Se você ainda não assistiu Estamira então vá! Tanto do ponto de vista da plasticidade como seu conteúdo é uma obra de arte, uma obra prima. São duas horas de magia, esplendor e de horror. Não se deve perdê-lo, principalmente no cinema, onde as cenas ganham a amplitude de um mundo que nos estarrece. E que mundo seria esse? É o mundo de Estamira. E como penetramos nele? O Sr. Marcos Prado nos levará pela mão. A cena inicial, num preto e branco envelhecido, já nos revela esse caminho. A câmera adentra no barraco – mundo – mente de Estamira e a partir daí nos é revelado com toda nitidez essa dor. Vai nos contar a história de Estamira, narrada por ela mesma, trágica, brutal, que a levou à loucura. No périplo trilhado por ela, perde o pai aos dois anos de idade, a mãe enlouquece, violentada aos nove, prostituída aos doze, dois casamentos desfeitos e um estupro aos quarenta, foi o suficiente. Foi demais, foi O a mais, que ultrapassou os limites do seu corpo e da sua mente. Estamira “resolveu” abandonar o mundo real e se recolheu em si. O seu mundo desmoronou. Sua fé foi destruída e a sua vida destroçada. Estamira é um zumbi. Estamira sucumbiu. A loucura foi a sua única saída compatível diante de tanto sofrimento.

Estamira fala, fala, mas não responde a nenhuma questão. Ela também não está representando, simplesmente está se apresentando de uma maneira nua e crua diante das câmeras, e em assim sendo, não é passível de interpretação. Ela não nos olha, o seu olhar, sua mirada está voltada para dentro. Ela é uma intérprete perfeita desse mundo interno em ruína. De uma maneira direta e contundente ela fala desse mundo em que mergulhou e lá resolveu ficar. Estamira está vulnerável, num fio de navalha, na beirada do universo são. Não tendo como voltar, ultrapassa-o. Mundo este que nos é revelado de uma maneira tão brutal que nos impacta, tirando-nos o fôlego. Nunca tinha me deparado, no cinema, com a loucura em sua concretude. Já assistimos filmes diversos sobre o estado de loucura como em SPIDER de David Cronenberg, ou INQUILINO de Roman Polanski, mas lá dentro de nós sabemos que o ator está representando o seu papel, e isso nos deixa mais tranqüilos para dizermos a nós mesmos que se trata somente de um sonho, de uma ficção e assim podemos voltar para casa aliviados e colocar nossa cabeça no travesseiro e dormir. Alguém de vocês dormiu após assistir Estamira? Eu não. Ficamos pasmos, pois o filme (documentário) é um mergulho profundo no nosso âmago onde a loucura faz morada. É um olhar crucial no caos que nos espreita de dentro e que busca emergir na vigília, mas que, no entanto, ainda temos força para lançá-lo em direção aos nossos sonhos (pesadelos). Estamira não conseguiu. Desorganizou-se. O seu mundo mental ruiu. “O além do além transborda”, como ela freqüentemente dizia. O transbordamento se deu, pois Estamira viveu sempre neste além do além. Transbordou e invadiu todo o seu ser, como Katrina o fez em New Orleans. O mundo destroçado e virado pelo avesso. Lixo e caos por todo o lado. O mundo virou um lixão e Estamira o encontrou. Identificação perfeita entre o caos interno e o externo. Ambos mundos estão destroçados. Estamira é o lixão fétido e caótico. O mundo revolto sem fim e sem esperança. Não há restauração possível.

Ah! Estamira que dor! O clamor da sua angústia é expresso no seu ódio e no seu desamparo. Foi um grito no deserto. A sua ira se alastrou sobre a terra.

O horror é expresso com tanta beleza e deslumbramento que nos encanta. Ficamos todo o tempo fixados no lixão – loucura de Estamira. Os raios do sol nascente ou poente ou a tempestade torrencial caindo sobre a face-lixão de Estamira estampa a beleza em sua tragicidade. Ficamos inebriados por tanta beleza. Como agüentaríamos o peso dessa tragédia se não fosse através da genialidade do seu diretor que teve o mérito de retratar com beleza ímpar o horror, a desintegração e a catástrofe que desabou sobre Estamira?. O lixão como Deus ex-máquina a contém, protege-a e a acolhe. É a sua morada definitiva. O lugar onde os urubus po-voam.
O que seria dela se não o encontrasse? Onde estaria Estamira? Alguém sabe a resposta?


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Estamira – realidade ou ficção esta é a questão
por Ede de Oliveira Silva