MARIA BEATRIZ COSTA CARVALHO VANNUCHI (Tiche)
Em 29 de agosto de 2007 foi feita a entrega oficial de um relatório elaborado pela Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República: Direito à Memória e à Verdade*
Decorridos quase trinta anos da promulgação da lei da anistia, que visava "passar uma borracha" nos anos de chumbo, e onze anos de trabalhos da comissão, o relatório público responsabiliza o Estado brasileiro pela morte de brasileiros que se opunham ao regime ditatorial.
No golpe de 1964, eu tinha apenas cinco anos e minha infância foi habitada por um colégio religioso**, mas fundamentalmente humanista.
Havia rumores e sabíamos que algo estava escondido. Sabíamos, também, dos restos e dos horrores do nazismo, pelas imagens fotográficas que capturavam nossos olhares assustados e pelos temores de nossos pais.
Esses horrores uivavam em nossos pesadelos.
Não posso deixar de reconhecer que escrevo como cúmplice, testemunha e cidadã. Somos uma sociedade nascida num regime de escravatura e a tortura foi o instrumento mais cotidiano de poder sobre os corpos. Como dizia Darcy Ribeiro em O Povo Brasileiro, carregamos, todos, os anos de crueldade.
Tivemos na ditadura de Getúlio Vargas a prática da tortura e nossa tradição escravagista mais uma vez nos assombrou. O retorno do autoritarismo, tornado ciência de guerra na ditadura militar, é ainda uma ferida aberta.
Assassinato, tortura, em suma, um exercício de posse sobre o corpo do outro, para devastá-lo, para desumanizá-lo - puro gozo de poder.
O relatório conta a vida política dessas pessoas que foram seqüestradas e violadas até a morte. O poder ditatorial se autorizou a isso e instrumentalizou a perversão sádica com os argumentos da guerra fria: os comunistas degradam a família.
Que o próprio Estado tenha este registro, não nos garante que não ocorra novamente, mas nos abre a porta para que possamos resistir com o ato de fala. A tirania é uma das possibilidades humanas e nós, psicanalistas, sabemos d' Isso.
É um relatório muito duro de ler e, talvez por isso, um jornalista calejado pelo seu próprio narcisismo, em meio a uma crise de urticária, não tenha conseguido lê-lo, de fato.
Nenhuma narrativa é "A Verdade Absoluta". A publicação e divulgação do relatório é uma decisão de governo que implica um registro de história.
Escrever não é um ato de vingança, nem de saudade, como dizem os que preferem que não lembremos... É um esforço para atravessar o terror e seguir em frente.
Para que os mortos e sobreviventes possam descansar e viver, não podemos recusar o registro de existência.
Certo é, como diz Freud em A Negativa, que o juízo de existência é precedido do juízo de valor.
Os textos são feitos para serem lidos, trabalhados e estendidos.
Os sujeitos se manifestam na fala.
Que falem todos os atores, inclusive os militares.
Que possamos falar.
* Direito à Verdade e à Memória: Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos / Brasília/ Secretaria Especial de Direitos Humanos, 2007/ www.sedh.gov.br
** Externato Madre Alix, da mesma congregação religiosa do Instituto Sedes Sapientiae, Associação Santo Agostinho.