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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    12 Abril de 2010  
 
 
NOTÍCIAS DO DEPARTAMENTO

Herança e transmissão - trauma e narrativas nos espelhos da cultura.


A densidade do trabalho do Mario Fuks faz com que eu os encontre cansados. Mas estamos no mesmo barco, e isso já é ganhar a metade da batalha. Claro que a segunda metade é muito dura e ainda temos que ter cuidado com os motins a bordo, com a rivalidade das pequenas diferenças, dos narcisismos. Muitas vezes as equipes, os trabalhadores da saúde mental que trabalham na vizinhança do horror, se contagiam deste horror e dramatizam, na relação entre colegas, algo do espanto que devem enfrentar. Eu creio que temos que ser muito cuidadosos, para nos cuidarmos em relação à usura, às feridas narcísicas contínuas que este tipo de trabalho nos produz.

Eu tenho o microfone, num sábado de manhã, durante meia hora para comentar o filme de Miriam Chnaiderman e para introduzir o assunto de nossa experiência com grupos de palavra, e explicar esse misterioso dispositivo. Ocorre-me uma forma de realizá-lo: conheci a Miriam há várias décadas. Claro, éramos quase crianças e também bonitos. Foi um encontro muito marcante, pelo menos para mim. Nossa amiga em comum, a paulista e parisiense Marie-Christine Laznik, nos apresentou e alguma coisa com ela, com sua mãe, algo do imediato de um contato e de uma familiaridade se deu instantaneamente. Logo, durante décadas, foi o silêncio, foi a distância. E hoje não é um encontro, senão um reencontro. E eu tenho uma espécie de assombro que quero compartilhar com vocês, que é a consonância, a coincidência de sensibilidades, entre o que eu tentei elaborar ontem para vocês na minha palestra e o que pude assistir no filme de hoje. Cada um no seu gênero expressivo, diz algo do que Eliane Brum, a jornalista que nos acompanha, chama: ‘A vida que ninguém vê’, que me parece um título muito bonito. Mas esse fato íntimo, privado, de amizade entre Miriam e eu, diz algo que nos transcende a nós dois como sujeitos concretos. Eu estive pensando esta manhã, e me dizia que esta experiência, de que existam outros distantes, em outros países, em outros lugares do mundo que sintam e pensem como eu, é uma experiência constitutiva de humanização.

O esquema freudiano, de uma sobressalente fecundidade — não vou falar em favor do Freud aqui, já que somos todos convencidos torcedores dele — focaliza a intimidade do triângulo edípico: eu, o bebê majestoso, minha mãe e meu pai. O fechamento neste triângulo da intimidade também empobrece a humanidade do sujeito e o sujeito é um sujeito social aberto à sua cidade, aberto à sua região, aberto à sua língua, aberto ao seu tempo e aberto ao mundo e disponível. Durante vinte anos, talvez mais, Miriam não soube nada de mim, e eu nada dela e hoje, no Sedes Sapientiae, surge novamente algo que, através da imagem, ou através das palavras, ressoa na mesma melodia. Isso me parece muito importante como definição.

Eu experimentei isto naqueles tempos revolucionários dos anos 60, nos quais acreditávamos na utopia do homem novo; então a gente viajava pela América Latina e por todas as partes ouvia-se a voz do Che Guevara, e todos ressoávamos em uníssono. Pensar no caráter cativante, no caráter alienante dos ideais, e na desilusão que produz o não cumprimento deles, é uma tarefa que os sessentistas temos que fazer. Mas as armadilhas das descrenças, as armadilhas do niilismo são também usuras, nas mentes e nas memórias coletivas, que precisamos combater.

Para nomear um lugar comum, que vocês vão compartilhar comigo facilmente, os testemunhos filmados por Miriam são chocantes, são comovedores, dessa questão emocional em que não vou insistir porque ela é óbvia. Evocaram-me o conceito de Hanna Arendt da desolação, que ela distingue da solidão. A solidão é um movimento ativo, que a gente procura, de estar consigo mesmo, de se afastar do ruído do mundo, que nos aturde: esse é um lugar apreciado; a desolação nada tem a ver com a solidão. A desolação quer dizer estar só entre muitos, estar alheio entre muitos, não ser ninguém para ninguém, e essa é a definição que eu ontem tentei dar do excluído. E aquilo que é excluído da mirada e da escuta de outros homens perde sua humanidade. Se não sou visto, se sou transparente, deixo de ser o ser humano que sou até esse momento. Experiências catastróficas, como a sucessão de vibrantes testemunhos filmados que Miriam nos apresenta, eu tentei ontem expor.

