PUBLICAÇÕES

    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    60 Setembro 2021  
 
 
CRÔNICAS DA QUARENTENA

NO ANO PASSADO EU FIQUEI VELHA


Envelhecer é uma travessia tragicômica, todo mundo morre no fim. Ainda não chegamos lá e não é o caso de dar spoiler.
Aqui, uma crônica cosmética e um poema sem saída.



DÉBORAH DE PAULA SOUZA[1]


O poema é uma discussão com a morte
Jerome Rothenberg, poeta beat



Fiz 60 anos em 2020. Queria viajar para Índia, mas veio a pandemia e fui para Ubatuba. Parei de tingir o cabelo e cortei curto. Diante da tragédia do vírus e do avanço do fascismo no Brasil, achava que pensar no envelhecimento não tinha cabimento. Fiquei velha sem pensar.

Na primeira fase da pandemia, marquei consulta no dentista e na dermatologista. Um dente quebrado e as olheiras profundas eram as provas da minha nova velhice. Precisei de algum apoio, mas me achava preparada – como aquela dama que “instaura o seu cosmético caótico” na canção de Caetano Veloso, onde ele avisava que “a cara é o vazio”. Só agora prestei atenção nessa parte letra, metade da vida eu só lembrava do beijo na boca e da Bahia.

Voltando ao cosmético, quando eu era jovem trabalhava como jornalista em revistas femininas. Nunca atuei na editoria de beleza, mas sou uma entusiasta de cremes e conheço as palavras que os justificam. As bulas fazem promessas de juventude, amor e felicidade, tudo com argumento científico. Já os ingredientes perigosos (como o octocrileno, acusado de ser um desregulador hormonal e cancerígeno, e o conservante methylisothiazolinone, proibido há anos na União Europeia) aparecem em letras minúsculas nos rótulos.

Por isso, e por causa do meu estilo natureba, já na meia idade descobri o mundo dos óleos vegetais e essenciais, à base de plantas e flores, cheguei a fazer um curso rápido, formulei óleos para uso pessoal e me apaixonei por essa alquimia doméstica. Não retarda o envelhecimento, mas cheira melhor do que a lista de procedimentos estéticos – eufemismos para injeção na cara – disponíveis para quem, como eu, perdeu o rosto em meados do século 21 e agora disfarça com N95.

A velhice é grande demais, resolvi concentrar atenção na pele e oferecer um artigo, incluindo cremes rejuvenescedores, para um site de sustentabilidade. Meu plano era escrever sobre a chamada “beleza limpa”, com produtos que não fazem testes em animais, evitam ingredientes prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente, sem conservantes cancerígenos, corantes e fragrâncias sintéticas. Enfim, sem tanta enganação e coisas mortíferas. Tem dias em que me sinto tão velha quanto o mundo.

Esse plano de reportagem não foi adiante. A tal clean beauty não é novidade e sim um novo e rentável nicho de mercado, com pequenas e grandes marcas disputando espaço. Existem fóruns e lives na internet com discussões sobre a definição de “limpo”. Vi até uma atriz famosa dizendo que usa água mineral para lavar o rosto, ela não confia na água das torneiras do Rio de Janeiro. O setor tem muitas informações conflituosas para uma leiga como eu, e um dos pontos nevrálgicos é o sol e qualquer “luz visível”, pois a luz de celulares e computadores é considerada forte agente de envelhecimento da pele. Então, se alguém também tem a sensação de que todo mundo envelheceu mais rapidamente no confinamento, não foi só de tristeza, foi também de celular, zoom e google meet.

Enquanto dermatologistas pregam o uso diário de protetor solar, mesmo para quem está fechado em casa, muitos adeptos da “beleza limpa” alertam que os protetores são tão letais para a vida marinha que imagine o estrago que fará na sua pele (!). Achava meio exagerado até que, recentemente, a Tailândia proibiu o protetor solar em suas praias e descobri que o Havaí já tinha feito o mesmo ( https://conexaoplaneta.com.br/blog/para-preservar-recifes-de-corais-a-tailandia-proibe-uso-de-protetor-solar-em-parques-nacionais-marinhos ).

Para resumir, o cosmético é mais caótico do que eu supunha. Minhas pesquisas na internet aumentaram minhas dúvidas e desconfiança, passei a receber uma enxurrada de publicidade de produtos faciais, incluindo tutoriais de maquiagem, onde especialistas alertam: se usar o produto errado, a maquiagem vai “craquelar”. Nesse caso, em vez de esconder que a juventude acabou, tudo será revelado, com o agravante de que ficará evidente a tentativa de ocultar a chegada da velhice.

