Durval Mazzei Nogueira Filho
Espírito do tempo.
Aí está um tema espinhoso. Em qualquer um dos sentidos que esta expressão quer dizer. Desde um tema de muitos pontos de partida até um tema que sangra quem se acerca.
Uma das razões desta dificuldade repousa no que se pode cunhar o espírito do tempo. Uma característica marcante deste espírito é a esperança de que não haverá dor, não haverá sofrer, não haverá violência, não haverá, enfim, manifestação anímica que não se resolva externamente a um ato de sujeito. O que é proposto, proposta à qual não está ausente uma quota de gozo, resume-se à possibilidade de qualquer fenômeno receber uma explicação por meio de algum dado objetivo e anterior ao ato do sujeito. Do amor à consciência passando pela angústia e a violência, há algum gene, há alguma enzima, há, enfim, algum processo biológico, a caminho do esclarecimento, que subjaz e opera estes fenômenos todos. Estudá-los, esclarecê-los são os antecedentes lógicos da possessão destes mecanismos. Possui-los equivale a manipulá-los por intermédio de uma nova tecnologia, a ser desenvolvida.
Este último passo indica que logo mais viver vai ser muito fácil.
A idéia de monotonia não exerce nenhum efeito no entusiasmo de quem fala favoravelmente à maravilha que seria viver sem dor, angústia, violência em uma cultura que pode descartar o acaso. Sloterdijk (2000) problematiza se esta “antropotecnologia futura avançará até um planejamento explícito de características, se o gênero humano poderá levar a cabo uma comutação do fatalismo do nascimento ao nascimento opcional e à seleção pré-natal (p.47)”. O que é pergunta inquietante no filósofo alemão é exultação na letra do biólogo molecular norte-americano Silver (2001): “é claro que, só porque pode ser feito, não implica que será feito. Só quando uma tecnologia fornece um meio para satisfazer um desejo ou uma necessidade consciente é que as pessoas se dispõem a pagar por ela. E quanto mais forte o desejo ou necessidade, tanto maior a disposição para superar os obstáculos que estão no caminho (p.256)... Não há dúvida de que os pais do futuro terão condições de fazer seleção de embriões, baseados em longas listas de características genéticas (p.257)”.
Apenas um leitor tendencioso torceria o sentido do escrito ao entendê-lo como um tributo à dor, à angústia, à violência. Trata-se, na verdade, de salientar uma vocação totalitária no discurso científico que crê qualquer enunciado capaz de abordagem e resolução pela metodologia científica. Quando tal se promete está-se mais claramente no campo da ideologia que no campo da ciência. E como tais enunciados tocam em problemas cotidianos de cada um e prometem nada menos que a erradicação daquilo que, muito proximamente, toca nas emoções mais universais e primitivas da pessoa faz-se um jogo de convencimento devastador. Quem não perdeu um ente querido e desejou que esta morte nunca ocorresse? Quem não perdeu um grande amor pela intromissão de algum fenômeno relacionado à angústia? Quem não viveu uma dor, física ou anímica, que parecia infinita? É digno de nota descobrir que a edição 10 da versão brasileira da Scientific American escalou uma repórter, Carol Ezzel (2003), para noticiar “a neurociência do suicídio”. O detalhe tragicômico é que a infeliz repórter perdeu a mãe como decorrência de um ato suicida. Tal apelação permite, já que Deus morreu, que a frase final da reportagem ‘científica' seja: “talvez algum dia a ciência venha compreender melhor a base desses atos pungentes e que famílias como a minha sejam poupadas (p.59)”. Ouvir, com a marca da qualidade científica, que por meio de algo muito simples, tal como a ingestão de um medicamento ou pela inclusão de uma nova cadeia de ADN viral ao genoma, pode-se viver imune a tudo isto é bastante felicitado. Ainda mais na medida em que basta ao sujeito apassivar-se perante uma ação externa.