Eu queria dedicar alguns minutos, hoje, para pensar como as distintas disciplinas e as tarefas acadêmicas retêm e capturam essas experiências de dor, isto que Mario chamava de traumatismo histórico, a posição dos excluídos. Hoje, ano 2010, podemos ver como redutiva e empobrecedora a noção de neurose traumática que Freud tanto trabalhou. Esse sofrimento, essa noção de trauma como um agente exógeno onde o real desorganiza e destrói o aparelho psíquico. Mas isso inscreve a noção de neurose de guerra, a noção de neurose traumática como um diagnóstico generalizante e indiferenciante, e o diagnóstico é homogeneizante já que perde de vista o que — a meu modo de entender — é mais importante na detecção e na reparação de um trauma, que é a reparação do trauma, o bordado desse desgarro singular e diferente para cada um. Um torturado não é igual a outro torturado. Os caminhos de reparação, de sutura, de reintegração são como a letra própria: todos escrevemos em português ou em espanhol, mas minha letra e a de vocês não é a mesma, tem algo que se vê na caligrafia, mas que também se vê nos modos de reparação interior.

Depois de falar de neurose traumática, com o DSM3 apareceu o famoso Post Traumatic Stress Syndrome, a síndrome de estresse pós-traumático, pior ainda do que a neurose traumática, uma somatória e uma descrição de sintomas. Igualzinho à apendicite aguda, dói aqui, dói ali, se marca isto e com tudo isto fazemos esse diagnóstico, com o qual se etiqueta e, sobretudo desta maneira se conduz o sofrente a uma condição infame, que é a condição de vítima e se cria uma ciência da qual devemos estar cuidadosamente vacinados — os deste barco — pois se chega essa peste a este barco, estamos fritos. Isso chama-se vitimologia. A vitimologia transforma em heróis-benfeitores às pessoas como nós, e às coitadas das vítimas em seres alheios, seres inferiores. É como cuidar dos cachorrinhos, a vitimologia transforma alguns em cuidadores. Ou seja, somos veterinários. Eu o faço como piada, pois a piada impacta, mas é um perigo real. O trabalhar na intimidade e na proximidade com alguém que tem padecido uma catástrofe e um derrubamento interior...

Há um colega alemão, Hans Tofels, que dizia que, há 5 séculos, depois que Dante escreveu ‘A divina comédia’, as pessoas o viam em Verona e atravessavam a rua, e não o cumprimentavam e diziam: ‘Ele esteve no inferno’. E se alguém esteve no inferno, e muitas das pessoas com as quais tratamos tem estado ou estão no inferno, o sentimento é de tal intensidade que Maurice Blanchot diz que o horror paralisa ou fascina, das duas maneiras: captura. O horror paralisa ou fascina, e sempre estamos perto demais, ou alheios demais; a boa distância nunca se alcança. O fotógrafo tem que me colocar em foco e é um instante de boa distância focal, senão sempre vemos em penumbra; o horror somente se vê em penumbra, é como olhar a Medusa, só é uma visão instantânea. O horror não se constata, não se elabora, mas se trabalha sempre na periferia de um abismo.

