Narcisismo

por Telênia Maria de Senna Hill

 

Algo a ver com um encontro inesperado. De repente, algo a ver... com o olhar. Algo a ver com encontrar, olhar e surpreender-se, de repente... Algo a ver com olhar e ver refletida... imagem. Algo a ver com uma superfície que reflete... luz. Espelho d'água, espelho... que reflete a luz da imagem. Ar, corpo com os pés na terra. Algo a ver com vida... refletida. Algo a ver com olhar e ver pela luz no ar uma imagem... reflexo. Encontro inesperado... encanto.

É preciso reconhecer-se para reconhecer... todo. Algo a ver com ser percebido, perceber e perceber-se, dar-se conta de um tudo, de um todo, uma imagem... Eu... encantado. Quase toco, dentro, preciso de limites precisos. Conter-me, só... Eu. Paro, para olhar e ver a imagem que me contém, vendo pela primeira vez quem pareço ser. O tempo que é, só, meu. O outro que eu olho me olha... encantado. Asseguro-me de que meu olhar vê e certo, pois há outro que me assegura de seu olhar para mim. Assim me constituo, pelo olhar... eu, pelo olhar... meu, pelo olhar do outro... para mim. Estou ali onde creio me ver, e onde me vejo olhado. Pareço ser.

Por que terá Freud tomado o nome do personagem do mito para identificar um conceito fundamental de seu arcabouço teórico? Das várias versões, ele escolhe aquela em que um jovem e belo mancebo, ao dar com sua imagem refletida em um espelho d'água, cativa-se dela ao ponto de enamorar-se e desejar ir ao seu encontro, com ela fundir-se. Afoga-se em si ou, ao mergulhar em si, renasce como uma bela flor, de inebriante perfume?

Fui ao livro Mitologia Grega , de Junito de Souza Brandão (1987, vol. II, p. 173, 174): “Comecemos pela etimologia. Nárkissos , o nosso Narciso, não é palavra grega. Talvez se trate de um empréstimo mediterrâneo, quem sabe, da ilha de Creta. De qualquer forma, do ponto de vista etimológico, temos o elemento nárke que, em grego, significa entorpecimento, torpor, cuja base deve ser o indo-europeu nerg, encarquilhar, estiolar, morrer. (...) Relacionando-se, depois, com a flor narciso , que era tida por estupefaciente, nárke será a base etimológica de nossa palavra narcótico e de toda uma vasta família com o elemento narc-. (...) várias associações se poderiam fazer com a flor narciso: ela é bonita e inútil; fenece, após uma vida muito breve; é estéril; tem um perfume soporífero e é venenosa, tal qual o jovem Narciso, que, carente de virtudes masculinas, é estéril, inútil e venenoso. (...) Narcisos plantados sobre túmulos, o que era um hábito, simbolizavam o sorvedouro da morte, mas de uma morte que era apenas um sono. (...) Uma vez que o narciso floresce na primavera, em lugares úmidos, ele se prende à simbólica das águas e do ritmo das estações e, por conseguinte, da fecundidade, o que caracteriza sua ambivalência morte(sono)-renascimento. Na Ásia, é símbolo da felicidade e expressa os cumprimentos do Ano Novo, isto é, de um ano que sucede ao sono do ano velho.”

Da experiência do caos de si à ilusão do todo da imagem.

Como se descobre em si algo de uma unidade?

Pulsão. Impulso, o que impulsiona, o que pressiona, o que faz trabalhar o psiquismo, o que o cria. É preciso dar curso, abrir caminhos ao fluxo. Prazer de órgão. Descarga em partes, nas partes, zonas erógenas. Cada uma por si, cada uma no seu próprio tempo. Vale tudo, per...ver... são polimorfa. Personagens em busca de um autor. Fora, autores, que olham, tocam, falam o bem(mal?)-vindo, sonham aquele que acabou de chegar. Maturação de sistemas. As coisas vão se ajeitando. Eu desejo, tu desejas, ele deseja o desejo. Todos desejam. A pulsão não pára, move, remove montanhas, insiste. Auto-conserva ou sexualiza? Sexualiza o eu... E agora?

Depois do auto-erotismo, descobrindo os limites que o outro me descobriu, podendo olhar e ver o que o outro me olhou, eu me olho. Assim, o que corria em tantas direções reflui; tudo o que vai, retorna; eu retorno a mim sem ter ido, algo de mim me investe, me veste, todo. Sou um para mim, e todos são um em mim, para mim eu o centro de tudo. Assim eu me constituo, necessariamente, narciso. Preciso da ilusão de ser todo para ver tudo como todos em partes. A pulsão de muitas partes agora me integra, eu me integro a mim, entrego-me. Vivo assim enquanto me permite a vida. Logo o tempo de renunciar para permanecer. Posso ou não, ir, passar, ultrapassar. Sempre com o outro, pelo outro, o outro... em mim. Afogo-me ou desabrocho-me.

