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TEMA

A circulação da violência na terceira tópica



Proponho-me a discutir uma das perguntas do texto disparador: Como o sujeito, na situação de violência, pode passar da condição de vítima a carrasco? E qual a possível saída para ela?

Em nosso encontro presencial com Cristophe Dejours, em agosto de 2022, o autor nos apresentou o conceito de clivagem no campo da Psicossomática Psicanalítica e sua relação com a violência. Pretendo desenvolver este tema, baseando-me nos aspectos da circulação da clivagem na terceira tópica.

Dejours defende a posição teórico-clínica de que, ao irromper no sujeito, a violência acontece não por se tratar de uma identificação com o agressor, mas por submissão a ele. Pela impossibilidade de diferenciar-se, o sujeito submete-se ao agressor por ódio e medo, tornando-se também violento para ser reconhecido pelo outro.

uma diferença em relação à identificação; o sujeito submete-se, buscando ser reconhecido para experimentar o sentimento de estar vivo. Em oposição a isso, poderia ocorrer a experiência do vazio, o medo de deixar de existir e um apagamento da vida.

Dejours (2019a) chama de terceira tópica, ou tópica da clivagem, a uma teoria sobre a clínica da descompensação, sustentando também uma posição sobre a clínica da estabilidade da clivagem, ao falar da submissão como “solução” elaborada para o risco de uma crise psicopatológica. Sobre a submissão, ele nos diz ser uma forma calma de alienação, na qual o sujeito é habitado pelo desejo do outro, em que o conflito parece ausente ou ultrapassado.

Dejours segue assinalando a vitória do domínio exercido pelo outro sobre o sujeito, como se tivesse parado de lutar e passasse a ter uma vida desabitada. Esse processo ocorre sem alarde. Aqui, trata-se de uma clivagem estabilizada, afastando os conflitos intrapsíquicos e transferenciais, porque é o inconsciente amencial que está silenciado. A clivagem instaura no aparelho psíquico uma separação radical.

A teoria da terceira tópica sugere que ficará proscrito o conteúdo relacionado com a violência do adulto sobre o corpo da criança, podendo ocorrer que partes do corpo não sofram subversão libidinal, porque algo da realidade, que é sempre o outro, chega sob a forma de excitação. Todo esse transbordamento de excitação vinda do adulto ficará emaranhado na formação do psiquismo, criando uma desestabilização ou até uma ruptura do eu em vias de formação, ameaçando sua integridade psíquica. 

Citando o conceito de LaPlanche (1988) da teoria da sedução generalizada, Dejours disse que a criança tentará traduzir o inconsciente sexual adulto nesse encontro de corpos. Quando não consegue traduzir todas essas mensagens que chegam como violência do adulto sobre ele, esse psiquismo incipiente sofre excitações que poderão criar como que uma ilha inabitável, proscrita, matéria-prima do inconsciente amencial, que usará a mesma via de descarga da filogênese, uma função diferente do inconsciente sexual recalcado.

A capacidade de pensamento da criança ficará, assim, comprometida e contaminada por toda essa influência que ela não pode traduzir. Essa desestruturação do pensamento e do eu pode gerar experiências de confusão mental. Os restos não traduzidos do outro, resíduos da pulsão de morte, se farão representar no corpo, dificultando a formação da singularidade sexual, podendo ocorrer falhas na instauração do circuito simbólico, em que o corpo erótico estaria como que mutilado.

Não há circulação direta entre o inconsciente sexual e o amencial; se aceitarmos a hipótese da terceira tópica, por definição, a clivagem consiste exatamente em garantir o jogo simultâneo das duas partes, uma à revelia da outra.

Como consequência de todo esse processo, essa sobrecarga de excitação poderá estagnar o agir expressivo da criança, para onde toda moção pulsional é dirigida e espera ser recebida por um outro. Se o agir estiver impedido, a cólera poderá não ser expressada, mas passar para uma violência atuada.

De outro modo, frente à expressividade dos movimentos do corpo infantil, o adulto poderá experimentar sentimentos de cólera, asco, rejeição, aversão e ódio pelo que também está proscrito nele, quando, ao ser solicitado a exercer cuidados, poderá surgir uma aversão por excitação no seu próprio corpo, que ele não consegue traduzir. Como saída, utilizará a via da descarga, reagindo com comportamentos violentos, inclusive com agressões físicas, estupro ou até infanticídio.

A manifestação sexual inconsciente do adulto poderá criar na criança uma dor e um medo, estagnando a tradução desta mensagem, o que, além do recalcamento, impedirá qualquer tipo de rastro, instalando-se a proscrição, que criará uma zona fria, atrofiada, mutilada, fora da dinâmica da sedução. Essas crises evolutivas propiciam o aparecimento de um desequilíbrio psicossomático, podendo impedir a pulsão de constituir-se, além de aniquilar o trabalho de elaboração que desenvolveria sua subjetividade.

A dramaturgia da cólera é um elemento determinante e insubstituível na relação com o outro. Será a maneira como os pais brincam com a cólera na criança que determinará a estruturação e o modo de apresentá-la expressivamente quando adulto. Se ela não ficar proscrita em seu psiquismo, poderá manifestar-se em uma dimensão psicodinâmica mais elaborada. O adulto deverá adotar comportamentos de cuidado, ternura e paraexcitação para ir ao encontro desse corpo proscrito em busca de unidade e integração.

