por Esio dos Reis Filho
Um dia destes, uma pessoa conhecida comentou comigo que tinha ido ver o filme “Brokeback Mountain” com certa apreensão, pois temia que o filme, cantado em prosa e verso como tão bonito (oito indicações para o Oscar), lhe despertasse sentimentos predominantes de repugnância, de nojo. Afinal, era o filme dos cowboys gays!
Trata-se de uma pessoa perfeitamente inserida no mundo atual, professora universitária, casada, duas filhas adultas jovens, e bafejada, como todos nós, por certo grau de homofobia que paira no ar em nossa sociedade. Refiro-me àquelas situações corriqueiras com as quais nos deparamos tantas vezes: “meu Deus, ele é bicha...”, “olha a cabeleira do Zezé, será que ele é...”, “aquele viado filho da puta”, etc., etc. Tais reações fóbicas não se restringem à homossexualidade, mas também a outras manifestações da sexualidade colocadas no rol das perversões, por ex., voyerismo, exibicionismo, fetichismo, etc, algumas repelidas com mais condescendência, outras com muita severidade, como a pedofilia.
Pois é, aquela tal pessoa completou seu comentário dizendo: fiquei muito surpresa, realmente o filme é lindo, tratando-se apenas da história de um grande amor entre duas pessoas, que poderiam ser dois homens, duas mulheres ou um homem e uma mulher. O aspecto homossexual é secundário, perdendo relevância frente à intensidade daquela paixão.
Esse episódio me levou a tentar compreender melhor de que trata o filme, usando o instrumental conceitual psicanalítico.
O filme consegue, sem que estejamos muito conscientes disso, debater com extrema sensibilidade, clareza e honestidade, uma das questões básicas das vicissitudes da nossa constituição como sujeitos pertencentes a uma cultura e do preço que devemos pagar por esse pertencimento. A moeda utilizada nessa transação é a abdicação da satisfação de alguns dos impulsos que trazemos conosco ao nascer e que seriam disruptivos para a organização da sociedade, se não forem devidamente controlados, abafados, reprimidos, recalcados. Se atentarmos para as formas como as crianças buscam prazer na primeira infância, veremos que, desde o começo, essa busca é desregrada e caótica: o menininho “brinca de médico” com o priminho e a priminha e todos gostam muito disso; tomam banho juntos, sem roupas; apostam quem faz xixi mais longe; adoram sacanagens com seus pipis e com o dos outros; etc, etc. À medida que a criança vai crescendo, ela vai sendo coagida, desde o mundo externo (censuras, castigos, etc.), ou desde seu mundo interno (culpas, inibições, etc.) a ir abandonando os prazeres considerados “inconvenientes” pelo seu meio social. Enfim, vai tendo que reprimir os aspectos da sexualidade infantil que poderiam ser vistos como perversos se persistirem nos adultos, para ir sendo aceita e encontrando seu lugar no mundo.
Penso que o eixo básico do filme gira em torno dessa questão: como esse processo de constituição do “eu” se deu com dois sujeitos, o Ennis Del Mar e o Jack Twist, numa sociedade na qual o sentimento generalizado de homofobia era muito intenso (o meio-oeste americano) e de que maneira tal constituição veio a determinar as suas escolhas amorosas.
O pai do Ennis, quando este era um menino, fez questão de levá-lo para ver o que tinha ocorrido com um sujeito do local que tinha se permitido prazeres homossexuais: fora arrastado pelo pênis, até este ser arrancado e ele ser morto. Uma experiência brutal como essa, para uma criança, tem dois efeitos contraditórios: de um lado, infunde um horror aos impulsos homossexuais, fortalecendo a repressão dos mesmos; de outro, frisa, sublinha, dá muita significância a esses impulsos, dificultando a repressão. Esse pai morre e o Ennis adolescente passa a ser cuidado pelos irmãos, estes talvez com menor furor repressor e menor horror à homossexualidade. Assim, ajudado por esses irmãos provavelmente de uma forma mais “suficientemente boa” que por aquele pai brutal, o Ennis, ao se tornar adulto, consegue uma razoável repressão de seus impulsos homossexuais, namora com a Alma, elegendo-a como seu objeto heterossexual e pretendendo casar-se com ela. Alguns meses antes do casamento, ele encontra trabalho como pastor de ovelhas em Brokeback Mountain, um lugar deslumbrante e paradisíaco.
