Acompanhamento clínico: um recorte sobre a transmissão da psicanálise e a formação continuada

Cristina Rocha Dias e Maria Veridiana Sampaio Paes de Barros

 

Para pensar a transmissão da psicanálise e a formação continuada, o presente artigo tem como mote inspirador a experiência de acompanhamento clínico no primeiro semestre deste ano.

O AC - Acompanhante Clínico fundamenta-se na proposta de formação continuada do Departamento Formação em Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae e tem como objetivo ser um espaço de pertinência e de reflexão para os alunos que iniciam a formação.

Sua prática se dá com ex-alunos membros do Departamento, selecionados pela coordenadora deste projeto Maria Teresa Rocco, e que se reunem semanalmente em pequenos grupos com alunos do primeiro ano do curso Formação em Psicanálise.

A idéia é que estes encontros funcionem como um lugar de acolhimento e de boas vindas ao nosso Departamento, e que a partir dos textos sobre a técnica psicanalítica possamos discutir pontos que caracterizam esta prática, bem como trocar experiências relativas à clinica.

Mesmo antes de iniciar o acompanhamento dos grupos, já antecipávamos questões sobre a nossa posição, sobre a importância e os riscos da transmissão da Psicanálise.

Como transmitir a Psicanálise e acompanhar os alunos neste contexto específico do acompanhamento clínico, que tem como foco a discussão dos textos técnicos relacionada à atuação clínica, sem que isso remeta a algo dogmático? Como pensar a Psicanálise como uma possibilidade de investigação humana e não como o lugar da verdade absoluta?

Talvez tenhamos que nos colocar no lugar de investigadores atentos, ao invés de transmissores da “boa nova”, para pensarmos o lugar do acompanhante clínico no espaço da formação inicial de analistas e da própria formação continuada.

Acreditamos que esta posição, a de quem transmite, esteja relacionada à possibilidade de oferecer aos candidatos em formação, caminhos para pensar a psicanálise e o ofício de analista tendo como pano de fundo os textos freudianos sobre a técnica.

Sem dúvida, sabemos que os textos, por si só, não garantem a prática, mas constituem a base sobre a qual se constroem referências para elucidar uma práxis complexa e que exige grande investimento. Neste sentido, como considerar, ao mesmo tempo, rigor técnico e liberdade de escuta? Como fazer para que a atenção flutuante não ocupe um objetivo nirvânico diante de uma prática nada previsível?

Acreditamos que realizar uma leitura atenta e crítica dos textos sobre a técnica psicanalítica, justamente num momento inicial de formação, onde se buscam referências e experiência de atendimento, constitui um grande desafio. Por isso, nesse contexto da transmissão, a idéia proposta é pensar com o grupo sobre a experiência de cada um com a psicanálise (seja ela clínica ou não) utilizando os textos técnicos Freudianos como aporte fundamental, sobretudo, considerando o fato de que um encontro analítico não é teórico.


Neste sentido, é necessário considerar os saberes de quem inicia a formação para que se produza no grupo uma experiência legítima e um fazer próprio, apoiado naquilo que estabelece o campo psicanalítico.
Refletir sobre estas questões com o grupo de trabalho permite que o texto seja, ao mesmo tempo em que lido com rigor (e não com religiosidade), também um ponto de partida para pensar a psicanálise, acolher idéias, compor novas formulações e produzir interrogações sobre a prática clínica.

Joel Birman(1) , destaca que o século XX traz à humanidade a revelação da existência do Inconsciente e a notícia de que o homem não é dono da sua própria casa. Enquanto a psiquiatria da época tentava contrapor a lógica ao delírio, a Psicanálise nos convidava a pensar no delírio como algo dotado de sentido. Assim, a psicanálise inaugura uma clínica na qual o outro não é excluído, onde o outro pode ser, onde a subjetividade é levada em conta, onde a verdade está na fala do paciente, uma vez que ele diz sobre si. Portanto, são dois sujeitos que estão na experiência com seus espaços psíquicos.

Esta Psicanálise, contudo se transformou ao longo de sua criação, em Psicanálises, em diferentes abordagens psicanalíticas que conversam entre si, onde nenhuma é a reveladora da verdade, todas são possuidoras de grandes descobertas e possibilidades de enxergar e escutar a alma humana.

