e de depressão. Foi quando, finalmente, consegui convencer Catialine a buscar um psiquiatra de extrema confiança, que a medicou. A partir daí, Catialine começou a entrar em contato com dores emocionais nunca antes sentidas, reconhecendo a importância de poder deprimir-se.  

 

Um corpo para várias – e uma dor transgeracional

Três gerações de mulheres de uma mesma família, com queixas álgicas e sintomas debilitantes, compareciam juntas nas consultas umas das outras. Elas eram tão indiscriminadas uma da outra que a consulta com as três parecia ser de uma única paciente. À noite, as três compartilhavam um único espaço da casa. Viviam de forma simbiótica, como se fossem uma só. Após alguns anos de tratamento, em uma determinada consulta, aconteceu de duas precisarem sair da sala, tendo permanecido apenas uma delas na consulta, situação que precipitou um início de diferenciação dos sintomas apresentados por cada uma delas e um aprofundamento lento e progressivo da história familiar.

Duas delas viveram histórias conjugais e familiares muito parecidas. Ambas se casaram e, quando grávidas, seus maridos foram trabalhar em outra cidade, abandonando-as com os filhos e permanecendo, ambos, no lugar de destino depois de se juntarem lá a outra mulher, formando com esta uma nova família. Uma história que se repetiu por gerações e que não pôde ser expressa em palavras, dando lugar a uma dor corporal que gritava no lugar da voz reprimida dessas mulheres. Uma compulsão à repetição transgeracional, dentro de um cenário de indiferenciação, em busca de reorganização não só de um indivíduo, mas também de todo um sistema familiar.

   

Na pobreza, é possível escolher uma via diferente da dor?

Amélia sente dores generalizadas há muitos anos e sofre de uma doença imunomediada, que afeta órgãos importantes de seu corpo. É migrante e mãe solteira. Ao chegar na cidade, viveu em condições muito precárias e humilhantes; hoje é vendedora. Vive ameaçada por sequelas graves que poderão surgir com o tempo. Frequentemente precisa ser internada, mas logo consegue deixar o hospital, para não faltar ao trabalho, temendo perder o emprego. As dores nos quadris vêm aumentando progressivamente, associadas a insônia crônica, dores articulares e tensão muscular generalizada. Está cada vez mais difícil desempenhar seu duro trabalho. Apesar dessas dificuldades, ela não deixa de comparecer de segunda a sábado ao seu emprego. Amélia não parece questionar sua condição social, seus direitos de trabalhadora, tampouco sua existência como indivíduo. Amélia sobrevive não somente dentro de um funcionamento individual operatório, mas também dentro de um sistema desigual e alienante, como milhares de outros brasileiros.

 

O patriarcado e a submissão feminina à dor

Já tive a oportunidade de trabalhar como reumatologista em um convênio de pessoas idosas. O reduzido tempo de atendimento não me permitia aprofundar o vínculo com cada paciente individualmente, mas o grande fluxo de pessoas que atendi me chamou a atenção para a quantidade gigantesca de mulheres idosas com dores crônicas generalizadas. Não homens, mas, sim, mulheres. Várias “donas Marias” cheias de dores. Pude notar algo em comum entre todas elas: a submissão perante uma sociedade machista. A falta de liberdade de escolha, a ausência de voz e a impossibilidade de ação. Era muito comum atender viúvas que passaram a vida inteira com dores e, finalmente, após a morte do marido, começaram a se sentir livres das “dores”. Outro comportamento que me chamou atenção foi a frequente resistência em tomar analgésicos. Muitas dessas mulheres estavam polimedicadas, utilizando várias pílulas sem muito fundamento médico, mas uma simples dipirona parecia ser inaceitável na lista de medicamentos a serem tomados. Algumas vezes, ouvi a seguinte frase: “Ah, doutora, não tomei a dipirona, não. Fiquei curtindo a minha dor”. Algumas das questões que emergiam em meus pensamentos eram: Quanto dessas dores seria um sintoma de uma sociedade machista? A submissão à dor representaria um masoquismo mortífero ou guardião da vida? (ROSENBERG, 2003). Representaria um prazer na dor ou mitigação de uma culpa? Será que as futuras gerações de mulheres ainda padecerão desse mesmo quadro?  