Os enunciados desta promessa de paraíso biológico, então, recorrem ao artifício, se não a uma genuína falácia, de acenar com a extinção do sofrer, com a extinção dos azares genômicos, com a extinção do que faz a imperfeição humana. E, é claro, em um mundo midiático um aceno deste teor tem o poder de seduzir o mais renitente niilista. E surge com a velocidade e a insistência de um hit pop. Invade as páginas dos jornais, revistas leigas, revistas de divulgação científica como um bálsamo. Quem não prefere que seu filho incômodo não seja portador de uma configuração cerebral especial que define o seu déficit de atenção ou seu estilo delinqüencial? Não há bálsamo, não há absolvição mais confortável. Afinal de contas é uma verdade científica.
Para além de querelas sem sentido sobre a aposta na felicidade para todo o sempre que os sonhos da razão prometem, há algo mais importante a ser ressaltado. Haverá possibilidade de distinguir a ideologia do determinismo biológico de uma perspectiva social autoritária? Provavelmente os estudos genéticos dirão que não, pois, salvo as características pontuais, de transmissão restrita a um único gene, todas as outras características, e entre elas a esmagadora maioria dos estados anímicos, depende do meio para se estabelecerem ou desencadearem-se. Portanto, apenas um meio – para além de biológico, social – estável e controlado garantiria o bom andamento da expressão gênica. Assim, a via que crê em uma descrição naturalista do ser, como demanda boa parte da comunidade científica, “que não obrigue atrelar o conceito de pessoa a um determinismo biológico, nem proponha uma moral normatizadora (p.16)” seja possível, como supõe Land (2001) apoiado em Daniel Dennett, talvez não passe de mais um devaneio onírico da razão. Pois, para voltarmos ao tema, além de fato biológico, a angústia é fato subjetivo, é fato de linguagem e, portanto, é fato em um laço social. Supor sua extinção ao manipular o fato biológico (Changeux, 1979) que – admitamos como hipótese – é primário, é uma proposição que surpreende pela puerilidade. Surpreende pela atribuição de fragilidade ao sujeito, como se a angústia fosse inevitavelmente uma força que assoma a subjetividade sem nenhuma chance de derivação, tornando única alternativa erradicar a fonte biológica. E, mais que tudo, surpreende, pois os biólogos furiosos só podem pensar nesta radical naturalização do fenômeno humano apenas porque, mais do que em qualquer era da história humana, a era que habitamos é a que mais afasta o ser da natureza. Os urbanos, os virtuais encontram o natural como turismo exótico, amplamente dissociado de qualquer lide existencial. Experimentassem retirar a angústia do pitecantropo ou dos primeiros sapiens para ter uma idéia da marcha evolutiva humana.
A medicação.
Enfim, enquanto a engenharia genética não vem, enquanto os nascimentos programados em detalhe não vêm, temos em mãos o mais primitivo avatar desta perspectiva naturalista: a medicação psicoativa.
A medicação psicoativa, como nota Widlöcher (1997), é uma substância que não produz – pelo menos desde o início de sua ação farmacológica e em doses controladas – um desatino psíquico, um falseamento da realidade, uma aceleração descontrolada. Fenômenos que acompanhavam os primeiros fármacos potentes isolados ou sintetizados pelos laboratórios. Foi assim com os opiáceos, a cocaína e a mescalina, ainda no século XIX; as anfetaminas no final dos anos 20 e o LSD e a psilocibina nos anos 40. Não que essas drogas não tivessem sido testadas como remédios. Os opiáceos foram prescritos contra indisposições estomacais, a cocaína prescrita como estimulante, as anfetaminas contra a asma, o ganho de peso e a melancolia. E houve quem propusesse o LSD e a psilocibina para o tratamento de neuroses graves (Sandison, 1997).