A última destas noções que está na moda é a noção da resiliência, uma noção prestigiosa, exitosa, que reage contra a vitimologia e contra os benefícios secundários da doença das vítimas, que tem visto ainda na vitimologia um negócio fundamental. Eu tenho visto torturados se beneficiarem durante 25 anos através de ajudas estatais,  ou os herdeiros da Shoá, aos quais o Estado alemão dá dinheiro porque queimaram seus tios, seus avôs nos campos de extermínio. Essa reparação me parece perversa, me parece corrupta e corruptora; não há reparação integral do dano e ainda a reparação material traduzida em dinheiro, se não é sóbria, ou se é pública, torna-se escandalosa e corruptora. Eu não sabia o que significava resiliência, o li no dicionário. Significa que os metais submetidos a grandes pressões têm uma aptidão, às vezes, para se quebrar e, às vezes, para se temperar e poder voltar depois dessa pressão tremenda a ter sua fortaleza e sua elasticidade inicial; quer dizer voltar a ser o que foram antes da pressão excessiva. Pretender isto de um traumatizado parece-me a negação mesma da concepção freudiana de perlaboração. Não há trauma sem marca e sem reelaboração das marcas. Digo marcas, não digo sequelas, porque um trauma — e isso se vê muito nos testemunhos — fere, mas faz crescer. Há um gaucho chamado Martin Fierro(1), para os argentinos e os uruguaios isto é muito familiar, que diz: ‘O homem é como o ferro, os golpes o quebram ou o fortalecem’.  É simplificadora a noção de que o trauma psíquico seja como o trauma em medicina, onde há uma ferida, uma cicatrização e uma reparação. O trauma é um desafio que sempre tem aspectos daninhos geradores de sintomas, geradores de patologias, geradores de padecimentos; mas sempre tem um potencial elaborativo, que nos permite assumi-los. Coitado do ser humano que não seja um traumatizado, seria como essas princesinhas japonesas que estão penduradas, intocadas, é o modelo que eu uso. A experiência traumática, até de certo modo, nem sempre é daninha. Como fazem os adolescentes, como na história que narrava a companheira ontem acerca desses adolescentes que saíram das favelas(2), dessas crianças que saíram das favelas, correndo e cantando: ‘saímos da favela’, para espanto dos adultos. Quem tinha razão? Os adultos espantados, ou as crianças que saíam da favela? A vida, como se vê nessa anedota, é um risco, cada um deve saber até onde pode ir. Eu às vezes vejo na tevê os escaladores de montanhas, esses que chegam ao Kilimanjaro ou ao Aconcágua, isso me espanta, eu não poderia subir nem 200 metros e eles sobem 5000. Em outros aspectos sim, eu gosto de correr riscos. A gente tem que ir ali, de onde creia que possa retornar. Nem um passo a mais, mas nem um passo a menos.

A noção de trauma, como noção ameaçante, como noção patógena..., há algo mais chato que viver uma vida homogênea e medíocre? Pode o homem viver sem uma noção de exploração e de aventura? No campo do saber, no campo de investigação, no campo do erotismo, no campo das experiências efêmeras ou das experiências duráveis. Mas eu quero tirar da palavra trauma o caráter maldito, o caráter de anátema, como se a gente pudesse viver numa campana e como se a vida não fosse risco e conflito.

Um dos traços geniais de Freud é ver, no sintoma, não só o dano psíquico, senão que a criatividade potencial. Sempre num sujeito se dá uma coincidência: na mesma área de representações está o sintoma e está a sublimação, ambas muito relacionadas uma com a outra. Então a resiliência é uma mentira, porque não há trauma sem marcas, vai na direção oposta do que estava propondo Mario, do nosso barco, que é que a experiência de dor é uma experiência marcante, para si e para seu entorno; e a noção de cidadania se baseia no contágio das experiências traumáticas, não na sua supressão, não nessa clivagem entre a sociedade pensante e os excluídos. E nosso trabalho consiste em apagar essa fronteira entre o que se vê e o que não se vê, mais ainda na atualidade em que os meios de comunicação, como a televisão, criam o acontecimento, criam a realidade e a suprimem. O que não está na televisão não existe, como diz Hugo de Villar. Isso a respeito da experiência de compartilhar o reencontro com Miriam, através de minha palestra e através de seu filme.

Em 10 minutos vou introduzir o tema dos grupos de palavra. O problema é que não há nenhum mistério. A experiência de dinâmica grupal: nas minhas origens, quando jovem, na metade do século passado, fui herdeiro dos ensinamentos de Enrique Pichon-Rivière, através de José Bleger. Seus documentos escritos, com grupos operativos no ensino, são documentos de um valor enorme para mim. Mas a transmissão oral dessa experiência, esta transmissão no encontro, para mim tem sido mais forte que a leitura e marcou toda minha experiência de vida. Li os trabalhos de Kurt Lewin, li as experiências do grupo Balint na clínica Tavistock de Londres. Não sou um teórico experto em grupalidade, mas acredito que este nível de grupalidade é essencial na anomia do mundo moderno. Numa cidade pequena, a grupalidade se institui sem atos artificiais. Na sociedade tradicional, o bairro, a vizinhança, os amigos, o bando da esquina, as quadrilhas têm uma função saudável, constituinte da passagem que se produz na adolescência entre a captura endogâmica e a abertura às experiências exogâmicas. O crescimento descomunal da urbe, estou falando em São Paulo, mas o diria também em Montevidéu, o crescimento descomunal da urbe durante o século XX, o aumento descomunal na velocidade dos transportes... Emanuel Kant nunca saiu do seu povoado em toda sua vida. 80 ou 90% dos seres humanos, até 1920, nascia e vivia percorrendo as distâncias a pé, ou as distâncias que a cavalo se podia percorrer; hoje nós queremos ir à Europa, queremos ir aos Estados Unidos. As relações são, portanto, mais fugazes, mais efêmeras, mais fulgurantes, passam a um ritmo que, na minha experiência — bom, eu tenho as inscrições psíquicas do século passado — para mim isso é desumanizante.