 

Amplificação dolorosa central – A dor crônica localizada levando a uma dor disseminada

Atendi Paulo, adulto antes dos 40 anos, com queixa de dores musculares por todo o corpo, insônia, esquecimentos e cansaço excessivo há alguns meses. Após longa investigação clínica, descartei algum processo orgânico, já que apenas uma lesão de joelho fora encontrada. Somente então Paulo se referiu a um trauma sofrido nessa região de seu corpo, cerca de um ano antes, por excesso de trabalho, já que precisou, por circunstância de seu emprego, aumentar a carga horária de trabalho. Na época, temendo ser demitido, Paulo não fez o repouso nem a fisioterapia orientada pelos médicos, mas se medicou e foi lesionando cada vez mais essa região sobrecarregada de seu corpo. Paulo não havia feito qualquer associação desse episódio prévio a seu quadro atual, mas, assim como existem vias neuronais ligadas ao sofrimento emocional, sabemos que uma dor localizada permanente e não resolvida também pode acionar vias neuronais, ativando o sistema nervoso central e o sistema nervoso simpático como um curto-circuito, capaz de desenvolver uma resposta de perpetuação da dor em outras regiões que não a de sua origem. Este processo é denominado de amplificação dolorosa central. É visto mais frequentemente do que gostaríamos no consultório médico, e considero um conceito importante para o raciocínio psicossomático da dor que será discorrido a seguir.

 

A economia da dor

 

Os casos descritos abrem portas para muitas discussões clínicas a respeito do entendimento psicossomático da dor. Sem dúvida, existem múltiplos fatores causais, e não é possível percorrer um caminho de via única para elaborar hipóteses sobre o desenvolvimento desse sintoma.

Para a psicanálise, o corpo não se reduz ao orgânico; ao contrário, ele é o lugar do qual emerge o circuito pulsional que visa satisfação por meio do prazer ou mesmo do desprazer. Assim, ao longo da obra freudiana, observamos que o corpo é nomeado de diversas formas, tais como: corpo da conversão histérica, corpo erógeno, corpo pulsional, corpo narcísico. Isso demonstra a importância fundamental do corpo na constituição do aparelho psíquico (SANTOS e RUDGE, 2014).

Um dos primeiros ensinamentos que Freud extrai dos sintomas histéricos é que a erotização de um órgão subverte sua função orgânica, e esta deixa de funcionar a favor da conservação da vida. A genialidade de Freud consistiu em demonstrar que os sintomas conversivos da histeria não seguem a lógica do corpo anatômico, mas sim a lógica do corpo representado (FREUD, 1996a [1895 (1893)]; FREUD, 1996b [1895]). Eles refletem o corpo do imaginário popular, do senso comum, e não o mapeamento científico do corpo.

Sendo assim, podemos entender que Freud distingue corpo biológico e corpo psicanalítico, o que equivale a dizer que a psicanálise faz a passagem da lógica da anatomia para a lógica da representação. O corpo, em psicanálise, é um corpo atravessado pela linguagem e pela alteridade. Demonstrar como os sintomas histéricos se moldam pelas forças do corpo representado, e não do corpo anatomopatológico, foi uma grande virada, que contribuiu para a inauguração da psicanálise. Desse modo, Freud pôde esboçar algumas especificidades da escuta psicanalítica e iniciar o percurso que o levou à dinâmica do funcionamento inconsciente (SANTOS e RUDGE, 2014).

Mas não é só com relação ao sintoma histérico que a psicanálise tem contribuições a dar. Ela também amplia a visão do adoecer ao inserir implicações subjetivas nas perturbações orgânicas. Evidencia-se, assim, que a especificidade da contribuição psicanalítica reside, entre outras, na reflexão sobre a importância do inconsciente nas relações entre psíquico e somático (SANTOS e RUDGE, 2014).

Para McDougall, as manifestações corporais são expressões corriqueiras tanto de conflitos internos como de acontecimentos externos da vida cotidiana que impactam o mundo interno. McDougall (1994) compreende o fenômeno de somatização como um mecanismo mental de defesa e emprega o termo “potencialidade psicossomática”, isto é, qualquer indivíduo neurótico ou psicótico pode somatizar se um certo limiar de conflito ou de dor psíquica for ultrapassado. Nos fenômenos psicossomáticos ocorreria, segundo essa autora, a expulsão de aspectos afetivos e cognitivos da realidade psíquica para fora da psique, deixando o indivíduo sem conhecimento deles (MCDOUGALL, 1994).

Mediante a temática da dor, McDougall (1991), por um lado, não concebe uma fronteira clara e, por outro, postula a existência de diferenças radicais entre a dor corporal e a dor mental, sobretudo a partir do momento que o ser humano adquire a capacidade de representar simbolicamente as suas vivências. De acordo com ela, esta maior capacidade de simbolizar e, portanto, de sentir a dor corporal e a dor mental como distintas, depende da qualidade da relação primordial mãe-bebê e da capacidade da mãe de interpretar as expressões de dor do bebê e de nomear para ele os seus estados afetivos. A capacidade de “ouvir” as dores mentais vai depender da maior ou menor permeabilidade entre a área somática e a área psíquica e da qualidade da comunicação entre a vida somática e a vida psíquica (MCDOUGALL, 1991).