Mas, enfim, o risco destas drogas suplantaram seus benefícios, com as exceções conhecidas sobejamente até os dias atuais. Ou, em outra alternativa, não se apostava tanto assim que um artefato químico pudesse substituir as terapêuticas baseadas no laço social, efetivas por meio da linguagem. Esta é uma maneira de notar a importância das crenças operantes num dado momento de uma dada cultura para a organização das estratégias terapêuticas. O retorno triunfal de derivados anfetamínicos para o tratamento do transtorno do déficit de atenção, apesar da anfetamina mais recomendada exibir os mesmos problemas de tolerância, dependência e desencadeamento de estados psicóticos que as usadas para alterar estados de consciência, parece não preocupar muito.
Embora o ópio, a cocaína, a mescalina, a anfetamina, o LSD terem sido levados a público antes, como datamos acima, a era da psicofarmacologia terapêutica teve início com a descoberta casual dos efeitos tranqüilizantes nas manifestações psicóticas da clorpromazina. 1950 foi o ano de sua síntese por Charpentier, 1951 o ano de sua aplicação médica por Delay e Deniker. Poucos anos após, Khun apresentou a imipramina que se reuniu à iproniazida como os primeiros anti-depressivos (Ey, 1974). A característica principal destas drogas é, ao contrário das anteriormente citadas, não alterar de maneira nítida os processos usuais de pensamento, percepção e vivência. Pelo contrário, demonstraram que estados psíquicos espontâneos e desviantes de uma particular concepção de eficiência mental – como agitação, delírio, alucinação, inibição, lentificação – são claramente melhorados pelo uso hábil destas drogas. Laurent (2002) faz um comentário interessante a respeito do reconhecimento do efeito das drogas, embora sem a intenção de desenrolar uma psicofarmacologia psicanalítica, nota que “se o significante corta o corpo à sua maneira, o saber contido no medicamento corta-o de outra forma. Ele faz o sujeito conhecer um gozo... absolutamente desconhecido (p.32)”. A referência a Laurent deve servir de base ao discurso psicanalítico a propósito das drogas terapêuticas e a propósito das drogas de abuso, originalmente terapêuticas ou não.
Não resta dúvida que, junto aos outros tratamentos biológicos (ECT, estimulação magnética transcranial, psicocirurgias), a medicação veio ocupar um lugar de destaque, facilitando e simplificando a ação psiquiátrica. Representou o início de uma política de desospitalização e trouxe a psiquiatria para a cidade. A prática psiquiátrica adquiriu, por fim, uma estética similar às outras especialidades médicas. O psiquiatra passou a exibir um receituário confiável.
A política.
Mais que isso!
A medicação veio em auxílio da principal atividade terapêutica desempenhada pelos psiquiatras: a psicoterapia, de fundamento psicanalítico ou não. Em um primeiro momento, embalada por um claro discurso de colaboração. Por mais que já fosse, desde os momentos inaugurais, perceptível que a integração de um tratamento com o outro raramente somasse dois. Apesar desta dificuldade epistemológica, não havia espaço para que surgissem propostas que contestassem, de maneira nítida, a vocação complementar destas terapêuticas de natureza distinta.
Com o passar dos anos, entretanto, esta disposição à integração, apesar de não desaparecer (Albeniz e Holmes, 1996; Amini, 1996; Beitman, 1989; Brockman, 1990; Paykel, 1995), foi acossada pela multiplicação de um discurso que se sustenta em uma lógica de simples substituição. Tais autores crêem que se uma determinada droga, com um determinado mecanismo presumido de ação biológica, exerce o efeito de minorar a angústia em alguém, a natureza íntima da angústia está solucionada. O mecanismo presumido das drogas indicadas para a angústia, na atualidade, relaciona-se ao aumento da disponibilidade ou ao bloqueio da ação de neurotransmissores. Serotonina, noradrenalina, dopamina e o GABA (ácido gama amino-butírico) são os principais neurotransmissores em voga. Neurolépticos, em geral, bloqueiam os receptores, com maior ou menor especificidade, regulando o excesso de ação neurotransmissora. Os antidepressivos, na mão contrária, presume-se que favoreçam a disponibilidade sináptica de neurotransmissores, favorecendo a função transmissora nesta estrutura interneurônios. Benzodiazepínicos e estabilizadores de humor, à exceção do carbonato de lítio, relacionam-se mais claramente com as funções do sistema GABA.