As informações sobre a história de Jack nos chegam mais no final do filme. Ele era filho único de uma família extremamente rígida e conservadora (“eles morrerão lá”), na qual imperava um pai duro e árido de sentimentos, que cospe quando se refere a aspectos homossexuais do filho. “Ele nunca me ensinou nada, nunca me deu nada”, isto é, esse pai não tinha condições psíquicas de se oferecer como modelo identificatório para esse filho. Sua mãe era o pólo amoroso da relação, capaz de sentimentos, porém subjugada e tolhida por esse pai gélido. Talvez para o Jack tenha sido mais tumultuada e menos eficaz a repressão dos seus aspectos homossexuais (ele não teve a mesma “sorte” do Ennis, que perdeu o pai). Seus impulsos homossexuais permaneceram mais à flor da pele, juntamente com uma maior identificação com a capacidade da mãe de expressar amor.
Penso que tais antecedentes eram responsáveis por arranjos mentais razoavelmente diferentes entre o Ennis e o Jack, no que diz respeito às vias pelas quais cada um deles poderia dar vazão aos seus impulsos amorosos.
Para o Ennis, a via homossexual estava lá, mas obscurecida, minimizada, e a via heterossexual chegou a se constituir de uma forma mais consistente. Ele estava certo de conseguir estruturar uma vida com mulher e filhos (“vou me casar com a Alma”), adaptado, enquadrado nos “tem ques” do seu meio social (não podemos matar uma ovelha para comer, estamos aqui para cuidar delas, não para matá-las, eu fico com os feijões mesmo). Esse enquadramento talvez até o ajudasse a completar a repressão dos remanescentes impulsos homossexuais, protegendo-o, assim, do terrível fantasma da morte por arrancamento do pênis, ou algo equivalente.
Já com o Jack, o arranjo mental era diferente. A via homossexual parece ter permanecido bastante significativa para ele e a heterossexual, muito fragilmente estruturada. Ele não foi até a Lureen; ela teve que vir até ele e dizer: ”o que espera, cowboy, um convite para acasalamento?” Ela o forçou a usar a frágil via heterossexual e ele se deixou levar por ela, talvez aguardando que dessa forma a via homossexual fosse se fragilizando e ele viesse a se adequar à cobrança do seu meio familiar e social.
Então, com esses arranjos mentais acima descritos, o Ennis e o Jack se vêem, por conta do trabalho de pastores de ovelhas, juntos, isolados do mundo, afastados da sociedade que tenta enquadrá-los, vivendo durante meses num local isolado, a Brokeback Mountain, onde reinava a sensação de total independência do mundo: “se as provisões se perderam, a gente mata um alce e nossas necessidades serão supridas por nós mesmos. Faremos de acordo com nossos desejos e assim eles serão satisfeitos”. É a própria imagem do Jardim do Éden, onde “nada me faltará”.
Os dois homens, atraentes e agradáveis um para o outro, vão partilhando de uma intimidade física cada vez maior e de uma proximidade emocional progressiva.
Os impulsos amorosos entre os dois vão se incrementando até que o Jack, cuja via homossexual era mais acessível que a do Ennis, força este último a abraçá-lo. Seria como se ele dissesse: “aqui não temos que nos submeter a nada, deixe de se apegar à via heterossexual como única possibilidade de descarga dos impulsos amorosos; pode usar a via homossexual; eu já a estou usando; eu posso amá-lo e você pode me amar”.
O Ennis se desorienta por alguns instantes, titubeia, mas acaba aceitando o convite do Jack. Consuma-se então a primeira relação sexual-amorosa entre os dois homens.
A partir daí, os dois se entregam à vivência desse apaixonamento de forma totalmente livre. Brokeback Mountain assume, então, a conotação de um pequeno paraíso, isolado do mundo, onde os desejos originários, não submetidos à repressão, podem vir à luz e possibilitar um gozo sem restrições. Como eles estão fora do mundo, não têm que pagar o preço em sacrifício de prazer para que possam ser aceitos por esse mundo. Eles estão então, “alienados” e mergulhados num gozo sem limites, próprio da “alienação”.
Entretanto, chega o tempo de voltar. As ovelhas devem ser trazidas de volta e eles devem descer da montanha e entrar novamente no mundo, com todos os seus “tem ques”. No último momento desse retorno, eles se agridem para que possam se separar e cada um segue seu caminho.
Ennis reativa sua via heterossexual de obtenção de prazer, temporariamente suspensa, casa-se com Alma, tem duas filhas e uma vida razoavelmente adaptada ao meio social, com alguns prazeres e muitos dissabores e dificuldades próprios de uma vida comum. Atinge aquele estado de “infelicidade normal”, que é, talvez, o melhor a que podemos chegar neste “vale de lágrimas”...
