Eduardo Leal
“Uma grande preocupação foi imposta a todos os homens, e um pesado jugo oprime os filhos de Adão, desde o dia em que saem do seio de sua mãe, até o dia em que volvem à Terra, mãe de todos.”
Eclesiástico (40-1) (1)
O sofrimento é uma marca indelével do ser humano. Em todas as épocas e lugares o animal humano se deparou com o sofrer, seja este ligado ao medo de situações ameaçadoras à vida existentes no mundo natural ou ao pavor frente ao sobrenatural. É impensável excluir o sofrimento como fator essencial na formação da sociedade e suas instituições, da cultura e da religião. Essas construções humanas ao mesmo tempo em que tentam absorver o sofrível, servem para expressá-lo em suas várias possibilidades.
O sofrimento aqui inclui tanto o seu lado somático como o psíquico, apesar desta distinção ser artificial uma vez que o corpo é lugar privilegiado -senão o único - para a manifestação do padecer psíquico. Seja qual for a delimitação mais adequada, o sofrimento,numa visão mais geral, se manifesta sempre ativamente, se impondo ao indivíduo. Essa vertente passiva do sofrente aparece contemplada na acepção comum do termo sofrimento.
Houaiss o define, dentre outros significados, como “experimentar com resignação e paciência; suportar; tolerar; agüentar... não evitar ou criar impedimento para; admitir, permitir, aceitar”.
Nesse sentido, uma vez acometidos pelo sofrimento, não nos resta outra possibilidade senão suportá-lo, experimentá-lo. Mas de qual sofrimento estamos falando? São todos iguais os desconfortos causados por uma depressão, uma ansiedade brutal, um pavor de estar sendo perseguido? Se utilizarmos as referências da psicopatologia, veremos que não, que há inúmeras especificidades não compartilháveis das várias entidades psicopatológicas. Mas certamente o pano de fundo de todas essas manifestações seja o sofrimento numa acepção mais geral,ou o pathos, para os que se dedicam à questão.
Sobre o caráter inexorável da angústia Comte- Sponville provoca questões ao afirmar : “o que mais angustiante que viver? (...) fazem-me rir nossos pequenos gurus, que querem nos proteger-nos dela. Ou nossos pequenos psis, que querem curar-nos dela. Por que não nos curam, em vez dela, da morte? ”. (2)
Se não existe algum antídoto contra a angústia, como é que fica o bem-estar, a felicidade tão aspirada e propósito último dos homens? Freud em o Mal Estar da Civilização não deixa dúvidas: “ficamos inclinados a dizer que a intenção de que o homem seja feliz não se acha incluída no plano da criação”. (3)
Ou um exemplo autóctone do nosso poeta popular: “tristeza não tem fim, felicidade sim...”.
E para reforçar o coro dos insatisfeitos frente ao sofrimento contemporâneo, um questionamento febril proposto por Melo em uma reunião filosófica: “Por que a promessa de felicidade do projeto iluminista não se cumpriu?”.(4)
Se há um consenso invisível sobre o sofrimento em sua força inescapável, a pergunta essencial que nos assalta a partir daí é: Qual a intensidade e/ou a qualidade do sofrimento que devo considerar como sendo um elemento próprio à minha existência? Ou de um modo mais direto: Até quando/quanto devemos sofrer sem convocar o discurso médico em nosso auxílio?
O controvertido conceito de morbidez ou doença vem delimitar o sofrimento que deve ser tolerado e (se possível) elaborado, daquele que deve ser debelado, medicalizado.
A este último, a abordagem da medicina se apropriou há tempos imputando às alterações orgânicas a responsabilidade maior por esse grau acentuado do padecimento.
Como assinala Costa Pereira: “Freqüentemente o orgânico é evocado como condição necessária e suficiente para a determinação da angústia dita mórbida ou patológica”.(5)
O que se pretende aqui é discutir os limites desse sofrimento mórbido e suas modificações, relacionando-as às transformações da subjetividade que assistimos nas últimas décadas.
Comte-Sponville sintetiza nosso questionamento: “É isso que a angústia lembra a uns e aos outros, marcando os limites da filosofia, quando a angústia é patológica, bem como da medicina, quando ela não o é. (...) A angústia existencial não é uma doença; a neurose de angústia não é uma filosofia. Bom trabalho a todos!”.(2)
I I- SOFRIMENTO E SUBJETIVIDADE
Se fossemos nos conduzir pela mensagem dita indiretamente na epigrafe desse texto, teríamos que nos submeter ao pesado jugo que martiriza a todos, e principalmente a parte dos filhos de Adão.
Não foi o que se sucedeu. Passando por várias mudanças de enfoque, desde a medicina greco-latina e árabe com sua concepção naturalista de doença mental ou a tese da Demonologia hegemônica na Idade Média, o homem procurou explicações para embasar ações frente às alterações mentais.
Todo esse processo desembocou na criação da Psiquiatria, ramo de ciência médica, junto aos clamores de defesa das liberdades individuais que caracterizaram o espírito das Revoluções Burguesas do século XVIII.
Aqui já se observa como os contextos histórico-culturais deram forma às manifestações do sofrimento pois “com a Reforma e, mais tarde, com a Revolução Francesa, o problema de uma diminuição patológica do livre arbítrio adquiriu uma exigência a partir da qual nasceu inelutavelmente o fato psiquiátrico” (6)
Dessa psiquiatria incipiente surgiu o movimento da ciência anátomo-clínica que tinha como propósito a descrição das formas típicas e da evolução das doenças e a busca de etiologias cujo protótipo seria o da Paralisia Geral Progressiva.
É no cenário do final do século XIX que se revela o surgimento dentro da Psiquiatria daqueles que priorizavam os aspectos psicológicos no desencadeamento e estruturação dos sintomas mórbidos (psicogeneticistas). Freud pertenceu a esse grupo que revolucionou a psiquiatria clássica e formou o ramo da Psiquiatria dita “Dinâmica”, fortemente influenciada pelos conceitos psicanalíticos e que dominou a prática e o pensar psiquiátricos durante toda a primeira metade do século XX.