Há, então, uma gama razoável de conhecimento à disposição de quem quer se informar. E, é óbvio, não se trata de questioná-lo enquanto conhecimento provisório como, aliás, é todo e qualquer conhecimento que a ciência produz. Não serve a generalizações que o perpetuem. É uma foto, detalhada e boa foto, decerto, mas de não mais que um momento da constituição do conhecer.
Apesar da boa ciência assim se distinguir, não foram poucos autores que passaram a lançar mão da lógica acima exposta. Se porventura um antidepressivo diminui, influencia ou mesmo aumenta a angústia de uma pessoa, todo o resto que se falou, escreveu, refletiu sobre a angústia deve ser revisto, senão simplesmente abandonado (Guthrie, 1996; Freedman, 1992; Sheehan, 1982). Há, a partir do reconhecimento deste fenômeno, a evidência que a angústia deve-se a algum desequilíbrio na função habitual dos neurotransmissores que a medicação, ao interferir, corrige. As contradições desta simplicidade, se bem que conhecidas, não têm o poder de mudar o discurso. As outras hipóteses sobre a angústia, da filosofia à psicanálise, ficam como erros e devem ser substituídas pelo novo saber. Há aqui, inclusive, uma noção de hierarquia do conhecimento que, por tão disseminada, passa como verdade indiscutível: a conclusão pela via da metodologia científica é superior. Advertências como as feitas por Moles (1990) e Dubos (1996), a propósito da irracionalidade relativa a uma crença tão arraigada, não são consideradas seriamente. E a principal conseqüência de um raciocínio tão singelo é tão singela quanto o raciocínio: se assim é, abandone-se as práticas que não se sustentam pela evidência científica pela prescrição de medicamentos. Entre elas a teoria e a prática psicanalíticas. Se a angústia é a ausência de uma ausência – ausência de um significante no Outro, como desenvolve Lacan (1997) em seu seminário – não há mais interesse em desenvolver teoria por outro método ou não há mais interesse na atuação terapêutica sustentada por um desenvolvimento teórico deste tipo.
Trata-se, portanto, de uma perspectiva onde impera a lógica da substituição dos discursos. Como se fossem discursos intersubstituíveis e a substituição não trouxesse conseqüências para a observação do real. Toma-se como soberano critério a rapidez na produção do efeito sobre o sintoma. E o que resta ao sujeito, o que se pede, como se o considera resume-se à obediência à prescrição e ao aconselhamento do médico. Pede-se, considera-se, portanto, o sujeito como assujeitado, no sentido de submisso, a um discurso. Um discurso particular, entre os discursos do mestre e universitário (Lacan, 1992), que não permite a suposição de nenhum saber que seja efetivo sobre o sintoma. Ou melhor, todo o conhecimento efetivo é externo ao sujeito, a sua história, a seus projetos, demandas e ambições. É de seus neurotransmissores, receptores e sinapses que a angústia fala e é para seus neurotransmissores, receptores e sinapses que a terapêutica dirige-se. Se há um homem ou mulher, rico ou pobre, Pedro ou João, satisfeito ou insatisfeito não conta. A angústia e a neurotransmissão pouco têm com a história singular à exceção, se é que há aí história, de qual manifestação patológica pais, avós, tios e primos sofrem ou sofreram. Se há entre eles mais dois, três ou quatro, o enigma está resolvido. Evidentemente.
Esta questão seria um debate. Um interessante debate se a tentação de fechar e controlar o espaço pelos especialistas e profissionais se restringisse às idéias. Mas, não. Esta tentação é mais ampla. A terapêutica que se faça evidente por meio da operação redutora, descrita acima, há que se tornar obrigatória (Klerman, 1990). Felizmente, a tentação totalitária e regulamentadora, apesar de um risco onipresente, recebem pontuações que a balizam sem que desapareça (Stone, 1990).