Dejours (2019b) nos apresenta as seguintes manifestações não patológicas do inconsciente amencial: sublimação, realização pulsional pela percepção, intrincação apaixonada e perlaboração pelo sonho. Escolhi apresentar esta última como resolução e possibilidade de saída desse impasse.

O pensamento perlaborativo, apoiado em um corpo erógeno, habitado, engajado e vivo, apresenta-se como saída não patológica para que haja a subversão libidinal iniciada na infância a partir do corpo biológico, erogeneizado pela mãe em seus cuidados com ele.

Tanto a agressividade como a moção amorosa colocarão em cena esse corpo, agora sexualizado, que surgirá de um pensamento mobilizado e engajado na relação com o analista, via neurose de transferência.

 Quando partimos de um universo concreto, árido e pouco simbolizado, cabe-nos, como analistas, manejar essa relação em um processo de paraexcitação, para introduzir, a posteriori e gradativamente, a possibilidade de enfrentamento e confrontação de partes que estavam proscritas.

Como resposta à estimulação da zona traumática, a subjetividade fica comprometida e retirada, como se o corpo deixasse de sentir a si mesmo, podendo perder seus limites, porque o erógeno se extinguiu, abrindo caminho para um início de dissociação.

Essa crise está sob o efeito do inconsciente proscrito, anestesiado, manifestação da pulsão de morte como processo radical de desligamento, com ameaça de dissociação, ruptura da clivagem, desorganização e descompensação. Os efeitos do inconsciente não recalcado (ou proscrito) sobre o eu manifestam-se no retorno de comportamentos não sexuais, em uma grave crise de identidade.

Dejours (2019b) substituirá o conceito de forclusão (ou foraclusão) por proscrição, indicando o recalcamento como a diferença fundamental, referindo-se ao que não foi traduzido pela criança das mensagens emitidas pelo adulto.

O sujeito pode tornar-se apático, aumentando sua angústia de perder o contato com a própria subjetividade e com o outro, que cede lugar a um acesso de raiva contra si mesmo ou gera ideias violentas de automutilação ou suicídio. Essa passagem à ira tem relação direta com experiências de perda de contato, de vínculo, em que o outro é tido como responsável. Seguindo seu fluxo, essa angústia de perder-se ou perder o outro pode resultar em uma confusão mental.

Quando o sintoma impede a continuidade do trabalho de elaboração das sensações experimentadas no corpo, como obstáculo à subversão neste encontro intersubjetivo, o analista deverá propiciar que surja, na transferência, o agir expressivo endereçado a ele, e que faz parte do corpo erótico do paciente. Dessa forma, poderemos ter acesso ao que foi anteriormente imobilizado e barrado em certas funções de seu corpo e que deveria ter sido endereçado como expressão afetiva. Segundo Dejours: “a sequência do trabalho de perlaboração não cabe ao analista, esse trabalho é próprio do paciente” (DEJOURS, 2019b, p. 203).

Todo sofrimento, além de corporal, é uma limitação do potencial erótico aprisionado no sujeito. Seja qual for a origem do sintoma, haverá uma exigência de trabalho imposta ao psiquismo em sua relação com o corpo, exigência que o paciente submeterá transferencialmente ao analista, para que ele o acompanhe neste trabalho: “O sintoma é exigência de trabalho, cuja forma mais refinada é a perlaboração” (DEJOURS, 2019b, p. 210).

Esse trabalho só será assimilado subjetivamente, e repatriado pelo paciente, quando ele recuperar sua capacidade de sonhar, de brincar, buscando através do desejo suas atividades fantasmáticas. A fonte de saúde situa-se na capacidade de habitar-se afetiva e sensualmente, experimentando a si mesmo de forma intensa, por amor ao seu próprio corpo. É através da subversão libidinal que transformamos o biológico em erógeno, deixando, assim, de ter ameaçada nossa integridade psicossomática.

“Só a análise permite voltar aos rastros da sedução originária da criança pelo adulto para encontrar o engenho da sexualidade infantil que está, sem dúvida, no princípio do poder da vida de regenerar a si mesma(DEJOURS, 2019a, p. 32).

Se tudo o que está proscrito puder ser repatriado nesse processo que a relação psicanalítica promove, o sujeito, gradativamente, integrará aspectos que anteriormente irrompiam do inconsciente amencial, invadindo o ego.

Esse misto de ódio a si mesmo e ódio ao outro, com atos brutais de violência associados à experiência patológica de um gozo arcaico, irrompe para que o sujeito possa sentir-se vivo.

O desejo de ser amado pelo adulto imprime esperança em seduzi-lo, propiciando a quem está tão capturado pelo sofrimento e pela dor adquirir amor por si mesmo. É dessa imensa complexidade que somos constituídos e estabelecemos nossas relações.


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ano - Nº 4 - 2022
publicação: 26/11/2022
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Autor(es)
• Heloisa Antiori
Departamento de Psicossomática Psicanalítica do Instituto Sedes Sapientiae

 Psicóloga, psicanalista e membro do Departamento de Psicossomática e do Projeto de atendimento e pesquisa em psicossomática psicanalítica da clínica do Instituto Sedes Sapientiae. Especialização em Psicossomática Psicanalítica pelo Instituto Sedes Sapientiae

Referências bibliográficas

DEJOURS, C. Primeiro o corpo: corpo biológico, corpo erógeno e senso moral. Porto Alegre: Dublinense, 2019a.

DEJOURS, C. Psicossomática e teoria do corpo. São Paulo: Blucher, 2019b.

LAPLANCHE, J. Teoria da sedução generalizada. Porto Alegre: Artes Médicas, 1988.

 


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