Com o advento dos psicofármacos a partir das décadas de 50 e 60, houve uma nova revolução no meio psiquiátrico que passa a considerar com mais peso as bases biológicas dos transtornos mentais. Essa tendência veio se acentuando com a consolidação nos cânones psiquiátricos de uma ideologia empírica cuja maior ambição seria a total objetividade nas suas inferências e observações. Essa metodologia é exigida para que se possa ratificar com mais rigor o envolvimento das diversas causas patogênicas. Como prioridade nesse sentido foi também levantada a necessidade de uma “concordância diagnóstica” entre clínicos e pesquisadores para impedir uma “Babel” nosológica.
Em 1952 a American Psychiatriac Asociation lançou o Manual de Diagnóstico e Estatística, DSM, que seria a referência nosográfica (e nosológica) para uso nos EUA , pois a Europa já tinha seu próprio código (CID) Classificação Internacional das Doenças, lançado em 1946. Deixando de lado as querelas entre europeus e americanos, é fato que ambos os códigos foram se reformulando a partir das novas descobertas provenientes das várias áreas, sobretudo das neurociências, até chegarem à 10ª edição (no caso do CID) e à 4ª edição (no caso do DSM). Com objetivo de tornar o mais isento possível dos vícios subjetivos inerentes ao ato de diagnosticar, os códigos adotam uma postura desvinculada da qualquer escola de pensamento (ateorismo) e o diagnóstico seria feito na base da combinação de vários sintomas observáveis por qualquer indivíduo, em qualquer tempo e lugar. É notável nesse momento a aproximação da ciência psiquiátrica com o atual modelo econômico-cultural vigente conhecido como globalização. A proposta é não só uniformizar o diagnóstico, mas também o tratamento, seguindo à risca o ideário da clínica médica. Nesse sentido, uma vez que os pacientes sofrem de sinais e sintomas equivalentes, eles sofrem da mesma doença, independentes do seu universo cultural e da sua biografia. Seria como uma condição somática clássica (Diabete Melito ou Insuficiência Cardíaca Congestiva), onde os pacientes tem manifestações comuns causadas por uma mesma doença ,com mesmas bases etiopatogênicas.
Em conseqüência do modelo usado para pensar a construção das entidades psiquiátricas, houve um aumento exponencial do número de doenças psiquiátricas; no CID 9 havia 30 categorias e no CID 10, 100 categorias. Isso sem levar em conta as várias subdivisões dentro dessas 100 categorias o que amplifica facilmente para a casa dos quatro dígitos o número de doenças psiquiátricas.
Para a ciência psiquiátrica atual, portanto, o sofrimento do indivíduo pode ser pensado e incluído em aproximadamente mil tipos de doenças mentais bem delimitadas e específicas. Permanece ainda obscura a questão de o quanto devemos sofrer para sermos incluídos em alguma dessas mil categorias, além da pergunta destinada ao sujeito do diagnóstico: Será que apesar das várias diretrizes diagnósticas objetivas oferecidas pelos códigos, a subjetividade do examinador não importa para a inclusão ou não de determinado tipo de sofrimento no setor patológico? Se nos guiarmos pelo ideal almejado pelos códigos, a resposta é não, ou que a influência deveria ser a menor possível por parte do examinador. Não é o que pensam vários autores.
Gentil diz que “Um estado ansioso pode ser considerado normal ou patológico. Esta é uma decisão arbitrária e subjetiva de quem avalia”; e mais a frente: “Uma reação ansiosa pode ser considerada normal ou patológica independentemente, até certo ponto, de suas manifestações, conforme o observador e as circunstâncias”. (7)
Mesmo tendo os parâmetros definidos, nos persegue “até certo ponto”, também a subjetividade do examinador e a sua própria história de vida quando tentamos elaborar o sofrimento insuportável. Para Sonenreich “A atividade mental influencia e condiciona a percepção do mundo”.(8) Logo não só o pensar sobre o sofrimento é variável, mas também a apreensão até sensorial deste e, obviamente, a sua interpretação.
Prescindindo das associações de causa e efeito, é difícil não observamos uma relação, no mínimo, entre o discurso médico-científico sobre o sofrimento e as transformações culturais do século XX. Não só do lado dos psiquiatras se expandiram as possibilidades de inclusão dentro da patologia, por parte dos pacientes há também uma maior procura e uma aceitação de que seu sofrimento é do volume requerido para ser chamado de doença. Tanto para o lado acadêmico como para o leigo, se observou uma redução (ou mesmo declínio) das idéias de angústia moral e/ou existencial.
A idéia síntese contemporânea seria “Sofrer para quê? Não posso tomar uma medicação e abolir isso que me incomoda?
Uma conseqüência possível para essa “psiquiatrização” da vida é o aumento de incidência de doenças mentais observada na clínica institucional e também por pesquisas. Kaplan afirma que em 1978 estimativas provisórias indicavam 15% dos americanos afetados por transtornos mentais em 1 ano e no estudo de 1980 (NIMH-ECA) , 19,1% dos americanos apresentariam qualquer transtorno em 6 meses e 32,2% em toda a vida.(9)
É claro que esses números podem ser criticados pelo viés da diferença dos parâmetros diagnósticos utilizados, além do aumento da longevidade da população. Mas o que chamamos a atenção é para o fato de que é muito possível pessoas estarem procurando mais a psiquiatria hoje em dia e talvez essa seja uma das razões para esse aumento na prevalência e incidência das doenças. Por um lado isso é benéfco e mostra uma menor importância do estigma do “portador” de uma doença psiquiátrica, mas por outro lado serve para refletir a mudança cultural frente ao sofrimento. Com relação ao consumo de Drogas, a Organização Mundial de Saúde recentemente divulgou um aumento em alguns pontos percentuais de 2003 comparado com alguns anos anteriores. Aqui parece haver isoladamente um aumento da manifestação (consumo de drogas, no caso), e não uma possível avaliação anterior ineficiente.