Eu creio que este nível intermédio, onde pensamos com outros, está ocorrendo entre nós. São os grupos transubjetivos, como diz René Kaës, os que definem nossa afinidade e pertença; pensar com outros é um ingrediente básico. Muitos colegas psicanalistas dizem que, para que haja psicanálise, não basta um paciente e um analista, senão que se necessita também de um colega do segundo, para ajudá-lo a se desprender da captura fusional, da captura passional que a experiência da análise provoca. Eu sou dos pensadores que, para pensar algo, necessito estar constantemente confrontando com Mario, com outros, quer dizer que preciso da relação. Volto à imagem do futebol: é necessário que existam vários times de companheiros, somos adversários, mas jogamos o mesmo jogo. O assunto é descobrir quem faz a melhor jogada, como se aprende dos dribles que nos ensinou nosso treinador, mas também dos dribles que nos faz o adversário, isso nos alimenta. Os adversários são imprescindíveis, seria horrível se todos pensássemos igual.

Com esta herança conceitual — eu colocaria Bleger no primeiro lugar dos meus mestres pessoais, com a experiência de grupos operativos no ensino —, nós decidimos nos aproximar das instituições do Estado que trabalhavam com crianças e jovens sem família e aplicar o mesmo dispositivo que na sessão analítica. A única consigna era: ‘diga o que você quiser’. Ou seja, a consigna era não dar consignas e deixar acontecer. Não é uma experiência que se faça sem temor, os teóricos dizem: ‘vocês são uns improvisadores, se  lançam sem teoria, sem recursos conceituais’, mas nós tínhamos várias décadas de psicanálise por trás e de experiência. A experiência que me marcou muito foi a comunidade terapêutica de esquizofrênicos em que trabalhei na França. Era uma comunidade de uns 100 pacientes e uns 80 cuidantes(3), que estavam fracionados em 7 grupos, de umas 20 pessoas cada. O grupo se decidia pelo dia em que se chegava à clínica, tinha o grupo do domingo, da segunda, da terça. Era se sentar para conversar, receber ao recém chegado. Como se recebe a um recém chegado? O importante é recebê-lo na instituição como recebemos em nossas casas. ‘Oi, tudo bom? Quem você é? Como você se chama? De onde você vem? Do que você gosta? Do que você não gosta? Você quer pão? Quer queijo?’ Quer dizer, a acolhida em termos de hospitalidade, não em termos de uma estratégia de anamnese. Esse grupo se reunia semana a semana durante meses ou durante anos e os pacientes aprendiam, os pacientes sabiam mais dos outros do que de si próprios. É distinto ser esquizofrênico que ser tonto. Em geral os esquizofrênicos são muito inteligentes e fazem observações muito sagazes sobre os outros, se a gente sabe ouvi-los.

Ali se tratavam, por exemplo, os pacientes que tinham hospitalizações de vários meses ou anos, que pediam licença para sair, para realizar diversas atividades, para encontrar suas famílias; e o lugar onde se resolvia a pertinência ou não de aceder ou não, não vinha da autoridade médica, mas vinha do grupo de pertença. ‘Quero ir estudar fotografia’, ou ‘quero ir fazer cerâmica’, era uma pergunta e era o grupo que a respondia, e não os técnicos. Republicanizava-se e não havia um governo de cuidantes que decidiam o destino. Se alguém pedia para fazer um curso de fotografia que custava tanto dinheiro durante tanto tempo, tinha que se comprometer a pagar, não simplesmente com o dinheiro que podia ter, senão com tarefas a desempenhar. Existiam atividades rentáveis ao interior: como se alimentavam 200 pessoas por dia, tinha muitos restos de comida e tinha um chiqueiro; eu trabalhei no chiqueiro durante bastante tempo, era altamente rentável. Também se vendiam flores, ou se vendiam fotografias, daí saiam as fontes às quais os pacientes podiam recorrer, em um banco interior da clínica.

