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Reflexões sobre "Paixões que alucinam"

por Ede de Oliveira Silva

 

Samuel Fuller tem uma vasta filmografia principalmente de filmes considerados B (1). Dentre os mais de vinte filmes realizados, três merecem destaque pelos temas que foram abordados tais como: sobre a II Grande Guerra Em Agonia e Glória (The Big Red One/1980), sobre a pedofilia e a prostituição feminina em Beijos Amargos (Naked Kiss/1964) e sobre a ambição desenfreada com final trágico em Paixões que Alucinam (Shock Corridor/1963). Este último é o que nos interessa e vai servir de fio condutor para os comentários que vão se seguir. O filme já no início, quando ainda está mostrando os letreiros, tem como paisagem de fundo, um longo corredor, chamado rua, pouco iluminado, ladeado por várias portas e onde não se vê o fim. É lá que as coisas acontecem. Não seria esta a via privilegiada para se adentrar na loucura do inconsciente? (2). É por esse caminho que o diretor vai nos levar para contar a história de Johnny Barret e seu desfecho trágico. Não me surpreendi com a abordagem desse assunto tão inquietante, pois já tinha assistido àquele outro que tratava de um tema tão polêmico e tabu como da pedofilia que, para a época do seu lançamento em uma cultura tão conservadora como é a americana, não foi bem acolhido.
A história do filme em questão se centra em um jornalista mediano que planeja a todo custo, juntamente com o seu editor, a consagração pelo maior prêmio do jornalismo americano, o prêmio Pulitzer. Para isso não avaliam os meios que têm para utilizar e não medem as conseqüências de seus atos. O objetivo final é a única meta a ser alcançada, independente dos meios que tenham que usar para atingi-lo. E qual seria a maneira pela qual eles atingiriam o pico desse Everest?
Sabendo que houve um assassinato numa casa de loucos arquitetam um plano no qual o jornalista se passaria por louco para ser internado nessa instituição, cuja finalidade era extrair dos loucos, ali internados, a informação sobre o assassino. Esta informação lhes daria condições de escrever uma reportagem-história que os levassem ao pedestal desejado. Para isso é convidado um psiquiatra famoso para instruí-lo e ensiná-lo a incorporar este papel através de um longo treinamento e que faz obsessivamente. É forjada uma história sobre uma suposta tentativa incestuosa com sua irmã, que, na realidade, é interpretada pela sua noiva, mesmo contra vontade dela. Travestido de louco furioso e incestuoso faz uma representação perfeita e convincente do seu papel e é internado. Com o passar do tempo a realidade da sua sanidade começará a ser minada pela insanidade circundante. Ele está ilhado num mar de loucuras! Em seu percurso investigatório (analítico?) entra em contato com vários tipos de loucura tais como loucos furiosos e delirantes, ninfomaníacas, neuróticos de guerra, enfermeiros sádicos e até um psiquiatra cujo nome é Dr. Cristo. Tudo isso nos transmite um verdadeiro clima onírico.
O fim trágico do jornalista arrivista Johnny Barret nos surpreende já que o mesmo estava confiante e seguro respaldado por um treinamento e ensaio exaustivos e cuja representação era vista como perfeita. Algo inusitado ocorreu. O contato direto com a loucura fez ressonância com seus próprios conflitos e neste labirinto de fascínio e horror, sem uma Ariadne que o oriente, ele se perde e não encontra o caminho de volta.
