CAMILA FLABOREA [1]
Meu querido irmão, hoje é seu aniversário!
Não me lembro de ter escrito a você nenhuma carta. Em tempos de internet, as comunicações têm sido rápidas e rasas. Nos separam uma geração, muitos quilômetros e uma história familiar.
Mas hoje é seu aniversário e você completa 21 anos. Às vezes penso que eu poderia ser sua mãe, tão grande é a distância entre a primogênita que sou e você, o temporão…então hoje, pela primeira vez, te escrevo uma carta.
Estamos aqui imersos num Brasil de tempos sombrios, mano. Tenho escutado muito Belchior, sabe? Ele diz que “ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro”. Em 2018, morremos um pouco juntos, você e eu. Unidos na preocupação com uma eleição funesta e perplexos com o que se passou dentro da nossa família. Mas agora, os dias se passam entre declarações criminosas, isolamento e medo, muito medo. Tenho amigos que saíram do país por não conseguirem trabalhar aqui. Agora, não têm trabalho em parte alguma. E você, ainda jovem, perseguindo seus sonhos em meio a isso tudo. Esse seu sonho de ser artista, de poder tornar visível a beleza e a dor do mundo. Haverá espaço para a sua delicadeza nesse mundo, meu querido? Me pergunto o que será dos poetas em tempos tão brutos, especialmente dos jovens poetas como você, que não têm essa casca que os anos vão criando em nós.
Belchior sempre foi um cantador da juventude, da luta e da esperança. Nessa semana, ouvi uma amiga contar que há poucos dias ouvia essa música, que se chama Um sujeito de sorte, e caiu em prantos. Belchior jura que “Deus é brasileiro e anda do meu lado” … ah, meu irmão, temos carecido muito de Deus, de fé e de esperança. Não esse Deus repressor, não me entenda mal, não falo disso. Mas falo de proteção, de algum senso de divino e força maior que todos nós...quero crer que esse Deus te protege, assim como Belchior sentia que o protegia.
Promete pra mim que nesse ano você estará forte? Se possível, mais forte? Na luta pelas suas utopias - não deixe que elas morram - e pelo seu direito inalienável de viver sua vida como quiser? Promete que você estará perto de seus amigos e que vocês cuidarão uns dos outros, e se respeitarão nas suas diferenças e saberão ouvir e calar? Mas que também você continuará gritando alto, bem alto, sua voz jovem e cheia de certezas de que o “novo sempre vem”?
Quando eu fiz 21 anos, minha vida era bem diferente da sua. Pude andar por onde quis até encontrar a psicanálise, que é meu amor e meu ofício. Freud, em um texto que eu adoro, ao falar sobre o que viria depois da guerra, diz: Reconstruiremos tudo, faremos tudo melhor e mais bonito. Esse texto se chama Sobre a transitoriedade.
Sei que hoje tudo parece definitivo, as dificuldades intransponíveis. E por isso mesmo, quero te oferecer como presente de aniversário algumas palavras de quem já vai se aproximando dos 50 anos. Te ofereço a palavra transitoriedade, ela mesma, simples assim. Uma palavra como presente de aniversário. Mas a palavra carrega ideias poderosas. Vai passar, reconstruiremos nossas bases e nossas vidas de forma mais livre e mais digna. Vamos continuar lutando para que essa realidade chegue logo, o mais breve possível. Conte comigo. Você não está só. E saber que você e tantos jovens como você, com uma consciência infinitamente mais desperta do que a que eu tinha, estão gritando juntos, todos os dias nas janelas, me faz ter ainda mais esperança. Nesse ano não morreremos, nem eu, nem você. Vamos juntos, vivos, cada uma a seu modo, enfrentar, em resistência, nosso dia-a-dia. É também no cotidiano e nas pequenas coisas que nossa luta acontece.
Meu querido, hoje é seu aniversário. Comemore! Temos “chorado e sofrido pra cachorro”, mas sairemos mais fortes e mais juntos do que nunca. Não se preocupe com o papai e com a mamãe. Eu cuido deles. Se ocupe do seu futuro e lute por ele, com suas belas palavras e imagens e com todo o seu coração!
P.S. Segue o link pra música do Belchior, mas essa é a versão do Emicida, que eu sei que você adora.
https://youtu.be/PTDgP3BDPIU
[1] Psicanalista, aspirante a membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, integrante da equipe editorial deste Boletim.