Norma Semer trouxe uma reflexão muito interessante sobre a dor no capítulo “Dor física e dor psíquica”, do livro Psicossoma IV, entendendo esse sintoma como uma forma de expressão e comunicação, em que a dor física concentra todas as dores, sendo um continente das infelicidades. Para essa autora, o apego à dor e à doença passa a ser o eixo da vida (SEMER, 2008, p. 345-356).

Com base nesses conceitos, gostaria de propor uma formulação para a dor como sendo a expressão de um mecanismo mental e físico de defesa.

Mecanismos de defesa, na teoria psicanalítica, são processos que têm por finalidade reduzir qualquer manifestação que seja sentida pelo ego como ameaçadora e, portanto, que possa colocar em perigo sua integridade. São processos pré-conscientes ou mesmo inconscientes que permitem à mente encontrar uma solução para conflitos não resolvidos no nível da consciência. As bases dos mecanismos de defesa são as angústias. Quanto mais angustiados estivermos, mais fortemente os mecanismos de defesa ficam ativados (FREUD, 1946 [1936]; BRENNER, 1973).

Unindo esse conceito à ideia de que nem sempre o Eu está apto a realizar as diversas integrações necessárias, não fica difícil imaginar que, às vezes, o corpo possa ser o palco desse processo defensivo e a dor seja uma espécie de representante desse esforço de integração. Se toda vez que não fôssemos capazes de elaborar psiquicamente um evento traumático evoluíssemos com uma somatização física, estaríamos em um cenário de fragilidade corporal muito maior. Nesse sentido, a dor física pode atuar como uma representação primitiva de defesa, tentando nos proteger de uma somatização orgânica mais ameaçadora à vida. Por isso, a ideia de dor como um possível mecanismo de proteção mental e físico. A dor crônica poderia surgir como efeito de evitação do sofrimento emocional, ou ainda como transbordamento do excesso de sofrimento que não ganhou representação na palavra.

No relato acima, sobre uma dor transmitida transgeracionalmente, a dor crônica parece estar atrelada à possibilidade de elaboração dos eventos traumáticos revividos na linhagem familiar, permitindo que ocorra uma diferenciação das experiências pessoais e, concomitantemente, do quadro álgico apresentado.    

Adicionalmente, o caminho da dor, inicialmente localizada e, posteriormente, disseminada, no caso de Paulo, pode representar uma forma de desorganização progressiva através de uma manifestação corporal. O “objeto ferido” (lesão no joelho e medo de perder o emprego), que não pôde ser adequadamente investido no momento do trauma, passa a ser sentido em todo o corpo de Paulo, sem um entendimento consciente capaz de nomear a causa do incômodo. Neste caso, podemos visualizar que, inicialmente, houve uma lesão fisiológica do joelho de Paulo, que, por não ter sido tratada, progrediu para um quadro de amplificação dolorosa, com dores por todo o corpo, mesmo que não houvesse outras lesões orgânicas. Em paralelo, também podemos considerar que Paulo sofreu um esgotamento psíquico por sobrecarga de trabalho, que, de modo semelhante, não pôde ser mentalmente elaborado. Em outras palavras, é como se o corpo estivesse expressando a desorganização vivenciada através dessa manifestação álgica.

É possível também fazer um paralelo desse caso com a regressão de uma angústia sinal para uma angústia difusa. Ou seja, assim como se sabe qual é a parte do corpo que está lesionada quando a dor está localizada no joelho (dor palavra), existe um objeto conhecido como causador do medo na angústia sinal, o medo do desemprego. A dor generalizada, por sua vez, poderia ser um paralelo biológico da angústia difusa: a dor é sentida difusamente, mesmo que não haja uma região do corpo fisicamente lesionada (dor coisa), do mesmo modo que se desconhece qual é o objeto traumático gerador de uma angústia difusa (síndrome de pânico, por exemplo).

