DO LUTO, DO NARCISISMO E DE IDENTIFICAÇÃO

Mônica Leonardo Salgado Ferreira

 

“A vida se transforma rapidamente.
A vida muda num instante.
Você se senta para jantar, e aquela vida que você conhecia
acaba de repente.
A questão da autopiedade”.

“O mais difícil foi reconhecer que aquela que estava ali não era mais a minha mãe.
Não aquela que buscava num passado que acabara...
que queria e imaginava num futuro que não houve... Existiam sim, alguns traços,
certos trejeitos que muito de longe eu podia reconhecer mas,
aquele olhar não tem mais nenhuma ressonância”.

Dois momentos diferentes. Dois relatos de experiências de perda. A primeira da jornalista americana Joan Didion, escrita dois ou três dias após a morte súbita de seu marido no final do ano de 2004, de um acidente vascular cerebral. A segunda, escrita um ano depois do início de uma enfermidade que envolveu minha mãe numa névoa impenetrável, afastando-a da realidade, deixando-a sem memória e impedindo-a de se reconhecer, de me reconhecer. O ano do pensamento mágico (2006) foi a maneira que Didion encontrou para elaborar o seu próprio luto. Como elaborar o luto? Como elaborar perdas diárias a que todos estamos sujeitos? Como elaborar perdas a “conta gotas” como aquelas provocadas pelo lento afastamento do objeto amado pela doença de Alzheimer ou mesmo pela morte cadenciada de uma doença terminal? Quantas vezes eu ainda me engano convencendo-me que aquela que está ali e já não me reconhece, não é a minha mãe. Aquela outra já morreu. Será esse um jeito de levar a vida em frente? O que será que me deixa mais triste? Não ser reconhecida como filha ou não poder mais reconhecer a mãe que tive, a mãe que quero ter e aquela que nunca queremos perder?
Como escrever sobre luto, sobre perdas sem lidar com o narcisismo? Se os sonhos foram o protótipo das perturbações mentais, o narcisismo é fundamental para podermos pensar as sombras que habitam os processos do luto e da melancolia.
Penso em postergar esse trabalho, adiar a entrega, não fazer ou qualquer outro tipo de solução mágica que me tire da frente o lidar, nesse momento, com questões de vida e de morte. Já não seria suficiente estar vivenciando tudo isso? Ao mesmo tempo penso: será possível mesmo esse tipo de cisão – parar tudo para poder sentir? Interromper o ritmo ao invés de tentar compreendê-lo? Não seria essa uma saída melancólica e uma evitação ao trabalho do luto? Uma fantasia mágica de que algum dia tudo passa, tudo fica em paz e aí sim poderíamos viver, amar e trabalhar em paz? Ilusão narcísica? Pensamento mágico?
Diz Freud (1915) que o luto é uma reação à perda de um objeto de amor ou à perda de alguma abstração que ocupou o lugar desse objeto amoroso. Salienta ainda que, em algumas pessoas essas mesmas influências podem dar origem ao luto patológico ou melancolia em vez do luto normal. Uma outra diferença aponta para o fator inconsciente da perda na melancolia. O melancólico sabe quem perdeu, mas não sabe o que perdeu no objeto desaparecido.
Entretanto, o que de mais acentuado está presente nos melancólicos é a grande insatisfação com o próprio eu, além das auto-acusações expostas sem nenhuma reserva. A partir daí, Freud (1915) nos mostra o mecanismo presente na melancolia: as recriminações feitas ao objeto amado nada mais eram do que recriminações deslocadas para o eu do próprio sujeito, mostrando claramente que a escolha objetal havia se dado sobre uma base narcísica e que por meio de uma identificação, também narcísica, o eu do melancólico confunde-se com o próprio objeto. Diz Freud: “a sombra do objeto caiu sobre o eu”. Ou seja, há uma perda objetal que se transforma numa perda do eu o que, mais uma vez, nos aponta para a importância de novas investigações de questões relacionadas ao narcisismo.
Ocorre que na melancolia, a impossibilidade de renúncia ao objeto perdido deve-se ao fato de que este se encontra extremamente investido de aspectos idealizados do próprio eu. Cinde-se o eu, de forma que a parte inconsciente que se identificou com o objeto relaciona-se intrapsiquicamente com a outra parte – consciente e crítica - mantendo o mesmo tipo de vínculo anteriormente estabelecido com o objeto perdido.
Detenho-me nesse momento na questão da identificação. Se no texto de 1915, Freud fala de uma identificação narcísica, é em Psicologia das Massas que podemos ver mais largamente ampliada a sua consideração. O eu passa a ser entendido como se constituindo a partir de identificações. Freud distingue três modalidades de identificação: a primária – como forma originária de laço afetivo; a secundária – como uma regressão de uma escolha de objeto abandonada e ainda outra, como um desejo inconsciente comum com o objeto. Gostaria de me deter um pouco mais nas duas primeiras modalidades, à medida que penso que elas estão mais intimamente relacionadas com as questões que me propus refletir.
Penso na complexidade desta primeira modalidade de identificação primária onde, a identificação e a catexia do objeto se equiparam e são indistinguíveis uma da outra. Algo que pode ser mais bem compreendido ao pensarmos na relação mãe-bebê como a forma mais originária de relação de objeto onde, inicialmente, não há uma diferenciação entre dentro e fora, entre o bebê e a mãe. É o eu, que ao se constituir, faz essa separação. Assim é que somos constituídos a partir da separação de uma unidade originária (mãe-filho) a qual estaremos sempre em busca e ao mesmo tempo, nunca será alcançada. Essa impossibilidade da completude se deve à mesma ambigüidade que nos constitui como sujeito.
Uma outra característica da identificação primária é o seu caráter de incorporação. É Fétida (2003) quem diz que:

“o conceito de incorporação sustenta-se por uma imagem que assegura à oralidade a função de um modelo e que, permite, assim, dar às formas primitivas da identificação a evidência de um conceito corporal” (p.61).

A partir daí, simplifica-se o caminho para pensarmos que, se a fase oral é a que predomina nesses estágios iniciais, o canibalismo parece ser o conceito mais apropriado para explicar a ambivalência intrínseca à identificação primária. Isto se deve a característica dessa etapa em que o desejo é o de se apropriar e de destruir o objeto, na esperança de que este não tenha uma existência separada. Como nos lembra Miguelez (2005) a ambivalência, própria do canibalismo e da incorporação, atinge a identificação acarretando importantes conseqüências para o Complexo de Édipo.
Segundo Laplanche (1999), a segunda forma de identificação, a secundária, se dá como substituto regressivo de uma escolha de objeto abandonada. É essa forma de identificação que ocorre nos processos melancólicos.
A morte é sentida como um desamparo à medida que é da ordem de algo que não pode ser representado. Dor, impotência, perda, castração. Quantas vezes, sem que nos déssemos conta, a vida se encarregou de nos mostrar as várias faces da perda? O parto que nos separa da mãe, o desmame que nos separa do seio são as primeiras, os primeiros objetos perdidos que ainda que jamais sejam reencontrados, serão sempre desejados. Dores doídas que marcam e deixam o rastro que será infinitamente repetido e perseguido a cada perda e a cada separação seja através da angústia, da ansiedade ou da depressão.
Em O livro da dor e do amor, Nasio (1996) diz que a dor frente ao súbito desaparecimento do objeto amado é a única que merece plenamente ser chamada de dor. Quanto àquelas dores sentidas antecipadamente à morte do objeto condenado por uma doença, Nasio diz que é como se a dor do luto fosse nomeada antes de aparecer e o trabalho de luto, começado antes do desaparecimento do amado (p.57). O autor acrescenta que no desaparecimento repentino “a dor se impõe sem reservas, transtornando as referências de espaço, tempo e identidade” e que ao acompanharmos a doença de um objeto amado, vivemos a sua morte com uma dor infinita, mas representável. Dois tipos de dor? Nesse momento, sinto-me incapaz de concordar imediatamente com Nasio, como se fosse a surpresa e a imprevisibilidade que garantissem o caráter da irrepresentabilidade e conseqüentemente, de uma dor mais doída. Mas, por que o caráter da irrepresentabilidade não estaria presente na perda perdida aos poucos?
Não podemos negar que, tanto a perda do objeto amado como a iminência de uma perda ainda não consumada deixa à mostra um ferimento narcísico. Se o modelo encontrado por ocasião da primeira experiência de falta foi através da realização alucinatória do desejo, como uma ilusão para reparar a falta do objeto é esse o caminho que será buscado por ocasião de outras frustrações, ainda que não traga consigo uma satisfação eficiente.
