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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    07 Dezembro de 2008  
 
 
NOTÍCIAS DO SEDES

Festa dos 30 anos do Sedes: outros escritos.


FESTA DOS 30 ANOS DO SEDES: OUTROS ESCRITOS

A MORTE É BREGA

MARIA ELISA DE ABREU PESSOA LABAKI (1)

Para A. M., com saudades.

A morte é brega. A doença também. Assim me dizia um paciente que morreu há poucos dias. Imagem de nobre, tinha a si próprio em alta estima. Irônico com a própria vida e com a doença que carregava, enxergava nela marcas do pior dramalhão mexicano, aquele das perucas, das peruas, dos choros incontidos, do soluçar rítmico e aos soquinhos, que compunham o cenário das horas e das vezes em que esteve num hospital.

Por essas e outras, não queria mais saber de exposição. Afinal, não era manequim, tampouco boi de corte competidor. Não queria ficar na vitrine. Não queria servir de motivo confesso nem para dores, nem para êxtases alheios. Queria discrição e anonimato. Sem platéia, sem choro, sem vela. Ah! Mas o que ele mais temia e, por isso, sabia, era que a morte, que a sua morte, pudesse ser brega.

Um ano antes do tempo em que me procurou, fora acometido por um câncer. Um câncer de testículo. Um câncer vagabundo de testículo, diziam-lhe os médicos. Vagabundo? E podia um câncer ser assim vadio, vagal, não querer se desenvolver, crescer, se proliferar e tomar todo aquele corpanzil? Sempre desconfiou da vagareza atribuída a seu câncer. E, antes mesmo do que esperavam, seu câncer mostrou que dessa qualidade, definitivamente, não provara. Além de câncer, doença ruim que é, foi rápido, velocíssimo em sua exploração, logo se espalhando pelo peritônio, pulmão, fígado; mais tarde, coluna, olhos. Um verdadeiro refestelar tumoral.

Meu paciente era uma dignidade só. Lúcido, tenaz, ferino, tocava sua dor com tamanha precisão que, às vezes, parecia quase fagocitar-se, engolir-se, como que para dominar seu medo, transformá-lo numa parte conhecida de si mesmo. Seu pensamento solto, livre, brotava, no entanto, segundo um ritmo, o das águas, talvez. Como em ondas que vão se enrolando, se enrolando, destacando-se do imenso mar igual, adquirindo força de expansão até o ápice, quando, então, se largam esparramadas, satisfeitas por sobre a arrebentação. Suas sessões eram assim, um subir e descer de marés. Expansão, contração eram qualidades de seu pensar.

Como homem, era abençoado. Desejado por moças, noiva, mãe, amigas - quanto mais doente e mais doce, mais atraía o amor e a servidão. Não entendia como podia provocar tanto apego. "Justo eu?", perguntava-se, não compreendendo como, misto de sexo e morte - só oferecendo a dor infinita e a instantaneidade dos gestos - podia agradar tanto às mulheres. Acho que sei o que as atraía tanto e acho que ele também sabia.

Carmim era sua cor. Era a cor que coloria seu interesse pela vida. Mas um carmim sossegado, passivo, pronto. Nele, pulsavam intenções calmas. Não era afoito. Podia esperar. E isso muito encanta as mulheres. E as analistas também. Sua imensa tolerância à espera, sua paciência comigo e com o tempo, lento, próprio ao processo analítico, nutriam nossas sessões de confiança, além de representarem irrecusáveis provas de amor.

Certo dia foi ao estrangeiro tentar sarar-se de seu câncer. De lá voltou pior, muito pior mesmo. Lá, os médicos dizem tudo o que pensam. "Você não tem cura", disse a ele o primeiro médico. (No estágio em que está... pobre pedaço de carne que logo vai apodrecer.) Violado, arrancaram-lhe o véu das vísceras. Em carne viva, seu corpo passou a sitiar fortes intensidades de dor.

"Doutor, sei que eu não tenho cura", adiantou-se ele ao segundo médico, como que para evitar o horror que é ver-se morto para o outro, expelido para longe de qualquer aposta vivificante. Além disso, era preferível dar-se como morto, poupando, assim, o médico do constrangimento de fazer o papel de quem tudo sabe, tudo prova, tudo vê e prevê. Secretamente, no entanto, meu paciente sabia que estes médicos estrangeiros estavam desnorteados por uma ética torta. Talvez não soubessem que a vida se ampara na esperança de sustentá-la. Se soubessem, não adivinhariam o futuro com tanta convicção, autoridade. Quanta inconseqüência.