Sobre esse fato, Nogueira Filho é contundente: “Ora, se a toxicomania tanto cresceu nos últimos anos desafiando todas as leis da genética, apesar da insistência de alguns em sublinhar sua natureza biológica, é em função de uma superestrutura cultural que a sustenta. E esta superestrutura não está mais restrita ao discurso underground e contracultural. Está disseminada em todo e qualquer lugar que promete sanar a dor de existir e obturar a falta-a-ser. E os discursos acima referidos são mestres em prometer o fim do sofrimento”.(10)
Mesmo quando não falamos de doenças propriamente, já que as drogas podem - dificilmente depois dos códigos – entrar na categoria opção de vida ou recreação, estamos falando necessariamente de uma tentativa de lidar com o sofrimento que plagia, em muitos casos, o ato médico (auto-medicação).
Essa tendência toxicofílica atual seduz perversamente os deprimidos e ansiosos que estão ávidos por outras possibilidades de existência.
Lembremos que, novamente, o caldo cultural fornece um ambiente propício não somente para o auto-medicação mas para a auto-diagnose.
Entre as personagens midiáticas, não é difícil encontrar algum que “assumiu” seu transtorno psiquiátrico e, já que eles são (mais uma auto-avaliação!) “formadores de opinião”, o resultado só pode ser a identificação com este personagem pela parte de algum pobre expectador carente que está para dar representação ao seu desamparo.
Outro aspecto importantíssimo no estímulo à Auto-Diagnose e à Auto-Medicação, é a consolidação de determinados estilos de ser na cena social que se tornaram, a um certo momento, imperativos para os sujeitos e que se tornam inalcançáveis a muitos deles. Essas mudanças culturais envolveram uma maior valorização da imagem e um estímulo à atuação performática do indivíduo, sobretudo a partir dos anos 60. Essas mudanças se coadunam com a hegemonia capitalista, cujo cerne é a homogenização de um modo de vida que exalta o indivíduo “number one”, aquele que “faz e acontece” e que “quase arromba a retina de quem vê” ,parafraseando Chico Buarque.
Como sentencia Birman: “Assim na cultura de exaltação desmensurada do eu não existe mais qualquer lugar para os deprimidos e os panicados. Esses são execrados, lançados no limbo da cena social, já que representam a impossibilidade de serem cidadãos da sociedade do espetáculo”.(11)
A constelação subjetiva atual frente ao sofrimento fornece, num brevíssimo resumo, a seguinte conformação:
- A maior parte dos sofrimentos é catalogável e tratável como doença psiquiátrica.
- Uma menor resistência aos sofrimentos, ou seja, uma restrição das dimensões do que deva ser tolerado.
- Auto-Medicação; identificação com os modelos de doença firmados no primeiro item. (Auto Diagnose)
- Busca de modelos culturais inatingíveis e na maior parte das vezes idealizados, o que pode acionar o item anterior.
III – OS PSICOFÁRMACOS E O CORPO MATERIAL
Para falar de incidência de substâncias químicas sobre o psíquico não poderemos nos furtar de fazer considerações sobre a interrelação corpo-mente. Essas considerações seriam melhor entendidas se houvesse um conceito amplo que pudesse sintetizar a natureza dessa relação, que indubitavelmente existe.
Se nos guiarmos pelos dez modos de conceber essa relação segundo M. Bunge citado por Bogochvol(12), ficaríamos entre dois: O materialismo emergentista (enquadrado no monismo) e o interacionismo (enquadrado no dualismo).O excesso de “ismos” aqui denuncia a dificuldade em encontrar um conceito que aglutine o físico e o mental numa unidade em que há interações recíprocas, mas que não deixe de contemplar um certo grau de autonomia a ambos os lados. Mais claramente, um conceito que mostre que uma alteração mental possa produzir (ou não) uma alteração física e vice-versa, e também que possam ocorrer sincronicamente. E que mesmo que ocorram independentemente uma da outra, a um certo momento podem passar a incluir o outro nível e aí passam a compor algo mais complexo, o que ocorre na maioria dos casos.
Nessa direção cito Sonenreich: “Concebo o cérebro como processo e, em outro nível de abordagem, de um sistema incluindo o cérebro e cultura, gerador de um novo processo, o da atividade mental. Temos assim a base para uma psiquiatria livre dos antagonismos orgânico-psíquico, endógeno-exógeno, farmacoterápico-psicoterápico. Uma psiquiatria próxima das ciências deste século”.(13)
Essa é a definição mais atual e menos restringente. Mas como fazer uma clínica “processual”? Na prática clínica acabamos por não ser dualistas, sobretudo se tivermos como linha “psicogenética” a psicanálise?
Não acabamos, como psiquiatras, nos posicionando frente a um específico caso clínico dando mais ênfase ao biológico ou ao psicológico/social?
Como atrelar a angústia de castração com uma hiperatividade neuronal? Ou de outro modo: Podemos sofrer, mesmo com uma evidente causa ambiental/psicológica, sem um concomitante “sofrimento” encefálico?
Pode haver um sofrimento mental inteiramente causado por um sofrimento orgânico?
As respostas para variar não existem, só cogitações que ficam ao sabor (ético, esperamos) dos autores.
Com relação à última pergunta é preciso dizer que são clássicos dentre os capítulos de Psiquiatria, aqueles que abordam as chamadas Síndromes Mentais Orgânicas. Nessas Síndromes o peso recai na maior parte (ou integralmente) sobre os determinantes orgânicos alterados, que justificariam o aparecimento da psicopatologia. Em um paciente que sofreu um acidente vascular cerebral ou que tenha desenvolvido insuficiência renal aguda importante, pode haver alterações agudas de consciência ou da senso percepção que se devem às alterações provocadas na neurofisiologia por conta, nesses casos, da hipóxia ou da elevação de certos metabólitos (uréia, eletrólitos).