Ainda em relação a essas diferenças, Radmila Zygouris(2) propõe que não nos esqueçamos que a psicanálise nasceu da “loucura”. A loucura coloca questões de fundo, ela interroga diretamente a capacidade dos humanos em estar junto, ela nos coloca diante dos enigmas daquilo que acontece nesse espaço entre os humanos, quando os códigos sociais convencionais falham, e o essencial da troca passa a se situar no andaime no qual transitam imagens inconscientes carregadas de sentido.

Em relação à prática da técnica instituída por Freud, as diferentes psicanálises convergem e diferenciam-se no seu manejo, justamente porque estão apoiadas em conceitos que definem o sujeito psíquico, privilegiando determinados aspectos.

Assim, como se faz o manejo perfeito, a psicanálise “mais psicanalítica” ou a psicanálise verdadeira?
Para responder a esta questão propomos aqui algumas inquietações: como conviver com as diferenças de modo a não perder de vista a alteridade que a própria psicanálise traz como ponto importante e comum em sua prática? O que é Psicanálise? Quem é o Psicanalista? O que caracteriza o fazer psicanalítico?

Piera Aulagnier(3) , define o analista como aquele que duvida de seu saber. Partindo daí, é possível livrar-se do estabelecimento de uma relação de assimetria com seu analisando; analisando esse que é parceiro de um projeto compartilhado. A autora adverte sobre o perigo de cair na armadilha do narcisismo e ocupar um lugar de alienador.

Podemos dizer, então, que a psicanálise é a prática do não saber, que nos convoca e nos possibilita escutar o sujeito, seu desejo e suas armadilhas. Este é o Psicanalista! Assim, parece mais fácil considerar, então, as diversas psicanálises com um olhar que contempla a diversidade, sem a necessidade de que exista de uma verdade “tapadora” de buracos e obstrutora da busca eterna do saber.

Outro cuidado, como aponta Birman(4) , é para que a teoria não se transforme em doutrina, pois uma vez que isso acontece não há mais a chance de se posicionar uma teoria diante de várias outras que disputam entre si a interpretação, a explicação de determinados fenômenos ou acontecimentos. Ou seja, ocorre um fechamento num paradigma supostamente absoluto a partir do qual se excluem as demais teorias através de uma série de estratégias de desqualificação, de demonização do outro, de subterfúgios presentes nos jogos de linguagem: “não, isso aqui não é psicanálise; isso é uma falsa maneira de se entender psicanálise”.
E quem é o paciente de análise?

Podemos dizer que é alguém que está disposto a querer saber sobre o que diz. E mais, como nos diz Freud(5), é aquele que se dá conta e que pode se dar conta que é enfermo e que precisa ser tratado! Assim, ele nos diz: “O paciente tem de criar coragem para dirigir a atenção para os fenômenos de sua moléstia. Sua enfermidade em si não mais deve lhe parecer desprezível, mas sim tornar-se um inimigo digno de sua têmpera, um fragmento de sua personalidade, que possui sólido fundamento para existir e da qual, coisas de valor para sua vida futura tem de ser inferidas”.

Como aponta Roudinesco(6), o método psicanalítico é um tratamento baseado na fala, um tratamento em que o fato de se verbalizar o sofrimento, de encontrar palavras para expressá-lo, permite, senão curá-lo, ao menos tomar consciência de sua origem e, portanto, assumi-lo.

Pensar no analisante, com seu sofrimento, seus sintomas e sua demanda, implica pensar na posição ocupada pelo analista e na expectativa de “cura” que atravessa essa prática. Por isso, vamos voltar à proposta do acompanhamento clínico.

Para além dos textos técnicos e da prática clínica, boa parte das questões abordadas no grupo surgem relacionadas à formação do analista. Quando você se formou? Como os pacientes chegam? Como trabalhar na transferência? Qual o seu percurso como psicanalista?

Podemos responder a tudo isso dizendo que estamos sempre em formação, que este lugar de formado, completo, é apenas um lugar ilusório que supostamente nos protege de um “não saber”. Embora tudo isso seja verdade, responder a essas questões não é tarefa simples.

Pois, se a psicanálise é a prática do não saber, ela não o é apenas para os pacientes, mas, sobretudo, para os analistas, pois a possibilidade de estar numa experiência de análise significa colocar em suspensão as próprias certezas. Isto é uma experiência de angústia e é a condição da análise. E para ser analista é preciso ter coragem! Coragem, como destaca Jacques-Alain Miller , para ocupar uma posição de se mostrar habitado por um desejo mais forte do que o desejo de ser mestre.