Entre os produtos que não podem faltar na nécessaire estão a máscara e o corretivo. Com tais nomes, (sem contar as patéticas expressões “anti-age” e “melhor idade”), deduzi que ser uma velha psicanalista vai dificultar o make. Ainda assim considero o corretivo um apaziguador: encobre as olheiras e insinua que as mulheres estão certas, quem errou foi o tempo.

É como se Saturno, o deus do tempo, por ciúme castigasse Vênus, a deusa do amor. Desculpem o paralelo mítico, alguma coisa há de se fazer para reparar a ferida narcísica e o luto da juventude e era preciso colocar aqui a palavra amor. Um ponto tão nevrálgico como o sol. Estamos sempre às voltas com o que fazer com as marcas do sol, do tempo e do amor.

Para piorar, desde junho de 2021, a velhice corre risco de ser classificada como doença no CID 11 (Classificação Estatística Internacional de Doenças). O assunto gerou controvérsias na mídia. Deve ser uma estratégia para aumentar o mercado da indústria farmacêutica e a mensalidade do plano de saúde. Cid é cilada. Envelhecer é para quem pode, é preciso estar vivo. Com tanta gente querendo nos matar e adoecer, minha rebeldia é ter uma saúde que dói.

No momento, vacinada e prestes a completar 61 anos, a situação é a seguinte: não consegui corrigir a velhice, com meus cosméticos contribuo para a destruição da barreira de coral, o excesso de embalagens plásticas e a submissão feminina aos padrões de beleza da cultura machista/capitalista. Sei lá.

Para os cabelos brancos, deles estou gostando, testei um xampu de aloe vera, com cheiro ótimo, que tinge de roxo minhas unhas e o box do banheiro. Meu rosto está perdido. Se meu protetor solar com antioxidante fizer mal para a terra e o mar, não vou saber. Uma amiga me garantiu que, na nossa idade, vamos morrer antes do mundo acabar. Espero que demore um pouco, em breve lançarei um livro de poemas que se chama Vermelho Vivo. Se estiver morta ou muito acabada, o título vai soar melancólico.

Abaixo, um poema inspirado nas minhas tentativas de salvar a pele.



Skincare

1.
passe ácido no rosto estilhaçado
passe setenta anos mil livros um tornado
passe um vulcão três sementes uma montanha
com um túnel alagado

esfregue com algodão e alhos e bugalhos
com sangue de dragão se cura o que está por um triz
condene trezentos quilos de pétalas de rosas damascenas
a um vidrinho cor de âmbar
conserve os ventos do deserto sob a cicatriz

com gerânio bourbon adoce sua tez
entorne um litro de jerez
renove o macerado de venenos vis

no sulco do mapa dupla-face passe
aquele sérum molecular e seus ativos
atue com vigor no bigode chinês
releve o ricto dos lábios morda os dentes
dissolva poros e papadas
no pântano coagulado de leite
sob nuvens de aloe vera

retire com pinça
um olho castanho espatifado no azul

2.
nos oráculos da cútis as linhas redundam
um exército diáfano de acontecimentos

o extenso órgão de seda porosa
será trespassado pelas linhas da mão
onde aquele ruivo leu suas vidas passadas
vidas cheias de infortúnio e insetos peçonhentos
que não morreram na guerra
e assombram até hoje o seu horóscopo

oh como são belas as libélulas
mas a flor que destruirá suas olheiras
permanece sempre viva @immortelle

o contorno dos olhos será feito
com sombras MAC McLuhan
a pele como extensão do homem
a mulher limpa nutre tonifica e explode

suas orelhas peludas estão cheias de farpas afiadas
um fiapo de pedra curtida no azeite extra virgem
pode esfacelar o couro do seu corpo 100% orgânico
na remoção de células mortas que nunca
nunca lhe devolverão o ticket do último sunset
(uma garota vai morrer na praia)

passe raio laser e preencha todos os buracos
com vazios de cílios piscantes enredados
nessa máscara rosada de flores acquosas
que espocam espumas em taças flute:
um brinde ao blindex da cútis

passe tempo nas têmporas
o plano é subornar cronos
com vitamina c esperma antioxidante
altas dosagens de poção e tônico
descubra seu arcano hialurônico
sob o leito de placenta e sangue menstrual

passe a limpo sua pele de uma vez por todas
contorne as vértebras das maçãs do rosto
estilhace as pálpebras com napalm

espalhe cinco toneladas de arroz e uma plantação de mirtilos
você ficará forte e azul como uma avelã
açucena é o mapa da sua testa, gueixa, açucena antinévoa
chá preto de caméllia sinensis no bule de marfim

cara, você não mora mais em mim





[1] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, colaboradora deste Boletim.




 
 
Departamento de Psicanálise - Sedes Sapientiae
Rua Ministro Godoi, 1484 - 05015-900 - Perdizes - São Paulo - Tel:(11) 3866-2753
www.sedes.org.br/Departamentos/Psicanalise/