Para Didion, escrever um livro foi a maneira que ela encontrou para tentar, à sua maneira, extrair algum significado daquele tempo que se seguiu, das semanas e meses que colocaram em cheque qualquer idéia que ela pudesse ter a respeito de doença, morte, sorte, sofrimento, lembranças e de como poderia lidar e dar um sentido a tudo que aquilo. Não posso deixar de acrescentar que a perda de seu marido ocorre simultaneamente à internação de sua única filha numa unidade de tratamento intensivo, devido a um choque séptico. Pensamento mágico seria pensar que escrever um livro, fazer uma viagem ou executar um trabalho pudesse dar conta da elaboração de um luto.
Cada luto, cada nova perda nos remete não só as primeiras como também às maneiras como nos defendemos. Se nesses momentos pudermos nos distanciar daquelas identificações primárias, estaremos no caminho de uma vida mais autônoma ao mesmo tempo em que vamos construindo a nossa subjetividade.
Nesse momento, lembro-me de um trecho do livro em que Didion faz algumas relações entre o terremoto de nível 9.0 na escala Richter, que devastou uma área de quase mil quilômetros na região de Sumatra e o momento em que escreve o livro, um ano após a morte do marido. Diz ela sobre o terremoto: “não há nenhum vídeo daquilo que eu estou tentando imaginar. Na imagino praias nem piscinas inundadas, nem saguões de hotel destruídos, como galhos apodrecidos numa tempestade. O que eu quero ver aconteceu debaixo da superfície. A placa da Índia se partindo ao ser empurrada pra baixo da placa da Birmânia. A corrente varrendo tudo sem ser vista através das águas profundas. .... O momento em que a velocidade da corrente invisível diminuiu ao se encontrar com a plataforma continental. O acúmulo de água na base da plataforma que fez transbordar. Como era no princípio, como é agora e como sempre será, um mundo sem fim”(p.216)
Penso que não poderia haver melhor metáfora para a perda, o luto e a sua elaboração. Tento imaginar as suas escolhas, as suas identificações. Tento imaginar um caminho que me sirva de guia. Como se isso fosse possível. Pensamento mágico!
BIBLIOGRAFIA

Didion, Joan O Ano do Pensamento Mágico, Editora Nova Fronteira, Rio
de Janeiro, 2006.

Fétida, Pierre Depressão, Editora Escuta Ltda, São Paulo, 2003.

Freud, S. Edição Standard Brasileira (ESB) das Obras Psicológicas
Completas Sigmund Freud, Imago Editora, Rio de Janeiro, 1969.

V. XVI Luto e Melancolia (1917 (1915)
V. XVIII Psicologia de Grupo e a Análise do Ego (1921

Nasio, J.D. O Livro da Dor e do Amor, Jorge Zahar Editor, Rio de
Janeiro, 1996)

Miguelez, O.M. Narcisismos – Dissertação de Mestrado, Programa de Estudos
Pós-Graduados em Psicologia Clínica, Núcleo de Psicanálise,
Laboratório de Psicopatologia Fundamental, Pontifícia
Universidade Católica, São Paulo, 2005.

Laplanche e Pontalis Vocabulário da Psicanálise, Martins Fontes, São Paulo,
1999.