Daí em diante, só sofrimento. Anemia. Quimioterapia. Morfina. Transfusão. Antibiótico. Radioterapia. Medo e dor. Queria acabar com o medo e a dor e já não supunha outra forma de finalizá-las, senão morrer. "Mas como posso eu desejar a minha morte se sou eu, propriamente, quem vai morrer?", perguntava-se, desentendido.

Após seu retorno dolorido do estrangeiro fiquei algumas semanas sem encontrar meu paciente. Qual a boa distância? Quem sabe nossa vizinhança pudesse tornar mais suportável a dor que fosse dividida em duas metades, por dois. Rachá-la ao meio, uma metade para cada um. Pulverizar uma parte da dor e assim, repartir infinitamente a sobra em dois, até sobrar tão pouco, tão pouco, o suficiente, somente, para se poder viver.

"Não estou interessado; sinto dores, fraqueza, vou morrer. Que tenho eu para pensar?"

Manhã úmida. Recebo a notícia de sua morte. Meu paciente se fora. No velório do hospital vejo algumas pessoas. Observo a feição de uma moça. "Ah! Você é a Maria Elisa". Um forte abraço nos faz curvar e juntas, choramos. Um rapaz me olha. "Ele era meu maior amigo".

"Muito prazer. Vim me despedir". Tomo o inédito da situação e coloco-me passiva, expectante. Lá estavam parentes e amigos. Pessoas vinculadas a meu paciente que para mim, pareciam nada dizer. Era apenas um aglomerado, uma população de seres sem peso, sem cheiro, sem tônus. Estranha ocasião. Compreendi, então, que estas pessoas gravitavam as estórias de meu paciente, não podendo existir em mim. Somente pelas palavras dele poderia animá-las, dar-lhes cor, odor, calor. Eram personagens de um contador de estórias. E o contador não estava mais ali para contar suas estórias.

Hora do adeus. Aproximo-me dele tentando concentrar-me para resgatar a essência do que juntos pudemos construir. Marcas da luta, do entusiasmo de alguns momentos esperançosos, de sua graça e inteligência, sagacidade... qualidades especialíssimas que eu provara no correr de nossas sessões.
Fico parada, gelificada. A maquiagem que recobre sua pele, seus pêlos, decalca seu rosto como um boneco. O "blush", o rímel, o lápis de sombrancelha... para que toda essa parafernália de extremo mau gosto? Serviço hospitalar funerário, "pacote vip post-mortem"? Se não podia ser revelado em sua condição plena de morto, por que não o mantiveram coberto, velado? Poupado desta exposição que ele rejeitaria? Por que disfarçar a morte nele? A morte, se vela ou revela, nunca se macula.

Perplexa e triste, vi que ele tinha razão. A morte nele estava brega. Mas, vi também que aquele homem que lá estava preservava em si a classe, a elegância, qualidades que o tornavam tão raro. Sua dignidade perenizada. De fazer inveja a qualquer mortal.

  • Agradeço ao Rubens Volich que me sugeriu a escrita desta crônica e a Carmen Molloy pela supervisão do caso em um momento delicado.



 

CHARME DE BARATA (2)

MAURO HEGENBERG (3)

Há tempos me deparo freqüentemente com uma barata. À noite, quando venho do hospital, a casa silenciosa, todos dormindo, lá a encontro, curtindo a pia do banheiro. Quando acendo a luz, ela educadamente entra pelo vão da pia e não me aborrece mais. Sente minha presença, percebe meu incômodo e se retira.

Hoje foi diferente. O relógio da sala batia três quartos depois da meia-noite e lá estava ela, passeando na esponja em cima do meu porta-sabonete. E não foi embora.

Minha primeira reação foi considerá-la atrevida. Mas, pensei, essa barata está sempre sozinha. Baratas andam em dupla - milenar costume de onde lhes vem a força. Menos esta. Deve ser por isso que me aguarda toda noite; mas, tímida e retraída, foge ao se deparar comigo.

Olhei bem para ela e decidi perturbá-la um pouco. Mexi na esponja com cuidado. Ela correu para baixo do porta-sabonete. Fez tric-tric.