Se dissermos ao analisante “Eu sei o que você é, eu sei o que você precisa, eu sei o teu bem”, fechamos a porta onde o sujeito se faz ouvir. Para abrir a porta, para que o desejo do analista seja a outra face da paixão da ignorância é preciso que diga “Eu não sei, e é por isso que preciso que você fale”. É justamente a partir desta recomendação de Freud, sobre a livre associação, que se desenvolve a prática clínica.

Ao longo deste semestre visitamos a obra de Freud e seus principais textos sobre a técnica, de onde surgiram questionamentos dos mais diversos.

Verificamos juntos que o fazer psicanalítico sofreu modificações a partir da prática e da evolução teórica de Freud. Se no início o trabalho residia em decifrar um trauma, muito se descobriu e se pensou sobre o manejo da técnica até chegar ao papel das resistências e sua relação com o inconsciente.

A relação médico-paciente sempre esteve muito presente, seja de maneira a abusar da posição de influenciar e sugerir ao paciente, seja pela tão importante transferência, conceito que trata do que a análise e suas características podem ocasionar, e mais, que o paciente fala de si através da transferência e que esta fala é produzida pela clínica psicanalítica.

Freud oferece algumas recomendações aos analistas iniciantes. Uma delas é a da atenção flutuante, que vai de encontro ao que falamos há pouco sobre a pessoa do analista e sua posição para com o paciente. Na psicanálise, a verdade está com o paciente, o que é levado em conta e tem papel fundamental no trabalho de análise. Nesta recomendação sobre a atenção flutuante, Freud nos convoca a estar com o paciente de maneira a suspender nossas tendências pessoais, preconceitos, pressupostos teóricos determinando assim que as equações pessoais do analista sejam reduzidas. Esta seria nossa contrapartida ao solicitar ao paciente que associe livremente!

Freud nos convida, também, a tomar alguns cuidados: é pedido ao paciente que associe livremente, mas que tenhamos o cuidado com a ambição terapêutica, com a vaidade e com a saturação de uma técnica terminantemente interpretativa; que prestemos atenção na importância da transferência e do manejo desta; na diferença entre associar e elaborar; na importância da elaboração e no tempo que esta requer; na importância de uma visão mais próxima de uma construção com o paciente versus a infinidade de interpretações...
Além disso, nos adverte em relação à nossa expectativa, que deve ser vazia e sem pretensão. Logo de início, Freud aponta que estas regras foram criadas e baseadas na sua experiência clínica e que eram apropriadas à sua individualidade.

Isto nos permite pensar que só podemos compreender essas recomendações técnicas a partir da nossa experiência, ou seja, da experiência de cada analista, que é o que possibilita transformar a técnica e seu manejo. Daí a necessidade de questionarmos o tempo todo a nossa prática, aquilo que fazemos e que sentido tem este fazer, para que não façamos uma mecanização da técnica!

Estas recomendações, em especial nos fizeram pensar que elas são algo a ser percorrido, e não algo que esteja dado desde o início ou que se adquira simplesmente, como um pacote de produtos para analistas. E se pensarmos na formação, o que se observa é que existe uma linha tênue entre correr o risco de pensar e o receio de ser excluído, condição que muitas vezes abafa a possibilidade de criação em detrimento da pertinência institucional.

Diante disso, o trabalho que se coloca a partir desses aspectos é acolher, escutar e pensar com o grupo sobre a diversidade de experiências de atendimento clínico, o que, em última instância contribui para que cada um tenha condições de dizer sobre si como analista, e sobre as referências que fundamentam sua prática.

Assim, quando Freud discute questões como dinheiro, tempo, freqüência, duração e divã, como recomendações que caracterizam o método psicanalítico, surge no grupo a necessidade de refletir sobre a possibilidade ou não de se fazer psicanálise dentro de Instituição, já que esta constitui a principal referência de atendimento de boa parte do grupo.

Para nos ajudar a pensar nestas questões, Ana Cristina Figueiredo(8), nos convida a pensar em uma psicanálise possível dentro de instituições e não só nos consultórios.
Em relação ao pagamento, por exemplo, concorda com Freud quando aponta este aspecto como algo importante e cheio de significados. A autora, através de alguns exemplos clínicos realizados em ambulatório, nos apresenta significações muito diferentes daquelas que aparecem no consultório.