Mesmo que haja razão neste desenvolvimento que, em suma, salienta uma indevida restrição do sujeito, do adoecer e da terapêutica ao terreno biológico. Mesmo que este desenvolvimento seja simpaticamente verdadeiro, fica o psicanalista autorizado a quê? A responder a um discurso ideológico com outro discurso ideológico? Desafiar o homem sináptico com o homem lingüístico? Sim, é possível, mas não é político.
É possível, mas não é político. Por algumas razões. Razões ao mesmo tempo indesejáveis e inevitáveis: o mercado das terapêuticas e a elevação do discurso tecnocientífico como aquele que decide. E decide, pois é colocado como distinguido da estrutura sociocultural que o determina e da tradição humanística que o sustenta. E este movimento que parecia sepultado pelo novo espírito científico, no sentido de Bachelard (1978) e Heisenberg (1999), renasceu exibindo insuspeito poder de prestidigitação e fascínio que causa qualquer linguagem decifrada por poucos, mas que alcança o coração e a mente da população. Dubos (1996) lembra que “raras vezes se reconhece que cada tipo de sociedade tem enfermidades peculiares: de fato cada civilização cria suas enfermidades (p.71)” e não é demais agregar que cada tempo histórico de uma civilização inaugura e sacramenta uma prática terapêutica. A prática contemporânea estendeu ao terreno anímico que a doença, o sofrer e a terapêutica não requerem e não se referem ao sujeito. Medicar é o que há hoje. Permanece a promessa da manipulação genética no ser vivo ou por nascer.
Então, é possível, mas não é político reduzir o que o psicanalista tem a dizer sobre a medicação a um gueto ideológico. Corresponde a reduzir o dizer do psicanalista à recusa e à negação de qualquer proposição que venha destas bandas. E, como qualquer psicanalista sabe desde o berço, ouvir não é igual a identificar-se e tornar-se o que se escuta. E como qualquer psicanalista sabe desde a primeira mamada, não há saber que não passe pelo significante, pela marca mnêmica ou pela operação do traço unário. E como qualquer psicanalista sabe desde a metáfora paterna, não há sujeito sem outro e sem o Outro da linguagem e da cultura. Que como a cultura de não tão hoje assim aposta na utopia que a ciência há de instaurar no planeta e a pequena pílula vendida na farmácia é um trechozinho desta utopia, não há o que recusar e o que negar. E não recusar e não negar não é, em absoluto, assumir o discurso médico que confere a cada modalidade de sofrimento, a cada demanda mais forte que a decisão de não repeti-la, o estatuto de enfermidade, transtorno, distúrbio ou o nome que a classificação do momento dê. Assim como não equivale a assumir que não há sujeito ou saber inconsciente naquela manifestação e que o traço que distingue o normal do patológico seja um traço biológico qualquer. Traço distintivo que não esconde uma metafísica queiram ou não os positivistas lógicos que aclamam perspectivas deste jaez.
Psicanalista: quê fazer?
Assim, como lista Bogochvol (2001), perde o psicanalista veja na psicofarmacologia apenas um mito criado pela indústria farmacêutica. Pois, muito mais que um ato industrial, esta perspectiva se faz presente na academia e o ensino do jovem psiquiatra, o ensino do jovem psicólogo não esconde este relevo. Responder ‘tudo que vocês aprenderam é um mito' não cola. Precisar os conceitos e trabalhar com este novo contexto é mais profícuo.
