EDITORIAL

Editorial



Tempos de pandemia, medo seguido por alívio e um tempo de paz. E de repente, somos arremessados em um clima político produtor de cisão, violência, desencontros e, novamente, medo. Regredimos ao tudo ou nada, ou, se preferir, à posição esquizoparanoide, conceituada por Klein. Para além do medo, surgem afetos persecutórios, o amor isolado do ódio, o perdão a anos-luz da eventual ofensa. Inimigos execráveis, dignos de extirpação.

Foi nesse ambiente disruptivo e ambivalente que este número foi confeccionado, apresentando formas variadas de sofrimento, como a dor subjetiva, mas também a outra, objetivada pela medicina. Como vocalizar nossos sofrimentos? Como tratar a melancolia e os estados psicóticos coletivos que observamos ao redor e que, neste número, são representados por quatro artigos? 

Abrindo este número, o artigo de Rubens M. Volich problematiza alguns desdobramentos do critério estabelecido por Freud de que apenas as psiconeuroses seriam passíveis de tratamento pelo método psicanalítico, e não as neuroses atuais. Em diálogo com autores e psicanalistas que buscaram superar esse impasse clínico, Volich ressalta o potencial das hipóteses metapsicológicas para compreender as relações entre o psíquico e o somático e a necessidade de modificar a técnica para tratar os efeitos desorganizadores do traumatismo, do infantil primitivo e dos sintomas e doenças orgânicas.

O tema da psicose está contemplado em três artigos. Flávio Ferraz propõe uma discussão clínica sobre a psicose e seu mecanismo de defesa fundante, a foraclusão, que participa também de processos normais da infância.   

José Atilio Bombana, por sua vez, chama atenção para a peculiar relação entre os sujeitos psicóticos e suas mães, refletindo sobre o lugar desta enquanto representante da Lei, sua possível função de suplência, bem como seu papel na construção dos laços sociais dos sujeitos psicóticos.

E Françoise Chaine, diretora da Escola Psicossomática de Paris, propõe uma leitura metapsicológica do funcionamento mental, apontando para uma oscilação entre momentos psicóticos e sintomatologias somáticas. Sob a ótica do luto, da melancolia, da desorganização psicótica e da somatização, a autora relaciona formas variadas de reações à perda, dependendo da maior ou menor intrincação do eu.

Glória Heloise Perez problematiza a visão que a medicina oferece do conceito de doença, sem defini-la nos termos da experiência subjetiva que caracteriza o estado de padecimento, mas enquanto parâmetro quantitativo mensurado por tecnologias. Ela destaca a vivência de intrusão no corpo (concepção winnicottiana) enquanto experiência disruptiva e estranha ao sujeito que adoece.

A clínica psicossomática da voz é abordada por Enio Lopes Mello, que a concebe como gesto corporal de expressão e comunicação do sofrimento. Assim, nuances sonoras, seus ritmos e velocidades são observados na passagem de tensão pelo corpo e servirão de substrato para a análise de excitações e paraexcitações, bem como da formação de novas representações e elaborações psíquicas. 

Eloisa Tavares de Lacerda parte do relato de quatro sessões clínicas com crianças e respectivos pais, os efeitos transferenciais e seus restos - ou aquilo que resistiu à escuta. Nos fragmentos do que se fala ou se cala, ela ressalta que há uma polifonia de vozes delineando o movimento de um sujeito rumo a seu porvir.

O que aconteceu entre março de 2020 e março de 2022 que nos fez desconfiar do que nos era familiar - o contato habitual com parentes e amigos, nossas rotinas, o tempo de lazer fora de casa - e agora nos faz evitar o que tanto queríamos? Com base em textos consagrados e articulações teóricas contemporâneas no âmbito da psicanálise, Raul França Filho busca discutir a hipótese de que estamos vivendo um estado coletivo de melancolia, como um dos possíveis efeitos da pandemia de Covid-19 na saúde mental da população.

Nesta edição da revista, inauguramos a seção Ensaios, na qual contamos com a colaboração de Decio Gurfinkel, com seu primoroso estudo da relação entre as neuroses atuais e adições, hábitos e a técnica ativa proposta por Ferenczi. Partindo de uma revisão crítica da clínica das adições, ele faz uma escavação regressiva em busca das origens da metapsicologia do atual e das neuroses atuais na obra de Freud, considerada precursora da chamada Psicossomática Psicanalítica.

Na seção Monografia, a dor é considerada por Camila Tostes como uma manifestação que aproxima as experiências corporais e psíquicas, sendo quase impossível estabelecer uma fronteira entre dor física e sofrimento psíquico. Tostes procede a uma breve revisão da ciência biológica da dor, apresenta uma variedade de vinhetas clínicas e termina sugerindo uma reflexão sobre os aspectos econômicos da dor.

Na seção Ágora, retomamos o evento ocorrido em agosto de 2022, no Departamento de Psicossomática Psicanalítica do Instituto Sedes Sapientiae, que recebeu Christophe Dejours apresentando o tema "A Clivagem, entre a Violência e a Sublimação". A partir de sua apresentação, convidamos nossos debatedores a problematizar e discutir o circuito da violência, bem como refletir sobre o trabalho analítico de perlaboração dos sonhos. Fomos agraciados com reflexões teórico-clínicas muito pertinentes e sensíveis das colegas Eliana Rache, Heloisa Antiori e Maria Elisa Labaki.

Por fim, em Resenhas, contamos com a do livro Sabina Spielrein: Uma pioneira da psicanálise, de Renata Cromberg, escrita por Eloisa Tavares de Lacerda. O segundo volume da coletânea de três volumes relata desde experiências pessoais e profissionais, como o acolhedor diálogo com o "pai da psicanálise", até reflexões teórico-clínicas voltadas para a primeira infância. Uma pesquisa profunda e ao mesmo tempo analítica resgata essa magnífica autora.

A segunda resenha, escrita por Shaienie Lima Longano, é sobre o belo e incômodo livro A filha perdida, de Elena Ferrante, que narra a história de uma maternidade não compreendida, ou legitimada, em sua complexidade, contradições e paradoxos, o que leva ao estranhamento e despedaçamento da protagonista-mãe.

E assim foi composto o número 4!

Boa leitura!


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ano - Nº 4 - 2022
publicação: 26/11/2022
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