Em suma, o bom funcionamento psíquico depende de um (mínimo) bom funcionamento neuronal. Talvez esses sejam os casos que menos causem discussões embora os conteúdos das alucinações em pacientes com alterações agudas cerebrais não se devam, certamente, ao acaso eletroquímico.
A ação das substâncias químicas sobre o psíquico tem sua base nessa premissa: O cérebro é o substrato orgânico do Psiquismo. Subindo a montanha pelo lado oposto, encontramos os casos em que as alterações “ambientais” são sabidamente a causa da doença e possivelmente também das alterações bioquímicas correlatas.
Trata-se do quadro hoje descrito como Transtorno de Stress Pós-Traumático que se caracteriza pelo surgimento de sintomas psíquicos após um evento de vida considerado extremamente traumático pela maioria dos indivíduos de sua cultura. Esses sintomas incluem recorrência psíquica do evento traumático com intenso sofrimento, hipervigilância e prejuízo funcional. Nesses pacientes se observam alterações de estruturas cerebrais como o hipocampo que pode sofrer uma atrofia em função da elevação de um hormônio relacionado ao stress (o cortisol), que inibe a neurogênese nessa área. Se Descartes considerava o corpo pineal como ponto de contato entre o físico e o espiritual, hoje em dia a neurociência deslocou esse ponto para o eixo hipocampo-hipotálamo-hipofisário-adrenal.
Basicamente funciona assim: o hipocampo é uma estrutura do lobo temporal do cérebro cujas funções estão relacionadas à memória e aprendizado, além de integrar um sistema mais amplo de estruturas relacionadas às emoções e à integração destas.
Essas estruturas cerebrais antigas relacionadas à integração das emoções,tem interligações com o eixo hipotálamo-hipofisário-adrenal e outros centros nervosos que regulam uma série de funções autonômicas do organismo (a respiração, a contratilidade dos esfíncteres, a pressão arterial,a freqüência cardíaca).
A idéia é que o sujeito ao experimentar uma emoção violenta ativa todas esses centros vegetativos que ocasionam as alterações no corpo conhecidas por qualquer um de nós. No caso do Transtorno de Stress Pós-Traumático, as alterações orgânicas persistem a despeito do sujeito não estar mais vivenciando (no Real) a experiência que as disparou. Nesse sentido as alterações orgânicas se independentizam das alterações psicológicas (ou vivenciais) perpetuando a psicopatologia e justificando o emprego de medicações capazes de regular as alterações orgânicas.
Essa breve explanação dessa categoria diagnóstica atual só teve como objetivo dar uma pincelada nas relações bilaterais entre o físico e o mental. O grande problema é que a maioria das queixas reside justamente em sintomas que são explicados,quase que pela totalidade dos investigadores em saúde mental, tanto por aspectos psicológicos como por aspectos orgânicos.
Os autores psicanalíticos também se incluem nesse grupo, evidentemente se atendo mais à dinâmica das forças intrapsíquicas e às relações objetais. Freud sempre flertou com a biologia em toda a obra e o próprio conceito de pulsão encerra esse caráter fronteiriço entre o psíquico e o somático.
Considerou a fonte da pulsão presente dentro do organismo e,em muitos momentos , afirmou que o quantum pulsional é determinado constitucionalmente.
Afirmou em A Introdução ao Narcisismo (1914) que “todas nossas idéias provisórias em psicologia estarão baseadas um dia numa subestrutura orgânica”.(14)
Além da questão quantitativa, o constitucional poderia afetar a formação das defesas. Cito Melanie Klein em Inveja e Gratidão (1957): “Mantenho há anos a concepção de que a maior ou menor capacidade de tolerar a ansiedade é um fator constitucional que influencia fortemente o desenvolvimento de defesas”.(15)
O corolário dessas afirmações é a idéia de que o sujeito se constitui psicologicamente também em função dessa ordem econômica que, se por ventura for excessiva, imporá maior pressão ao aparelho psíquico e exigirá maior trabalho de ligação tanto do sujeito quanto dos outros. Não importa aqui se esse excesso se ligaria a um objeto-fonte muito excitador ou se ligaria a eventos traumáticos reais ou fantasísticos, pensando em termos do corpo o que preocupa é esse modelo de resposta encontrado no transtorno de stress pós-traumático, onde a um certo momento, pode haver um “descolamento” da experiência e das reações ficando, pelo menos em parte, por conta do corpo e de sua fisiologia a perpetuação de certos sintomas. Se esse modelo realmente procede, e parece que é o caso, um tratamento químico é necessário com vistas a modular as vias nervosas hiperestimuladas pelo trauma.
Olhando para as patologias cronificadas com o viés neurofisiológico, se supõe também que possa haver um padrão extremamente rígido de funcionamento de estruturas cerebrais que se relacionam ao visível esgotamento das possibilidades existenciais e psicológicas. Uma medicação que modificasse essa “constante” orgânica não abriria espaço para uma eventual transformação psíquica?
Nesse sentido não ajudaria no processo psicanalítico?
Pode-se dizer com tranqüilidade que há uma série de transtornos inanalisáveis em função das suas restrições no campo da fala e do simbólico.
Quem sabe não se tornariam, pelo menos em parte, analisáveis após uma intervenção biológica?
Outro ponto fundamental é como a psicanálise produz mudanças psíquicas. Para a neurociência, as transformações envolvidas com as psicoterapias se relacionam às alterações nos circuitos cerebrais.
Kandel afirma que “É intrigante pensar que até onde a psicanálise tem sido bem sucedida em proporcionar mudanças persistentes em atitudes, hábitos e comportamentos conscientes e inconscientes; que isto seja feito pela alteração na expressão de genes que produzem mudanças estruturais no cérebro”.(16)
Levine, citado por Kandel, demonstrou que a resposta do eixo hipotálamo-hipofisário-adrenal a longo-prazo em roedores é influenciada pela natureza do apego que a mãe roedora é capaz de proporcionar aos filhotes. Como em humanos, as mães ratos também tem que ser suficientemente boas!.