Me arrepiei todo! Outro leve toque e de novo, tric-tric. Pela primeira vez observei uma barata de perfil. Ela tem uma protuberância triangular saindo do tronco. Será que é a cabeça?

Vou buscar a lupa. Tenho pressa, pois o quitinoso inseto pode resolver ir embora e perco a possibilidade de conhecê-la melhor. Após os desencontros esperados, por fim agarro a lente.

O bicho fugiu? Ah, ainda está lá. Mas, ai, ai... Só dá para enxergar bem de perto. Avante! Minha coragem exemplar está hoje naqueles dias, mas... Caramba, barata tem cabeça!

Sui generis, parece um besouro. Quando eu era pequeno adorava besouros. Vivia com eles nos bolsos, na roupa. Um dia cheguei a cair da escada do ônibus, em São José dos Campos, porque um deles quase fugiu. Por que seguro besouros nas mãos e sinto nojo de baratas, não tenho a menor idéia.

Passei então a conversar com ela: olha aqui, nega, eu tenho uma certa aversão, receio...Hum, tá bom, medo mesmo de você. Mas até que você é interessante: suas antenas, sua cor marrom com listras escuras, sua cabeça.

Nossa, você tem olhos? Suas duas massas escuras, parecem olhos. E são mesmo. Ora vejam só, barata tem olho, barata tem olho!

Uau, quanta coisa! Surpreendo-me de ter tido paciência e bravura para estar, àquela hora da noite, me distraindo com um inseto. E isso depois de um longo plantão e tendo que me levantar cedo no dia seguinte. Aquela barata solitária, no entanto, estava exercendo sobre mim uma atração irresistível, visceral fascinação.

Dei um assoprão perto de suas antenas. Ela correu apressada. Dei um pulo para trás. Olhei-me no espelho, e repeti por três vezes: que susto! Divertida minha cara de bobo, expressão de palerma deslumbrado.

Então, excitado, quis curtir a baratinha. Continuei a assoprá-la para ela ficar de perfil, de costas ou de frente. Nossa, de frente é emocionante! Uma cabeçona triangular e duas antenas saindo acima dos olhos. Abaixo deles, quatro pequenas saliências parecendo dentes, se mexem a toda hora. È com isso que ela rói as roupas?

As antenas balançam, sondando o ambiente. Chego a lupa mais perto. Arrgh! Uma cabeçona com olhos e uma bruta antena. As patas têm uns fios semelhantes a farpas de madeira ou àquelas hastes na cauda da flecha. E ainda, quatro rabinhos arreganhados; ah, mais gozado mesmo só rabo de tartaruga. Barata ter rabo é o máximo. Pra quê? Será que é para dar charme?

Outro assoprão. A bicha tenta subir na esponja, tiro o porta-sabonete, ela fica a descoberto. Percebi certo alvoroço quando ela se viu desprotegida, sem ter onde se esconder. Tentou subir na parede escorregadia, de azulejos. Agitada, as antenas assustadas, não conseguiu o seu intento.

Senti-a frágil, abandonada, impotente. Olhei-a então com ar sério, encostei a lupa no queixo, como faria Mr. Holmes, e pensei: chegou a hora de definirmos nosso relacionamento. Estou farto de vê-la sempre aqui, se escondendo quando chego. Já me vejo, então, vestido como um guerreiro romano, poderoso. Vou liquidá-la. Um chinelo, uma tamancada e você estará ali, próxima do ralo, sem vida, repousando após o último suspiro.

Nunca matei uma barata antes. Esmagá-la sob os pés, sentindo-a desmanchar-se pastosamente, é sensação desconfortante. Mas sempre há uma primeira vez, não?
Enquanto eu, possuído por idéias assassinas, imaginava maneiras de trucidá-la, a safada, até então paralisada de medo, a sem-vergonha, passou lentamente a me seduzir. Devargarzinho, suavemente, ora veja que graça, pegou a antena com uma das patas da frente, dobrou-a, como faz um coelho com suas orelhas (eu jamais poderia imaginar que baratas dobrassem antenas), e começou a limpá-las com aquelas hastezinhas parecidas com dentes. Fez isso com uma antena e depois com outra, então novamente com a primeira. É tão bonito, afetuoso! Tenho vontade de passar os dedos nas costas dela. O asco é maior, é claro, mas uma vontadezinha deu, sim.