Perde o psicanalista que equipara as substâncias de efeito psíquico, reconhecendo-as exclusivamente como produtoras de embriaguez ou de estados alterados de consciência. Mesmo que tal raciocínio parta do sofisticado conceito de ‘pharmakon' (Coura, 2001; Derrida, (1997)) que define cada droga como remédio, tintura ou veneno ao mesmo tempo. Não é falsa a noção de ‘pharmakon', mas é falsa a presunção que os psicofarmacólogos não tenham esta noção, mesmo aqueles a léguas de Platão ou de Derrida. Não se justifica, claramente, a ilação de que se um fármaco interfere em uma determinada manifestação psíquica, significa que o mecanismo íntimo da manifestação está à mão do farmacologista. Não obstante, não notar a diferença entre a dietil-amida do ácido lisérgico e a clomipramina ou o citalopram é difícil. Widlöcher (1999) é suficientemente claro ao descrever que antidepressivos e ansiolíticos seriam capazes de “restabelecer um raciocínio normal e o estado afetivo habitual nos sujeitos que, alguns dias antes, desenvolviam raciocínios e estados de humor mórbidos sem, no entanto, apresentar a mínima perda de lucidez intelectual. Até então, compreendia-se que um produto químico criava um pensamento louco (p.41)”. Mesmo que se possa atribuir excessivo otimismo ao psicanalista francês, dado que o uso crônico destes mesmos fármacos é acompanhado de alterações de memória, diminuição da libido e, por vezes, desinteresse pelo mundo dos objetos e uma restrição das alternativas existenciais que respondam à angústia. Bem como não é incomum a ocorrência de fenômenos como a tolerância e a dependência, relativas à ação das drogas terapêuticas. Este último comentário não contradiz o que é desproposital na equiparação pura e simples de substâncias que são distintas em seus efeitos, como são distintos as formas de distribuição e o discurso que as embala, apesar de deixar em relevo que não é falsa a noção de ‘pharmakon'. Mais uma vez demonstra-se que não há bioquímica pura e a identificação do médico ao bem não faz de qualquer ato médico um bem em si mesmo.
Perde o psicanalista que cinde o saber. Perde quando reconhece a ação e a eficácia dos psicofármacos, mas julga que um temor fóbico influenciado pelo uso do medicamento não traz conseqüências para a clínica psicanalítica. Não é mentiroso que a teoria, o método e o objeto da psicanálise não são os mesmos que os da psicofarmacologia. É verdadeiro, como diz Magalhães (2001), que o desaparecer de um delírio pela ação de um fármaco não impede que o psicanalista permaneça analisando um sujeito psicótico. Mas, também é verdadeiro que se Freud viu no delírio uma forma do psicótico ordenar o furo no simbólico e, sem o delírio artificialmente transformado por um neuroléptico qualquer, o paciente não se desordena radicalmente, este fenômeno torna-se obrigatoriamente objeto de teorização psicanalítica. O mesmo se dá em qualquer outra situação clínica na qual o uso de um medicamento colabora para o desembaraçamento de um sintoma. Por mais que o efeito placebo traga mais desconforto do que sugere a crença na bioquímica pura, crença impossível de ser encampada por psicanalistas, interpretar a ação de um medicamento relacionando-a ao cobre da sugestão no interior de ouro da relação transferencial traz alguns problemas. O principal deles é apostar demais no saber psicanalítico, totalizando-o; e como corolário apostar de menos na formação psicanalítica e no desejo do analista. É de conhecimento corrente que poucos dos fascinados pela psicofarmacologia têm a sorte de encontrar a psicanálise em seu caminho. Atribuir a este técnico ‘des-transferenciado' um manejo tão hábil e instantâneo da transferência a ponto de produzir um resultado, geralmente, longe do espetáculo que a propaganda propaga e alguns acadêmicos acalentam, mas suficiente para que o deprimido marcadamente inibido dê alguns passos e o fóbico atravesse a porta de sua casa é um exagero que só pode sustentar-se numa psicanálise que postula que não há falta. É mais fácil um equívoco deste tamanho, que obedece a uma lógica da completude, freqüentar as proposições cientificistas e não as proposições psicanalíticas. A perspectiva de Viganó (2002) é mais notável: “a biologia... interroga... a natureza do inconsciente, e as relações do tratamento farmacológico com a cura psicanalítica... interroga a natureza do sintoma (p.63)”.