Essas descobertas que confirmam a importância das primeiras relações que se inscrevem como marcas na constituição mesmo orgânica do indivíduo, só corroboram a idéia de que a medicação atua efetivamente aliviando sintomas e respostas neuroendócrinas, mas não atua na causa dessas manifestações.
Em relação às últimas, chega-se novamente num impasse, já que se as alterações orgânicas não são a causa de psicopatologia, também não o são isoladamente as vivências psíquicas, uma vez que estas são profundamente moduladas pelos estados neurofisiológicos, sobretudo em estágios primitivos onde não há linguagem simbólica.
Com relação aos efeitos das medicações, vale lembrar que estes se dão em vias cerebrais não específicas e muitas vezes difusas do cérebro.Com a descoberta de que um único neurônio pode conter mais de um neurotransmissor e às vezes até vários, pode-se constatar que há vias que predominantemente trabalham com certo neurotransmissor mas que, mesmo nesse sítio, não é o único envolvido na regulação.
Podemos novamente inferir que a medicação atua em aspectos gerais dos sintomas deixando aberto os aspectos mais sutis e particulares desses sintomas, além de sua causação. Isso explica porque uma mesma molécula pode ser benéfica em uma série de condições como, por exemplo, a fluoxetina , que alivia sintomas depressivos, fóbicos, obsessivo-compulsivos, ansiosos.
Logo a fluoxetina é um inibidor seletivo de recaptação de serotonina, neurotransmissor existente no cérebro e predominante em 4 vias específicas que se difundem a partir de estruturas do tronco encefálico (sobretudo os núcleos da rafe). Mas não podemos dizer que ela combate a depressão, ela normaliza a transmissão serotoninérgica que pode estar alterada em uma série de condições como descrito acima.
Com esses dados é fácil concluir porque a Psiquiatria mais atual opta por fazer uma avaliação apenas descritiva dos sintomas, sem se levar em conta os aspectos psicodinâmicos. Isso dá objetividade aos sintomas e esse é o interesse: ter grupos de sintomas que levam um determinado nome, e observar o impacto de uma intervenção (sobretudo a farmacológica) nessa condição.
Como já foi anotado, não se está interessado nos aspectos particulares de determinado sintoma, nem o que ele possa significar para determinada subjetividade. O que se está interessado é o que possa ser generalizável do sintoma, ou seja, no que lhe é mais essencial e imediatamente visível. E, pensando numa linguagem atual, o que pode ser encontrado sem grandes variações nos indivíduos selecionados como portadores de determinada manifestação mental.
O ideal é fazer valer a asserção de Pfeiffer (1970), de que “através das culturas os doentes mentais se parecem mais entre eles do que os indivíduos mentalmente sadios”.(17)
IV – SOFRIMENTO E PSICANÁLISE
A Psicanálise atua de modo completamente diverso ao da Psiquiatria. Ela está interessada em se debruçar exaustivamente sobre um caso específico, dando pouca importância se há possibilidades de se fazer uma Teoria Geral aplicável a outros casos com apresentação semelhante.Segundo Mezan “A medicina não tem nem pode ter, a mesma atitude frente as sintoma”, e para a Psicanálise importa saber “em primeiro lugar, o que é o sintoma neste caso particular”.(18)
Tentando uma analogia com a música é a mesma coisa que ocorre da relação de uma nota de uma melodia com o fundo harmônico.
Uma mesma nota produz impactos absolutamente díspares no ouvinte ao ser tocada em diferentes contextos harmônicos.
Nessa toada a Psicanálise está mais interessada nas várias possibilidades de fundo harmônico (que em música são muito abundantes) que dão corpo e sentido ao sintoma.
Outro aspecto indispensável é que a psicanálise tenta manejar expressões da irracionalidade da mente humana que muitas vezes são descartadas pelas outras ciências como, por exemplo,o Comportamentalismo, que só aborda fenômenos observáveis e se possível mensuráveis. De saída, os vários sentimentos possíveis de uma língua e também as várias dimensões da experiência vivida que aguardam ansiosas e, ao mesmo tempo, temerárias uma codificação pela palavra, ficam de fora do jogo.
Como salienta Green: “A ciência tendo que explicar a irracionalidade, prefere não falar dela”.(19)
Em linhas gerais o sofrimento, para a doutrina iniciada por Freud, tem uma razão de existir que muitas vezes não esta acessível ao sujeito por uma série de condições, ou mesmo nunca chegou a se constituir como verdade, e precisa ser criada.
A própria possibilidade de falar dessa irracionalidade, e o sofrimento é uma delas, demanda uma tecnologia especial chamada linguagem que subverte a experiência original deixando o usuário da língua faltante ou, no mínimo, nostálgico. Essa perda com o símbolo “embaraça o homem sonhador acostumado com as noites magnificentes da presentidade”.(20)
As palavras são precárias, e as forças desejantes são intensas e recalcitrantes. O sofrimento, na sua acepção mais geral, só pode ser a resultante desses vetores que a psicanálise abordou e deu estatuto de “Ciência”. Entre o Desejo e a Defesa, surge uma aliança que tentará fazer com que o indivíduo sobreviva psiquicamente. A resultante geral libera sofrimento e impõe, no mais das vezes, restrições ao indivíduo, mas ao mesmo tempo gratifica os impulsos compromissados na aliança com a realidade interna e externa e libera também prazer. Questão palpitante: Como dar um nome a algo que é uma miscelânea de sofrimento e prazer?
Como liberar o sujeito desse pacto ordinário?