Sinto-me próximo dela, meus sentimentos agressivos e destruidores se desvanecem. Revejo a situação e penso em nosso envolvimento: outros encontros acontecerão. Resolvo deixá-la onde está, silenciosa, dominando impassível o ambiente, com seu toque peculiar, seu charme. Charme de barata.

No dia seguinte, fiz o possível para chegar mais cedo em casa. Abri a porta apressado, esperançoso de encontrar minha nova amiga e retomar nosso diálogo. Estou certo de que nossa amizade poderá se prolongar.

Entro no banheiro, acendo a luz e... o que vejo?! Sacanagem! Duas baratas. Aquele ser ridículo, descaradamente exibia seu mais recente companheiro. Ou companheira? Indignado, não suportando tamanha afronta, sem distinguir qual das duas era a minha barata, cometi o inseticídio mais banal do mundo: pisoteei as duas.




LOUCURAS

FLAVIO FERRAZ (4)


ESQUIZOFRENIA


A bo
ca me fa
lou
os den
tes me o
lharam




MELANCOLIA


Eu luto
contra o luto

but the mourning
wakes up early
in the morning




PARANÓIA


Ele estava lá,
impregnado nas paredes
daquela casa maldita
cheia de goteiras,
já sem luz nem água.
Seu espírito, decerto,
ainda vaga lá dentro.




OBSESSÃO


Quando um fulano
que é parnasiano
esquece a rima...
entra pelo cano!

Maroca,
vê se coloca
o quadro
no esquadro.




HISTERIA


Não vem
que tem!

Ou será que você
não me manca?




FOBIA


À noite na cruzília
o perpétuo fogo-fátuo
pronunciou
o ultimato:
- não entra nesse mato,
que eu te mato!




PSICOPATIA


Eu te pego
eu te pico
eu te jogo
no penico

p.s.:
versos roubados
do repertório popular




MALAQUIAS OU A NORMALIDADE


Malaquias foi um homem
absolutamente normal:
trabalhava por necessidade
batia na mulher
surrava os filhos
bebia umas e outras
e com outras despendia
o dinheiro que fazia falta em casa.

Foi normal até na morte:
a viúva e os filhos
prantearam o finado à exaustão
e padre o chamou
no sétimo dia
de pai e marido exemplar.

Malaquias foi um homem tão normal
que a bem da verdade
não sei por que fui falar dele agora.



UMBIGO

ELAINE ARMENIO (5)

É ali que um guizo repousa
tinindo as desoras.
Da veia maior
Cicatriz.

Líquido solto na memória



MANHÃ


A quem creditar
este tênue azul
infiltrado na praça
À gaze fina
na sua missão de  névoa
desabotoando (delicadamente)
a alma?


CANÇÃO


Boi que anda à larga
Boi do passo miúdo
Boi soturno
do devasso das matas

Pedra de campo aberto
sangrada no poente

Boi das tantas:
nas festas, rei


SESTA


Sossegado, pálido
pensa:
Quanto de água
passa nos olhos do sertão?

Quanto na rústica morada
é encarte de insetos?

E cochila...
na madorna de salivas?
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(1) Maria Elisa Pessoa Labaki é psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae e articuladora da Área de Publicações na gestão 2008-2010. Mestre em Psicologia Clínica pela PUC/SP, é professora do curso de Psicossomática do ISS.

(2) Publicado em Quarta-feira, antologia de prosa e verso. Vários autores. São Paulo: Escrituras Editora, 2003.

(3) Mauro Hegenberg é médico, psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. Doutor em Psicologia Clínica pela USP, é professor dos cursos de "Psicoterapia breve" e de "Psicoterapia psicanalítica de casal" do ISS e supervisor do NAPC (Núcleo de atendimento e pesquisa da conjugalidade) da Clínica Psicológica do Sedes.

(4) Flávio Ferraz é psicanalista, livre-docente em Psicologia (IPUSP); membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, é professor dos cursos de Psicanálise e de Psicossomática deste Instituto.

(5) Elaine Armenio é psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise, integrante do Grupo de Pesquisa do Feminino, do GTEP, e do Grupo de Discussão  de Psicopatologia Contemporânea. Participou do grupo "Calamo" de criação literária, com o qual publicou Desnorte pela Editora Nankin.




 
 
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