Chegamos ao último termo da lista de Bogochvol (2001): “os psicofármacos agem, são eficazes, e isto tem importância para a psicanálise, afetando seu campo que tem numerosas intersecções com a psiquiatria (p.58)”. Contudo, há que salientar que a intersecção não supõe harmonia de saberes. Aliás, campos epistemológicos interseccionam se são distintos. Nenhuma intenção, portanto, em apoiar neuropsicanálise, biopsicanálise ou qualquer outra forma engenhosa de subtrair um saber em outro saber, notadamente saberes de métodos e proposições teóricas tão distintos. Mas, mais modestamente, indicar que, à exceção de uma perspectiva essencialmente economicista, não há escanteio da psicanálise a partir dos psicofármacos. Embora o psicanalista possa colaborar de maneira desastrosa para que um divórcio letal faça o papel de uma faca de dois gumes. A ignorância, não a douta ignorância tão útil na direção de uma cura analítica, é a operadora deste divórcio letal. Pois, o ignorante em um mundo envolto pelo marketing – e o marketing farmacológico é poderoso e presente e assombra pelo excesso que toda campanha publicitária faz verdade. Assim, vale mais ao psicanalista argüir o fármaco da maneira como o fármaco argue a psicanálise do que não se interessar um pingo por ele. Os poderes do fármaco estão distantes do que é prometido e o benefício que traz ao sujeito é parcial, mesmo quando não marcado pelos constantes efeitos colaterais, e tende a diminuir com a cronificação do uso. Mas, como afirma Laurent (2002), há que ser reconhecido o novo recorte no campo do gozo que o fármaco estabelece. Reconhecido este efeito, não esquecer que o sucesso dos fármacos não se fia apenas neste efeito no campo do gozo. Fia-se também na promessa da ciência biológica definir os contornos de uma nova utopia. A utopia dos imbecis, é certo. Mas, qual das utopias não é imaginada para imbecis?
É melhor, deste modo, trazer o fármaco para a teoria psicanalítica no lugar de atrapalhar-se com ele. Viganó (2003) escreve um princípio exemplar de teorização. Diz: “para nós o fármaco é um medicamento, isto é, uma mediação graças à sua natureza que é composta: biológico-química e mágico-cultural. A plasticidade neuronal nos permite usar suas propriedades inibidoras e facilitadoras na modulação dos circuitos de suplência e de reorganização do sintoma, se nós soubermos fazer (p.80)”. Portanto, receber em análise um sujeito sob medicação ou mesmo recomendar a medicação para um sujeito em análise é introduzir, certamente, um elemento extraterritorial ao discurso analítico. Acolher este elemento estranho, todavia, não é compartilhar necessariamente o imaginário ideológico da biologia, uma vez que há como teorizá-lo e discursar a respeito do fármaco dentro da senda psicanalítica.
Em última instância, o fármaco é um modulador de gozo que – por hipótese inicial – recorta o campo do gozo de uma forma diferente do que fez o significante e, muito provavelmente, de forma também diferente do estilo da adicção farmacológica. A conseqüência mais provável deste ‘efeito psicanalítico' do fármaco é, ao atingir o cenário aonde o sujeito ainda não foi formulado, resultar que a demanda alienada no significado do Outro possa refluir mais nitidamente à mensagem que a gera – o significante da falta no Outro – favorecendo que o fantasma se espraie pela cadeia metonímica, mobilizando a articulação possível do desejo na demanda. E, desse modo, a psicanálise.
Trata-se, então, de mais um trabalho para nós e não a exclusão da psicanálise.
BIBLIOGRAFIA.
Albeniz, A; Holmes, J. Psychotherapy integration: its implications for Psychiatry. Br. J. Psychiatry, 169, p: 563-570, 1996.
Amini, F. Psychotherapy: an integrated psychobiologic view. Syllabus and. Annual Meeting. American Psychiatric Association. P: 62-63, 1996.
Bachelard, G. O novo espírito científico. São Paulo: Abril Cultural, 1978.