Ey assevera que “embora as terapias físicas possam aliviar a expressão emocional da angústia e a experiência dolorosa dos sentimentos que a formam, elas não podem absolutamente cortar a ligação que encadeia o neurótico com sua necessidade de sofrer e de manter perpetuamente a ansiedade”.(6)
O sintoma produziria mal-estar ao sofrente pela própria repercussão em sua vida (uma fobia, por exemplo), e ainda haveria forças que se inclinariam à permanência do sintoma. Essas forças são expressões do masoquismo que tem na suas vertentes primária e moral sua maior potência.
O indivíduo deve sofrer dessa forma tanto para descarregar sua pulsão de destruição não defletida para o exterior ,como para dar vazão às acusações e censuras pelos desejos realizados e/ou fantasiados.
Para a psicanálise, portanto, o sofrimento é inexorável e o objetivo do tratamento seria dar melhores destinos às várias pulsões com vistas a manter um nível de sofrimento suportável e levar o paciente a viver, como disse Freud, uma infelicidade comum.
A medicação altera toda a dinâmica de forças psíquicas e geralmente diminui a força de trabalho que é imposta ao aparelho psíquico. Em outras palavras, ela produz um apaziguamento das excitações sem “o trabalho necessário de rearranjo das representações e afetos”,como afirma Fédida.(21)
Pensando por aí só haveria benefícios no sentido de atenuar o sofrimento, porém, a medida se torne paliativa na maioria das vezes, pois impede o sujeito de se haver com suas disposições e de elaborá-las.
Birman nos ensinou que “a possibilidade de simbolização do sujeito depende sempre de impossibilidade de satisfação pulsional e da angústia dela resultante, que conduz inequivocamente a subjetividade ao trabalho de simbolização neste vazio do gozo não realizado”.(22)
Independente de qual das teorias concernentes à angústia nós utilizemos, sempre entrará na sua psicogênese a impossibilidade de fruição pulsional completa que condena o sujeito a um quantum de sofrimento necessário, a despeito da criatividade deste na elaboração de substitutos ou da força de sua recusa ou repúdio desta impossibilidade.
Nesse cenário o sujeito se torna, por assim dizer, um herói que reúne com a ajuda, sobretudo do legado simbólico, as forças necessárias para sustentar a parte boa do seu narcisismo e suas escolhas existenciais. Para isso será obrigado a encarar o abismo, outrora ocupado por um oceano de indiferenciação, que o separa dos outros e a partilhar do mundo das Ideais do Eu. Esse mundo tem assistido a mudanças significativas em relação aos seus representantes coletivos que dizem respeito à aceitação de ser tratado com psicofármacos por doença mental.
Se antes havia uma espécie de “perda narcísica” para o indivíduo ao aceitar tomar uma medicação para suportar sua vida, hoje em dia esse sentimento se encolheu brutalmente nessa situação e o indivíduo se cerca de indicações médicas precisas e imperativas que fazem um contraponto ao anterior “O remédio é uma muleta”.
É evidente que houve uma diminuição do preconceito em relação à medicação em casos que se fazem absolutamente necessários e isso é louvável, mas a diluição de um Ideal do Eu que reza “você deve dar conta da própria existência”, faz com que os sujeitos acabem por não se responsabilizar pelas suas misérias e idiossincrasias. Há uma criminalização excessiva da biologia que nos compõe, poupando o nosso narcisismo de perdas com nossa implicação subjetiva, logo poderíamos concluir que “o remédio não é uma muleta pois ataca uma desregulação do meu cérebro que é a causa do meu mal estar e que ocorre independentemente de mim”.
Além da menor procura aos psicanalistas que tentarão, no mínimo, relativizar a fala acima mencionada, o que se tem assistido é a demanda de psicofármacos endereçadas aos próprios psicanalistas, sejam eles médicos ou não. Menezes afirma que “na última década tornou-se mais freqüente os psicanalistas indicarem um psiquiatra para medicar pacientes com um perfil que antes não requeria esta indicação”.(23)
As concepções dos psicanalistas a respeito do mal estar mudaram então?
É uma espécie de paranóia, onde se tem receio de que se possa haver uma crítica à ética profissional, ao não se encaminhar um paciente em agonia psíquica para ser medicado?
É efeito da publicidade também sobre os psicanalistas levantado por Menezes? É efeito da maior pressão dos pacientes e também da sociedade por resultados?
É provável que todas essas questões estejam presentes em sinergismo , e a necessidade de resultados rápidos e de baixo custo com o tratamento seja o fulcro dessa rotação conceitual frente ao sofrimento.
É evidente que o pensar psicanalítico tem que acompanhar as mudanças que se estabelecem na cultura contemporânea, o que resulta em novas apresentações psicopatológicas com conseqüências para a prática e a teoria.
Ainda assim, a posição doutrinária frente a um grau de sofrimento da qual não há remédio permanece ilesa, e a maior demanda por psicofármacos talvez se relacione também a elementos novos da subjetividade que muitas vezes tem uma certa refratariedade à palavra, pela sua intensidade e pela falta de apoios simbólicos que a sustentem.
Sobre isso Calligaris diz que “o sujeito contemporâneo é um imigrante, um órfão e um sobrevivente: perdeu seu lugar de origem, a proteção da autoridade paterna e a fé tanto na imortalidade de sua alma quanto no progresso infinito de espécie. Essas perdas nos definem e nos mantém num luto constante, mas elas são as condições de nossa plasticidade, ou seja, de uma capacidade inédita e gloriosa de mudança.Quem não tem país, não tem pai e não conta com a eternidade, atreve-se facilmente a transformar radicalmente a sua vida”.(24)
Esse atrevimento talvez ultrapasse os limites do sofrimento individual (não esquecendo mais uma vez o quanto este é influenciado pela cultura), fazendo com que haja a partir daí a intervenção da psicofarmacologia.
V – PSICANÁLISE E MEDICAÇÃO – ARTICULAÇÃO
A questão essencial que é forçada pela clínica acomete dois pontos essenciais: qual é o sofrimento (seu grau e qualidade) do indivíduo que é impermeável à palavra? E, não menos importante e mais suscitador de dúvidas, qual o tipo de sofrimento imposto aos outros (sobretudo aos familiares) em função da conduta do indivíduo onde a intervenção psicofarmacológica se faz indispensável?