Canso... eu. Passa o tempo. O outro passa de si para comigo, quer mais, cansa. O que veio, vai. O que centra, descentra. O que senta precisa caminhar, ir em frente, ser diferente. Posso ou não. E se não me viram, se não me foram nem me tocaram, se nada de mim disseram, senão me sonharam? Ou, se demais tudo fizeram? Fico, enredo que difere, fere. Enredo, permaneço, cativo do buraco vazio onde meu olhar se perdeu... lá onde o olhar do outro não estava. Afogo-me.

Canso...Quero ir, se me deixam. Sofro. Sexual, tudo aquilo o que a pulsão busca, tudo o que o desejo em mim persegue, sempre. Não posso querer... tudo, nem querer a mim... todo. Não posso querer tudo de todos, dois, ela e ele. Não posso... desejo mais que posso. Três de dois... eu. O paraíso perdeu-se, é preciso buscar o dia com o suor do rosto. Sofro, tenho medo, de não mais me ver, belo, no olhar de quem... desejo. É proibido... um, dois, dois em um, um de dois. Frustro-me, se me deixam, só, desejo. Sofro, mas desisto. Lá onde só me vejo o olhar permanece, mas é outro. Ameaçam cortar-me a carne ou deixar-me para sempre, só.

Um, dois, três... Já, lá vou eu, sendo tudo o que me ficou,

cicatrizes do que passou, trago dentro todos,

um, dois... eu... três. Paz.

Meus pais se apaziguam, dentro. Quero ainda ser quem seus olhos brilharam, para sempre. Buscarei, para sempre, ser como fui e me cri perfeito e pleno. Foi-se, uma foice cortou o meu umbigo. Fui ver o mundo do outro lado da cerca. Meus pais estão no olhar que olho para lá de mim. Agora, olho para lá de mim e vejo, dois. Mas vejo mais, muitos parecidos comigo. Quem serão? Desejo vê-los. Desejo tê-los. Quem me dirão? Se os vejo com meus olhos, e os ouço com meus ouvidos, são-me? Talvez não, quero saber. Persigo o eu que foi no eu que desejo ser, com esses muitos que desejo ter... comigo.

Eu ideal... foi, sendo. Ideal de eu, será, em se fazendo, sempre. Como meus pais... Degluto, digiro, giro e... supereu, olhando, medindo, calmo ou irado, observando, querendo mando e desmando, sempre. Se bem afoguei-me, desabrocho-me, mas a custo. Como meus pais, outros olhos que olham por eles, e todos olham por mim. Aprendo a ler a lei de meu povo, culto, as histórias dos laços me vinculam desde há muito, à terra, ao ar, ao fogo, ao mar. Desabrocho-me sendo, renuncio para merecer e ousar o cio, lá, do outro lado da cerca que cerca o que não mais desejo, desejando, sempre.

Narciso fui, necessariamente, infância. Meu eu sexo, objeto de desejo, deles, os pais. Para eles. Mas, cresceu-me a vida e disse: Vai! E eu fui, desejando tudo ainda, dentro, infantil desejo, sempre. A infância se foi. De um , dois, três, fiz muitos, o mundo. Se desejo ainda, infantil ainda, dentro, desejo mais, e obedeço, desobedecendo quando posso, quanto posso. Gozo, mas me contento em gozar como posso. Renunciei para sempre. Paz. Aos pais um aceno. Posso ou não. Fui mas permaneço sendo e, assim, sou, ou, desabrocho-me.

Afogar-se ou desabrochar. Penso nos conceitos de André Green: narcisismo de vida, narcisismo de morte. O narcisismo é constitutivo, momento crucial em que a pulsão sexual toma o próprio eu como objeto de investimento amoroso. Primeira noção de si como um todo? Narciso eu porque valido o narcisismo dos pais projetado. Das pulsões parciais do auto-erotismo à pulsão que investe um objeto superinvestido. Mas é preciso fazer face aos interditos e, na melhor das hipóteses, haver-se com eles, ultrapassar o limite do afogamento. A infância cresce, mas o infantil permanece, desejos recalcados, pulsão que insiste, cisão que resguarda e guarda no inconsciente o proibido.

 

Se ao narcisismo segue-se um percurso edípico possível,

se a criança consegue se lançar para além de Narciso e de Édipo,

leva consigo as marcas e os rearranjos necessários para se fazer outro.

 

Para além do narcisismo, Freud descobriu as pulsões de vida e de morte, restaurou sua dualidade, a oposição de forças que se complementam para girar a vida ou se dissociam para suprimi-la. Como a pulsão de vida chega a predominar? Como o desejo de desejo chega a querer mais que o desejo de não desejo?

Se o eu ideal não der lugar ao ideal de eu, se os pais não forem bem comidos, mastigados, e digeridos, se não restarem como matrizes identificatórias razoavelmente harmônicas, o narcisismo permanecido mata ou maltrata. Afoga em si tudo de si, não permite ver além de si, e do outro não mastigado, não digerido em si, voz de mando que aliena. Obesidade psíquica. Para desabrochar e recender é preciso morrer, fazer morto o rei que teve seu trono. Usar o próprio cetro e transformá-lo em varinha de condão, transformar-se, de rei em sapo. De Narciso em Édipo, de Édipo em ... reinventar-se.

e-mail: telmshill@yahoo.com

 

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