Beitman, BD; Goldfried, MR; Norcross, JC. The movement toward integrating the psychotherapies. Am. J. Psychiatry. 146, p: 138-147, 1989.
Bogochvol, A. Sobre a psicofarmacologia. In. Magalhães, M. C. R. (org.) Psicofarmacologia e Psicanálise. São Paulo, Escuta, 2001.
Brockman, R. Medication and transference in psychoanalytically oriented psychotherapy of the borderline patients. Psychiatr. Clin. of North. Am. 13, p: 341-353, 1990.
Changeux, J. P; Bergès, J; Laurent, E; Miller, J-A L'homme neuronal. Ornicar?, 17/18, p: 137-174, 1979.
Coura, R. A drugstore de Platão (os psicofármacos). In. Magalhães, M. C. R. Psicofarmacologia e Psicanálise. São Paulo, Escuta, 2001.
Derrida, J. A farmácia de Platão. São Paulo, Iluminuras, 1997.
Dubos, R. Los sueños de la razón. México: Fondo de Cultura Econômica, 1996.
Ey, H; Bernard, P; Brisset, C. Tratado de Psiquiatria. Barcelona: Toray-Masson, 1974.
Ezzel, C. A neurociência do suicídio. Scientific American Brasil, 10, p: 52-9, 2003.
Freedman, DX. The search: body, mind and human purpose. Am J. Psychiatry. 149, p: 858-866, 1992.
Guthrie, E. Emotional disorder in chronic illness. Psychotherapeutic interventions. Br. J. Psychiatry. 168, p: 265-273, 1996.
Heisenberg, W. Física e Filosofia. Brasília: Editora Universidade de Brasília/Edições Humanidades, 1999.
Klerman, G. The psychiatry patients rights to effective treatment. Am. J. Psychiatry, 147, p: 416-419, 1990.
Lacan, J. O Seminário 10: A angústia (edição não autorizada). Recife: Centro de Estudos Freudianos, 1997.
Lacan, J. O Seminário 17: O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992.
Land, M. A mente externa. A ética naturalista de Daniel Dennett. Rio de Janeiro: Garamond/FAPERJ, 2001.
Laurent, E. Como engolir a pílula? Clique – Revista dos Institutos Brasileiros de Psicanálise do Campo Freudiano, 1, p: 24-35, 2002.
Magalhães, M. C. R. Haverá psicanálise no século XXI? ou A Psicanálise tem futuro? In. Magalhães, M. C. R. (org.) Psicofarmacologia e Psicanálise. São Paulo: Escuta, 2001.
Moles, A. A. As ciências do impreciso. São Paulo: Civilização Brasileira, 1990.
Paykel, ES. Psychotherapy, medication combination, and compliance. J. Clin. Psychiatry. 56 (suppl. 1), p: 24-30, 1995.
Sandison, R. LSD therapy: a retrospective. In: Melechi, A. (org.). Psychedelia britannica. Hallucinogenic drugs in Britain. Londres, Turnaround, 1997.
Sheehan, D. Panic attacks and phobias. New Eng. J. Med. 307, p: 156-158, 1982.
Silver, L. M. De volta ao Éden. Engenharia genética, clonagem e o futuro das famílias. São Paulo: Mercuryo, 2001.
Sloterdijk, P. Regras para o parque humano. Uma resposta à carta de Heidegger sobre o humanismo. São Paulo: Estação Liberdade, 2000.
Stone, A. A. Law, science and psychiatric mal practice: a response to Klerman's indictment of a psychoanalytic psychiatry. Am. J. Psychiatr, 147, p: 421-8, 1990.
Viganó, C. O fármaco e a droga. Clque – Revista dos Institutos Brasileiros de Psicanálise do Campo Freudiano, 1, p: 62-9, 2002.
Viganó, C. A clínica psicanalítica psicanalítica na prática institucional. Opção Lacaniana, 38, p: 73-83, 2003.
Widlöcher, D. O cérebro e a vida mental. Pulsional – Revista de Psicanálise, 99, p: 40-50, 1999.