Jack se deixa ser seduzido por Lureen, filha de um rico empresário, passa a viver economicamente bem, tem um filho e suporta, com um gosto amargo na boca, o casamento com a linda e rica donzela casadoira, de cujo pacote faz parte um sogro insuportável.
Esse estado de coisas permanece assim por 4 anos.
Coerentemente com sua estrutura mental menos adaptada, Jack é o primeiro a romper com esse incolor, inodoro e insípido arranjo emocional, que só poderia ser sentido dessa forma desde a comparação com as vivências intensas e fantásticas que tinha tido no “paraíso”. Escreve para o Ennis, dizendo que vai visitá-lo. Esperando tal encontro, Ennis entra num grande tumulto mental. Ele se vê, subitamente, subjugado pelas lembranças daquelas vivências de amor e pela possibilidade de revivê-las.
O reencontro dos dois se converte numa ânsia amorosa devoradora, deixando-os totalmente subjugados pela explosão da via homossexual, represada durante tantos anos.
Passado o inicial “furor de gozo” daquele momento de reencontro, eles se dão conta de que tudo aquilo não poderia ser vivido dentro do mundo real, mas apenas no “paraíso”, onde estão suspensas as repressões cobradas pela sociedade.
Decidem, então, largar tudo para viver alguns dias de “pescaria” em Brokeback Moutain.
A partir daí, pelos próximos 15 anos, eles se encontram periodicamente, deixam o mundo real e se refugiam por algum tempo no isolamento da montanha, onde podem viver intensamente a sua paixão.
Durante todo esse tempo, Jack tenta convencer Ennis a construir uma vida juntos, descendo do “paraíso” e aterrorizando no mundo real, onde cuidariam de uma pequena granja e seriam felizes para todo o sempre. Isto é, por estar menos subjugado às leis do mundo, à repressão, ele acredita ser possível viver a ligação amorosa-sexual proibida, à revelia dessas leis. Ennis, no entanto, mais sujeito às repressões, tendo tais leis mais consistentemente internalizadas, recusa sempre essas propostas, magoando muito o Jack (“tenho que ficar com minhas filhas neste fim de semana”). Jack, aparentemente, não se deu conta da relação entre a paixão proibida e a montanha-paraíso, não entendeu quando Ennis disse: “o que tivemos acaba aqui”. Talvez nem o Ennis tenha entendido, mas apenas seguido os imperativos das leis culturais internalizadas em seu “eu”. Tal frase foi dita pelo Ennis em referência apenas à primeira relação deles, no entanto parece que o sentido dela era muito maior, abrangendo toda a vida amorosa dos dois.
Ao cabo de 20 anos de historia desse amor, Jack desiste de tentar convencer o Ennis e se junta a outro companheiro, realizando então, com ele, seu desejo de viver com outro homem e dedicando-se a revitalizar o velho rancho onde vivem seu pai e sua mãe. A via homossexual de possibilidade de vínculo amoroso triunfou em Jack e relegou a via heterossexual a um plano quase insignificante.
O caminho do Ennis foi diferente. Preservou a relação amorosa com Jack engavetada em sua mente, tentou uma nova relação heterossexual com uma garçonete, que não progrediu, deu certa atenção às filhas, agora adultas, e permaneceu divorciado, sozinho, meio perdido, sem rumo e sem um projeto de vida que lhe permitisse ter, minimamente, uma expectativa futura de felicidade.
A essa altura dos acontecimentos, estando nessa lamentável situação de vida, Ennis escreve ao Jack, após meses de resistência, tentando marcar novo encontro para novembro na montanha-paraíso e descobre, horrorizado, que ele havia morrido. Quando fala com a mulher de Jack para saber o que ocorreu e esta lhe relata o “acidente” no qual ele perdeu a vida, imediatamente Ennis se dá conta de que ele tinha sido assassinado pela sua homossexualidade, como aquele assassinato horrível mostrado por seu pai na sua infância.
Jack desafiou o mundo. Tentou viver no mundo real os prazeres aos quais todos os outros haviam renunciado, à custa de muita elaboração mental, para terem o direito de estar ali, como cidadãos aceitos, valorizados, admirados pela sua hombridade e capacidade de renúncia aos prazeres. Não importa se, como os pais do Jack, vivessem numa situação de profunda infelicidade.
Despertou a fúria invejosa dos que o rodeavam e foi por eles assassinado. Dessa forma, deixou de incomodá-los.
O filme é ambientado em 1963. Entretanto, acredito que seu tema seja absolutamente atual. Tal questão não está resolvida no mundo de hoje. Poucos anos atrás, na Praça da República, em plena capital de S. Paulo, um homossexual foi espancado por “skin-heads” até a morte por estar de mãos dadas com seu companheiro.