Eu tomei desta experiência o modelo comunitário, o modelo de relação de reciprocidade e minha ilusão e utopia é reproduzir isto nas instituições de reabilitação, não dos alienados mentais, dos esquizofrênicos, mas dos marginalizados sociais. Desde meu retorno ao Uruguai, há uns 20 anos, iniciamos uma tribo de jovens psiquiatras e psicólogos com experiência de divã analítico. Simplesmente iam às instituições para ver do que queriam falar os garotos. A primeira surpresa era que queriam falar. Recusar-se a participar era um fato infreqüente, queriam estar ali, a curiosidade os capturava. Seguramente o tédio e a falta de acontecimentos numa situação de enclausuramento fomenta esta necessidade de ter espaço. Os temas iniciais são: ‘quem são vocês?’ e ‘para que vêm?’. A gente explica e qualquer coisa que explique não serve para nada: ‘Sou psicólogo, venho ouvir, venho bisbilhotar quem são vocês’, ‘Mas para quê?’. A fantasia que operava era a de que éramos informantes do diretor, informantes do juiz, apesar de que nós segurávamos a bandeira da confidencialidade e jurávamos por nossa mãe que não contaríamos nada a ninguém. Mas manter a confidencialidade do que se falava ali, lograr estabelecer esse muro simbólico separando a palavra exterior ao grupo, onde a má conduta requer sanção, tem um lugar de equivalência com a sessão analítica, onde podemos falar das nossas fantasias sem atuá-las. Às vezes, se dava ali que cada um se atrevia ao desafio de falar e dizer quem ele era, na auto-apresentação, que é algo que surge espontaneamente, ‘quem sou eu para ela?’, ‘quem é ela para mim?’, e assim sucessivamente.

A auto-apresentação que faziam os jovens delinquentes, infratores era igual à dos vilões dos filmes de cowboys e havia certo regozijo em dar destaque à crueldade e à maldade. Produzir o espanto no outro é um dos mecanismos mais constantes. Nós os convidamos a vir ao nosso sistema de convivência, eles fazem o mesmo, nos convidam a compartilhar os códigos de convivência deles. Muitas vezes a interpretação se baseia nisso em que essas auto-apresentações dos vilões consistem: introduzir-nos ao mundo de convivência, onde maltratar ao outro é norma, é a pauta cotidiana desde que se nasce até os 15 anos. Transformar essa afirmação em um interrogante, transformar isso: ‘isto é assim’ em um: ‘poderia ser de outra maneira’, ‘não será mais prazeroso, mais divertido, nos vincular de outra maneira que não seja nos golpeando mutuamente?’. Esse é uns dos trabalhos da função interpretativa, que muitas vezes se alcança, claro que as mudanças não são sempre lineares, não é como as plantas que sempre crescem até florescer, pois há voltas, há movimentos regressivos.

O importante é que esse grupo, ou a grupalidade, vá tomando densidade, vá ganhando espessura, os outros começam a ser alguém para mim, os rostos anônimos vão se personalizando, no grupo se pode produzir um processo similar ao que qualquer um de nós conhece no galanteio amoroso. Como se chega a ser namorado ou namorada de alguém? É difícil de dizer, tem algo da sedução e de conquista, ocorre na sugestão e na necessidade de se agrupar, isso vai outorgando ao grupo uma consistência, uma vigência, cria a noção de um só. Esse ‘nós’ é a plataforma onde o vilão desaparece e a falta de ternura aparece como demanda, e desata o mito das origens, é o que eu dizia ontem do ‘por que minha mãe não me quis?’ — aparece a rivalidade entre a família bem constituída e a família mal constituída, entre ter mãe e pai e não ter. Que mudamos nós? Damos a eles pai, damos mãe? Não há reparação material, eu creio que é possível a reparação simbólica e que entre o drama silenciado e o drama falado há uma diferença fundamental no prognóstico e no destino dessas pessoas. Há uma diferença substancial entre a capacidade de criar destino, de não estar predestinado a essa repetição mortífera que evocávamos ontem, e assim, se abrir a um futuro que não seja lúgubre, que tenha algo do possivelmente promissório.

 
(1) Personagem de um poema de José Hernandez, do século XIX, considerado um clássico da literatura rio-platense.

(2) Referência ao depoimento feito na véspera por uma ouvinte de sua conferência.

(3) “Cuidante” é uma tradução aproximada do termo francês soignant, referido aos profissionais da  comunidade terapêutica - La Chesnaie -  a que se refere Viñar.



 
 
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