Enquanto nos cenários supracitados a dor crônica parece atuar como uma defesa do corpo ao desenvolvimento de uma doença orgânica grave, ou até como uma compulsão à repetição em busca de elaboração, no caso de Catialine, a paciente que necessitou de acompanhamento psiquiátrico, a dor nitidamente parecia funcionar como uma barreira que a impedia de deprimir-se e de entrar em contato com afetos insustentáveis. Aliás, esse caso clínico puxa um gancho que interroga a proposição psicanalítica de que há uma contradição entre sintomas psicóticos e somatização, ou de que psicose e processos de somatização não poderiam associar-se enquanto manifestação sintomática. Alguns estudos vêm demonstrando uma relação de 25% a 80% de transtorno bipolar em pacientes com fibromialgia. Ademais, pacientes com fibromialgia apresentam 10 vezes mais chance de desenvolver transtorno bipolar, quando comparados à população em geral. Outras pesquisas vêm apontando, igualmente, uma correlação entre fibromialgia e esquizofrenia ou outros distúrbios psiquiátricos (BORTOLATO et al., 2016; DI TOMMASO et al., 2017).

Não pretendo entrar aqui no mérito do que teve início primeiro ou dos pormenores da relação entre distúrbios psiquiátricos e somatizações dolorosas, apenas chamo atenção para esse dado com o intuito de não cairmos na armadilha de defender radicalmente um lado único, ora considerando que devemos realizar uma abordagem puramente medicamentosa para tratar pessoas com dores crônicas, ora compartilhando de um pensamento estritamente mental e contrário à medicalização, que desconsideraria o fato de também sermos matéria química e biológica. Nesse sentido, concordo com Joyce McDougall que qualquer indivíduo pode somatizar, a depender das circunstâncias internas e externas que operam em determinado momento naquele sujeito, assim como concordo com seu pensamento de que as bases constitutivas de um indivíduo que podem se tornar gatilho para abertura de um quadro psicótico podem compartilhar espaço em comum com as da somatização.

Outro aspecto importante a ser pensado nesses quadros de dores crônicas é a aparência operatória que muitos desses pacientes apresentam, principalmente no início do processo terapêutico. Ao retomar o caso da paciente que trabalha como vendedora, nós nos chocamos com a realidade escancarada de desamparo em diversos níveis, ou de “desnutrição emocional”, como citou Semer (2008). Deparamos com o desamparo sociopolítico, com o desamparo do trabalhador perante um sistema capitalista de exploração, em um quadro onde a luta por sobrevivência está acima da luta por vivência. Enfim, são infinitos os desamparos produzidos pela precária realidade socioeconômica em nosso país. Posso elaborar diversas hipóteses sobre como se deu a infância dessa paciente. Dentre elas, imagino que o acesso ao leite materno, ou a qualquer alimento, tão essencial para o desenvolvimento físico do bebê, possa ter sido escasso. Aonde quero chegar é: como falar de psique quando se tem fome, quando necessidades físicas tão básicas não podem ser supridas? Penso que a pobreza talvez seja uma das maiores violências de nossa sociedade atual. E é difícil sonhar com um processo de mentalização ideal enquanto houver pobreza. O pensamento operatório dessa paciente nos parece a única forma de se adaptar a circunstâncias ambientais tão adversas, tornando-a uma presa fácil para o sistema e para sua chefe, que, por sua vez, também não deve ter a mínima consciência de seu papel social. Nesse caso, entendo o sintoma álgico como um processo menos complexo e mais da ordem da descarga desses excessos de crueldade perante um profundo vazio simbólico-afetivo.

Este debate se entrelaça com a possibilidade de enxergar a dor como um sintoma capaz de “tapar buracos”. Ou seja, de preencher vazios e trazer um tom de existência. Se tenho dor, existo. Assim, a dor crônica seria uma manifestação da compulsão à repetição que busca dar um sentimento, mesmo que na forma de um sofrimento, ao inominável do trauma, um abre-alas ou porta-estandarte da função estruturante no masoquismo. Mais uma vez, cito Semer (2008), que defende o sintoma/dor como uma espécie de linguagem não verbal.

Os casos das mulheres idosas com dores crônicas que não queriam tomar analgésicos “para curtir suas dores” poderiam ser interpretados sob essa ótica masoquista, por exemplo. Abro um parêntese para ressaltar que continuamos vivendo um período de aumento da expectativa de vida do cidadão brasileiro, mas que, segundo os dados demográficos de nosso país, os homens, em geral, vivem menos do que as mulheres. Sendo assim, muitas dessas mulheres estão vivendo mais tempo que suas avós ou bisavós e, em sua maioria, vivem mais que seus maridos. Embarcando nesse histórico sociodemográfico, podemos notar também que os homens brasileiros dessa geração tinham maiores chances culturais de descarga na ação e que desenvolveram somatizações orgânicas mortais mais precocemente que as mulheres. Desse modo, é possível reiterar a dor crônica como um possível mecanismo de defesa corporal que “protegeu” essas mulheres de somatizações mais ameaçadoras à vida. Por outro lado, o intuito não é de "romantizar” esse sintoma para todos os casos. É importante ter em mente que o limiar entre a dor guardiã da vida e a dor mortífera parece ser muito estreito. Existem pessoas que manifestam dores como uma punição, ou como uma barreira que impede a elaboração psíquico-emocional, contribuindo com quadros de depressão graves, ou até mesmo com uma desorganização progressiva.