“As duas posições parecem desaguar no mesmo lugar. No consultório e no ambulatório contamos com elementos diferentes em jogo tanto para a boa resolução da transferência quanto para a resistência inevitavelmente presente em qualquer análise”. Portanto, é só a partir da afirmação dessa diferença que podemos pensar cada caso. O que não podemos fazer é alegar como um “a priori” que sem dinheiro não se pode fazer psicanálise.

É preciso criar novos critérios de avaliação do fator ausência de dinheiro na experimentação cotidiana da clínica e referi-los à teoria psicanalítica. É assim que podemos sair ganhando ao invés de entrar perdendo. Contudo, o ganho não é narcísico nem secundário, ao contrário, “é com perda narcísica que se abre caminho para novas possibilidades do trabalho psicanalítico”.

Quanto ao divã, que dentro de um ambulatório não é possível, a autora nos convida a pensar sua importância na psicanálise como um interditor do olhar do paciente para o analista, o que facilita sua associação livre e também a atenção flutuante. Porém, nos adverte não é possível tomar o cenário pela cena, ou seja, o cenário não é algo que sozinho faça psicanálise, e que sem o divã é possível sim uma análise se dar.

Em relação ao tempo, algo que nas instituições é, em geral, preestabelecido pela alta demanda, a autora nos lembra que Freud responde a questão do tempo com um – caminhe... Como escutar esta recomendação de Freud e se deparar com a restrição dada pela instituição? Quanto tempo para uma análise? Qual o tempo da elaboração? Qual o tempo para dissolução da transferência?

Com relação à freqüência, por exemplo, compartilhamos experiências institucionais relatando processos muito ricos de análise que foram realizadas dentro dos limites da instituição, uma vez por semana.
A autora ainda coloca uma outra questão: a Psicanálise é interminável ou intermitente? Considerar que o tempo é algo singular na análise nos leva a concluir que a análise é sem fim e, portanto, talvez intermitente.

Maria Lívia Tourinho(9) acrescenta que “o setting analítico não é esse conjunto de regras instituídas, que nos artigos técnicos de Freud encontramos sob a designação de condições”. O contrato psicanalítico se funda, portanto na regra fundamental: o paciente associa livremente, e o analista presta atenção flutuante. Esse é o compromisso entre paciente e analista e é a partir dele que podemos pensar na resistência, no estabelecimento da transferência e nas possibilidades de intervenção analítica, supondo o inconsciente como hipótese.

Muitos de nós, com experiência clínica dentro de instituições podemos afirmar que fizemos psicanálise, ou pelo menos, iniciamos um processo analítico com os pacientes que assim desejaram. Acreditamos que se há um que escuta em atenção flutuante e um outro que deseja saber o que fala em associação livre, temos aí psicanálise.

Birman(10) propõe que a experiência psicanalítica, quando acontece, seja no ambulatório de Previdência Social, seja num consultório de luxo em São Paulo, é uma experiência de produção de acontecimentos, já que o inconsciente não é alguma coisa que esteja dada e o analista vá, como Sherlock Holmes, decifrar qual foi o crime que você cometeu ou sofreu.

Acreditamos que todas essas são perguntas muito ricas e que tenham respostas a partir da experiência e do referencial teórico utilizado.
Nossa idéia aqui consistiu apenas em relatar um recorte de experiência, experiência esta que busca o saber e a formação continuada do analista; recortes da vivência de um semestre de encontros muito ricos, com perguntas, angústias e inquietações de um grupo e respostas provisórias.

Fiquemos então com as perguntas e a busca contínua do saber!

Notas

1 - Birman, J. Loucura e verdade in A constituição da Psicanálise in Freud e a interpretação psicanalítica

2 - Radmila Zygouris – Nem todos os caminhos levam à Roma

3 - Piera Auglanier – Do amor necessário à transferência alienante

4 - Joel birman – Jogos da verdade em psicanálise. Revista Percurso

5 - Freud. Recordar, repetir e elaborar

6 - Elizabeth Roudinesco – O que é psicanálise?

7 - Jacques Alain Miller – Psicoterapia e psicanálise in Psicanálise ou psicoterapia?

8 - Ana Cristina Figueiredo – Vastas confusões e atendimentos imperfeitos – a clínica psicanalítica no ambulatório público

9 - Maria Livia Tourinho – O que pode um analista no hospital?

10 - idem