Partindo da segunda pergunta, não podemos nos esquivar frente às perturbações extremamente significativas que as condutas dos indivíduos podem produzir no meio social e especialmente no meio familiar.
Considero como emblema dessa ocorrência, o sofrimento bilateral que ocorre por conta da psicose, pois nessa condição clínica e mais especificamente no surgimento da crença delirante, todos os discursos do segmento Saúde Mental são convocados a se pronunciar.
Há, ao que se vê, mais concordâncias do que o usual nesse campo, pois para a Psiquiatria, o paciente chamado de Esquizofrênico que apresenta produção delirante mais evidente e sistematizada, é considerado de melhor prognóstico em contraste àqueles que apresentam predominância dos sintomas “negativos” que incluem abulia, empobrecimento severo do discurso e afeto embotado.
Para a Psicanálise o delírio teria uma função restitutiva para a estruturação subjetiva de paciente psicótico e seria uma tentativa (frustrada, naturalmente) de se reinvestir situações da realidade com a possibilidade de escapar ao recolhimento auto-erótico e/ou narcísico, típico dos pacientes que para a Psiquiatria são chamadas “negativos” ou residuais. A discordância maior ocorre na necessidade da medicação, que poderia, para alguns psicanalistas, inibir a formação de seu último recurso subjetivo (o delírio).
Isso é verdade também assumida pela Psiquiatria, que relata o aparecimento de sintomas negativos que se entrelaçam com os sintomas extrapiramidais causados pela medicação antipsicótica, o que pode levar à uma inibição geral dos processas psíquicos incluindo as crenças delirantes e também, eventualmente, da parte não psicótica da mente.
Esse é o maior risco que podemos correr e que a moderna psicofarmacologia se propõe a sanar ao desenvolver drogas antipsicóticas que produzam menor sedação e menor efeitos extrapiramidais, além da tentativa de melhorar a cognição dos pacientes, objetivo este verificado em estudos recentes com os neurolépticos de segunda geração.
Deve-se atentar que a crença que a medicação antipsicótica produziria a demenciação do paciente é inverossímil, e que na verdade é a própria doença, independentemente da medicação, a responsável pelo empobrecimento vivencial do paciente. E a observação quase consensual, acredito, de 50 anos de uso de antipsicóticos , é que eles diminuem a alienação do paciente pois realmente impedem uma escalada irreversível dos conteúdos delirantes que podem , em muitos casos, ocupar todo o espaço psíquico do paciente tornando-o alheio ao mundo externo.
É preciso frisar que a medicação na maior parte das vezes subtrai o investimento afetivo (pulsional ?) do Delírio, o que pode levar à uma menor atuação dentro do sistema delirante, mas não cura o Delírio , pois este resiste como um “cisto” psíquico com pouca atividade ou como resíduo intratável.
Aqui pode se beneficiar a psicanálise que está interessada sim no desejo dos pacientes, mas que necessita de um mínimo de continência por parte do analisante para que possa acontecer o encontro, a psicose de transferência...
Tive contato recentemente com uma separata oferecida por um laboratório que trata da Fobia Social, entidade bem definida em seus sintomas pelos códigos oficiais desde o DSM III , e que se caracteriza, como o nome bem sugere, por aversão ao contato social, reações intensas somáticas e psíquicas de ansiedade quando não é possível a esquiva destas situações sociais e medo exagerado se ser avaliado negativamente pelos outros. Apesar de não estar mencionado explicitamente, o texto sugere uma base biológica para o transtorno, já que existe desde Hipócrates atravessando todas as culturas e épocas e o que há de universal nesta transhistoricidade é o cérebro e seus neurotransmissores.
O texto reflete bem o modo de pensar da psiquiatria atual que se debruça nos modos de tratar essa afecção, não importando muito o significado dos sintomas mesmo considerando que estes só aparecem no contato com os outros.
Para a psicanálise, no entanto, esses sintomas de ansiedade social se constituem em “prato cheio” para investigação analítica que não conta com nenhuma elaboração pré-fabricada a respeito de sua psicogênese,que pode mostrar , como na metáfora da melodia e harmonia, as várias formas de apreensão do outro (controle, recusa da alteridade, fetichismo, exibicionismo...)
O texto do laboratório traz um resumo dos vários recursos medicamentosos que agem sobre supostas vias cerebrais envolvidas com a regulação da ansiedade, e seu impacto na atenuação dos sintomas dos pacientes. Novamente surge um ponto de articulação possível, pois o remédio vai modular as vias excitadas e/ou os inibidas do cérebro que respondem ao aparecimento do cenário social. Essa resposta idiossincrática a essa situação só se manifesta pois está relacionada com a trama desejante e fantasmática do sujeito, que não possui outros recursos para utilizar nesse encontro que se configura então como terrorífico.
Sabemos que para modificarmos essas configurações relacionais, precisaremos contar com a repetição prolongada de encontros diferentes com o objeto-analista, e até isso acontecer o paciente terá que se haver com um sofrimento extremamente limitador e da ordem do intolerável?
Mais uma vez: não é melhor atenuarmos esses sintomas sociais bloqueando (ou diminuindo) as reações, sobretudo periféricas, de ansiedade enquanto trabalhamos analiticamente?
A esse respeito cito Garrido: “Em 1995, Donovam publica no Journal of Clinical Psychiatry o primeiro Survey realizado sobre o tema com 45 analistas e 227 pacientes submetidos a períodos de ao menos 5 anos de análise. A pesquisa interrogava não só sobre o efeito observado da medicação como também sobre a evolução tanto do processo de análise como da patologia dos pacientes em análise. Vinte e um por cento dos pacientes do estudo recebiam medicação e, deste grupo, 84% haviam experimentado melhoria, não só em sua condição clínica senão também no processo analítico, a juízo dos seus analistas”.(25)
Se a psicanálise trouxe como revolução epistemológica a condição da “dignidade do patológico” como afirma Viñar citado por Violante(26), a medicação tenta restaurar a dignidade no patológico, buscando uma qualidade mínima de vida por mais vago que seja este conceito.