Esta historia funesta me fez associar livremente com duas outras situações. Uma que ocorreu realmente e a outra como condição de possibilidade. A primeira delas nos remete à vida trágica de Friederich Wilhelm Nietzsche (3). Sabe-se que ele aos cinco anos de idade recebeu a terrível notícia da morte de seu pai de uma maneira seca e direta: O teu pai está morto. Um verdadeiro buraco se abriu sob seus pés e não houve mais possibilidade de obturá-lo. Um vazio negro se instalou no seu íntimo. A ausência precoce desse pai e a convivência com sua mãe e uma irmã pela qual nutria um amor muito grande (incestuoso?), deram o contorno do seu caráter. De uma inteligência ímpar ele viveu toda a sua existência atormentada,ao querer decifrar a todo custo, a verdade do ser. Trabalhou e pensou com afinco e sem descanso. O eco daquela notícia trágica recebida aos cinco anos reverberou e explodiu trinta cinco anos mais tarde ao afirmar: “Deus está morto”. A intensa atividade criativa e febril, cujo objetivo era revelar tudo que diz respeito ao humano além do bem e do mal, acabou por minar o seu psiquismo frágil. Vã pretensão! Era o prenúncio de um desmoronamento psíquico que se avizinhava. Em 3 de janeiro de 1889, a coisa se deu, ele sucumbiu e calou-se para o mundo. Já tinha dito o que tinha de dizer. Nada mais lhe restava a não ser mergulhar no seu ser, e nele fazer a sua morada definitiva. Nietzsche ficou nesse estado por onze anos sem dizer mais nenhuma palavra, vindo a falecer aos cinqüenta e seis anos.
Dois arrivistas (Johnny Barret e Nietzsche) e um único fim trágico,o mutismo catatônico irreversível. Ambos estavam sós e enlouqueceram em sua solidão.
A vulnerabilidade deles nos fez refletir também sobre a formação do analista, pois sabemos que, a cada paciente, a cada sessão, entramos pelo mesmo corredor onde eles entraram. Ambos tentaram levar a sua investigação até as últimas conseqüências e sucumbiram.Que força demoníaca os impulsionou e os levou a transpor seus limites? (4) O seu universo simbólico não garantiu a realização das tarefas almejadas. Eles ultrapassaram o limite tênue da sanidade e caíram no abismo da loucura.
Para não sucumbirmos como eles o que precisaríamos fazer? Trilhar um longo caminho. Que longo caminho seria esse que faz parte da longa formação interminável do analista? Primeiro de tudo não deveríamos e não teríamos condições de enveredar por essa aventura sozinhos. Precisamos de um outro que nos conduza e que nos acompanhe nesta viagem insólita cujo destino não é conhecido e que nos aponte, nos mostre e nos dê sentido aos enigmas que nos habitam. É um verdadeiro mergulho na nossa insanidade, porém amparado de perto por um outro minimamente preparado para tal empreendimento. Só um longo percurso como este vai nos criar condições de possibilidade de chegarmos ao destino desejado. Para isso, três caminhos se abrem nessa longa jornada. O primeiro e o mais importante é a análise pessoal, longa e bem conduzida, sem a qual nunca poderíamos alcançar a condição de analistas. Os outros dois percursos, isto é, o teórico e o prático, são auxiliares deste caminhar, Todos os três fazem parte de um tripé fundamental e indispensável para a formação porém, só o primeiro nos ensina a escutar de uma maneira diferente este mundo de loucura que nos habita e que, freqüentemente, ecoa nos nossos ouvidos; só o primeiro nos faz mergulhar no nosso próprio inconsciente dando condições, dentro do possível, de voltar à tona sãos e salvos dos perigos; só o primeiro nos faz discriminar o canto lírico das palavras do canto de sereia que clama dentro de nós; só o primeiro nos capacita a pegar a mão dos nossos pacientes e caminhando lado a lado, dar-lhes uma certeza, mesmo que relativa, que essa viagem terá um retorno.
De um pequeno Édipo que nós fomos, nos transformamos em um Laio, de um Dante que somos obrigados a ser que nos transformemos num Virgílio, mesmo sabendo que nessa viagem às profundezas da alma, por mais preparados que nós estejamos sempre sairemos dela chamuscados. Motivo mais que suficiente para que a nossa formação psicanalítica nunca termine.

BIBLIOGRAFIA

1- EWALD, R. Dicionário de cineastas . Cia Ed. Nacional. 1ª ed. 2002. Pág 269/70

2- FREUD, S. Interpretação dos sonhos. Obras completas. Vol. 5 e 6. Ed. Imago, 1979.

3- SAFRANSKI, R. Nietzsche – Biografia de uma tragédia. Ed. Geração Editorial, 2001.

4- FREUD, S. Além do principio do prazer. Obras completas. Vol. 18. Ed. Imago, 1979.

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