Logo, em um primeiro momento, considero muito mais importante tentar discernir entre a dor guardiã da vida e a dor mortífera do que entre a dor física e a dor mental. Isso porque, através dessa diferenciação, podemos definir condutas terapêuticas básicas, como quem precisaria ser imediatamente medicalizado ou não. Quando o sintoma doloroso está ocupando um espaço muito extenso na constituição do eu, a retirada abrupta do sintoma álgico pode ser totalmente desestruturante. No entanto, a radicalização contra o uso de medicações analgésicas pode, igualmente, impossibilitar a evolução de um trabalho psíquico. Esse discernimento requer uma relação de contratransferência ainda mais sutil do profissional que está diante desses pacientes, a fim de interpretar essa linguagem não verbal para, posteriormente, tentar avançar com a possibilidade de uma transformação da dor física em sofrimento psíquico. Ou seja, algumas vezes, será necessário tentar reduzir a dimensão fisiológica do sintoma álgico para que surja a dimensão simbólica.

Frente a essas discussões, desenhei o seguinte esquema sobre economia da dor para representar alguns aspectos abordados:

economia_da_dor.jpg

Legenda: R = realidade; A = afeto; R’ = representação / recalque; S = somatização; D = dor física; P = psicose; d = dor-representação / dor nomeada / dor palavra / dor acompanhada de afeto/sofrimento.

Esta figura esquematiza alguns espaços em que uma dimensão simbólica da dor poderia atuar. Hipóteses: 1- podendo funcionar como uma “cola” ao afeto livre de representação (“ao vazio”); 2- entremeada à própria representação (real ou simbólica); 3- reprimida no pré-consciente, prestes a emergir, a exemplo do pensamento a respeito das cefaleias desenvolvido por Marty (1993); 4- como uma comorbidade de distúrbios psiquiátricos/ psicóticos; 5- ou apresentando-se como uma consequência do próprio sofrimento associado à somatização e à dor física.

A dor-representação seria, então, a dor acompanhada de algum significado afetivo, ou seja, a dor de um corpo subjetivado. E, apesar de esta dor acompanhada de afeto ser um sentimento compartilhado universalmente, ela não está capturada em sua integralidade nem em nossa anatomia biológica, nem na psíquica. Por isso, com base em uma ampla observação clínica, estou buscando desenvolver uma tópica, ainda a ser compartilhada, que agregue campos epistemológicos diferentes com a finalidade de estabelecer um lugar e uma função para a dor abastecida de simbolização, de modo que possamos identificar mais facilmente as particularidades entre a dor no corpo físico e a dor afetiva, mas também atribuir a constante possibilidade de comunicação, ou não, entre essas duas.  

Por enquanto, concluo que é preciso marcar a passagem que o sujeito precisa fazer desde reconhecer e apropriar-se de seu corpo material e biológico, humano e carnal, até conquistar uma relação simbólica com o mesmo, que lhe permita subjetivar-se nesse corpo através dos sentidos diversos que possam ser atribuídos a suas dores. Assim, a função primordial da dor-representação seria permitir que esse sujeito, de fato, habite seu corpo. E a batalha do profissional que lida com essa jornada é tentar auxiliar a travessia da dor no corpo objetivado para a dor subjetivada do corpo.

 

 

 


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ano - Nº 4 - 2022
publicação: 26/11/2022
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Autor(es)
• Camila de Lima Tostes
Departamento de Psicossomática Psicanalítica do Instituto Sedes Sapientiae

Médica, clínica geral e reumatologista, com especialização em Psicossomática Psicanalítica pelo Instituto Sedes Sapientiae.


Notas
[1] Os dados relacionados aos pacientes das vinhetas foram modificados em virtude da manutenção do anonimato.
Referências bibliográficas

BORTOLATO, B. et al. Current Molecular Medicine, v. 16, n. 2, p. 119-136, 2016.

BRENNER, C. Noções básicas de psicanálise. Rio de Janeiro: Imago, 1973.

CLAUW, D. J. Fibromyalgia: a clinical review. Jama, v. 311, n. 15, p. 1547-1555, 2014.

DI TOMMASO MORRISON, M. C. et al. Fibromyalgia and bipolar disorder: extent of comorbidity and therapeutic implications. J. Biol. Regul. Homeost. Agents, v. 31, n. 1, p. 17-20, 2017.

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