Atualmente uma situação que se forma com muita freqüência é do analista ter um psiquiatra que acompanha clinicamente o caso prescrevendo psicofármacos. Essa situação traz conseqüências complexas e sutis para a relação analítica que passa de alguma forma a ter um rival junto ao paciente.A princípio se formaria uma transferência “tripla” por parte do paciente: com o analista, com a medicação e com o psiquiatra.
A respeito da última ,é indispensável considerarmos as mudanças drásticas que vem ocorrendo na relação médico – paciente nas últimas décadas.Com o desenvolvimento das ciências básicas da medicina e, sobretudo com a consolidação da Medicina Baseada em Evidências, cada vez mais a prática médica tem se guiado por protocolos (ou orientação de conduta) que norteiam as decisões clínicas. Ou seja, frente a um caso com um diagnóstico específico, o clínico já teria, de antemão, uma série de condutas pré-estabelecidas, verificadas em experimentos como as mais recomendadas nas situações diversas.O médico passa a ser mais um aplicador de condutas fixadas em Algoritmos e Manuais, ficando a impressão clínica e a decisão do “como eu trato” para segundo plano, além dessa última ser considerada anti-científica, e, em muitos casos , imprudente.
O que se pretende aqui não é a discussão da legitimidade dessa mudança, que por sinal tem levado a tratamentos endossados pela verificação o que só traz vantagens, mas das repercussões na relação do paciente com o profissional da medicina.Devemos salientar que essas mudanças devem ter menos impacto possivelmente sobre os profissionais “obcecados” por uma relação com o paciente não baseada na técnica e para aqueles que cultivam o exercício da (comprovadamente eficaz)orientação terapêutica.Com o acesso fácil através das várias mídias aos resultados das pesquisas científicas empíricas, os pacientes passaram a valorizar menos a palavra do médico , se atendo mais aos efeitos conhecidos e descritos das medicações, provadas cientificamente e publicados.
Hoje em dia a variação do efeito do phármacon se transladou, em parte evidentemente, da palavra de quem o receita para o discurso cientificista e midiático. Há, portanto, uma diluição da relação médico–paciente e uma substituição pela relação ciência-paciente.
Se antes os pacientes diziam “o senhor acertou com o remédio” para o médico, agora dizem “o Prozac me fez bem, doutor”.
A transferência para o psiquiatra parece que migrou ,em parte ,insisto, para o discurso empírico que sustenta a palavra desse profissional, provocando uma fusão das transferências para a medicação e para o psiquiatra representante da ciência. Ao que se vê, a transferência então é dupla e não tripla como supomos e a Psicanálise “rivaliza” com essa transferência fusionada.
Há uma condição diferente quando o psiquiatra e o psicanalista são a mesma pessoa, e nesse caso especial a transferência é toda condensada sobre a mesma figura o que implica em conseqüências enormes.
A mesma figura que enuncia que se deve medicalizar e aliviar um sintoma, diz que é preciso dissecá-lo e elaborá-lo. Mensagens contraditórias não passam “despercebidas” e podem aumentar a confusão do paciente, e a ansiedade produzida pode inviabilizar o processo analítico. Essa é só uma hipótese dentre as inúmeras que podem surgir dessa “figura combinada” (utilizando o termo de Melanie Klein) e que podem obstaculizar a relação com o paciente.
Como psiquiatra e confesso prescritor de psicofármacos, penso que na relação custo – benefício vale a pena na maioria dos casos se utilizar de um (terceiro) elemento medicamentoso quando muito necessário. A primeira vantagem, ao meu ver, tangeria até o efeito psíquico da medicação, pois como a transferência com o psicanalista realmente incide sobre a sua palavra- o seu saber – o efeito placebo aqui poderia ser intensificado, valeria mesmo o efeito phármacon.sw3”w
Outra vantagem seria a melhor observação da transferência com a medicação pela maior número de encontros, além da observação sobre as relações entre as transferências.
Recordo–me de uma paciente muito cooperativa e polida que demonstrou toda a sorte de sentimentos hostis para comigo por intermédio da medicação, que era usada conforme sua vontade, sem consideração com minhas recomendações.
A questão dos psicofármacos e de sua comprovada eficácia em certas condições se relaciona estreitamente com a Psicanálise por provocar alterações em todas os processos que são pertinentes àquela: a transferência, as pulsões, a necessidade de elaboração simbólica, de sofrimento.
A demanda por maiores conhecimentos sobre a articulação destes dois saberes instigou a criação de uma nova disciplina: a Neuropsicanálise que realizou sua 1ª Conferência Internacional em 2000, além da criação da revista Neuro Psychoanalysis em 1999. (27)
Apesar dos progressos notáveis da psicofarmacologia e da tentativa recente da articulação entre a Psicanálise e a Neurociência, permanece obscura a pergunta essencial proposta por esse texto. Essa resposta depende de uma postura individual, ética e filosófica que geralmente são insuficientes. Weber cita Tolstói a respeito da vocação da ciência: “ela não tem sentido, pois que não possibilita responder à indagação que realmente nos importa: “Que devemos fazer ? Como devemos viver?. (28)
E acrescento, em relação à minha postura profissional e pessoal: “Quanto devemos sofrer?”.
Talvez uma adaptação da célebre frase de Lincoln nos ajude, então:
Você pode sofrer muito por algum tempo,
Pode ter algum sofrimento por todo o tempo,
Mas não pode sofrer muito por todo o tempo.
A dúvida insistente recai sobre esse “algum”, tanto no seu aspecto quantitativo – qualitativo, como no temporal.
Referências Bibliográficas
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