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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    13 Junho de 2010  
 
 
NOTÍCIAS DO CAMPO PSICANALÍTICO

Outras palavras (1)


SÍLVIA NOGUEIRA DE CARVALHO (2)


No início dos anos 80, quando o Brasil havia afinal superado seus 12 anos de bipartidarismo, eram apenas duas as alternativas de acesso à leitura das obras freudianas com ressonância latinoamericana: a Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, da Imago, traduzida da tradução inglesa coordenada por James Strachey, e a tradução espanhola das Obras Completas por Luis Lopez-Ballesteros y de Torres, do Editorial Biblioteca Nueva, efetuada desde os originais em alemão.

O prefácio escrito por Anna Freud para a edição brasileira, datado de 1970, continuava a anunciar a Standard Brasileira como uma nova edição que substituía uma anterior, "malograda, que saiu de circulação", e pleiteava, sobre aquela, "a imensa vantagem de ser não apenas completa, mas uma tradução direta do texto original em alemão, sem que se utilizasse qualquer tradução intermediária"(3) (!). A referida "vantagem" se restringiria, contudo, exclusivamente à tradução das "Cinco lições de psicanálise", de autoria de Durval Marcondes e de J. Barbosa Corrêa, feita para a Companhia Editora Nacional em 1931, e "ligeiramente modificada por Jayme Salomão"(4)...

Mais além das instâncias oficiais, a transmissão oral da psicanálise começava também a ser feita, em São Paulo, através de seminários e grupos de estudos oferecidos por professores que nos falavam em castelhano, e não foi difícil decidir-me a comprar os três volumes de páginas em papel-bíblia encadernadas em couro, e assim debruçar-me sobre os textos de Freud em espanhol - esse idioma algo familiar, algo estrangeiro. A brochura Freud, da reedição da coleção "Os pensadores", da Abril Cultural (1978)(5), contraponteava na estante com essas Obras Completas, e permitia o acesso, em língua materna, àquela única tradução editada pela Imago diretamente do alemão.

O acerto da prioridade à tradução realizada da fonte alemã foi confirmado no decorrer da leitura do importante depoimento que o psicanalista alemão Bruno Bettelheim registrou em seu livro Freud e a alma humana (Cultrix, 1984), ao discorrer sobre os graves erros identificados em sua leitura da Standard Edition, erros que foram estendidos à edição brasileira derivada desse texto.

No ano seguinte, 1985, o Jornal de Psicanálise (SBPSP, no. 36) veicularia a tradução que Marilene Carone elaborou para "Luto e Melancolia"(6) que, ao lado de "Conferências introdutórias à psicanálise" (inédito) e de "A negação" (tradução comentada, disponível em: (http://www.fflch.usp.br/df/site/publicacoes/discurso/pdf/ D15_A_negacao.pdf) compõem o legado da psicanalista, cujo projeto de traduzir as Obras Completas foi interrompido por seu falecimento, ocorrido em 1987.

Àquele tempo, já começava a circular entre nós o alentador lançamento, pela editora argentina Amorrortu, da tradução das Obras Completas que foi realizada do alemão por José Luis Etcheverry(7). Ao final do século XX, a Imago converteu em CD-Rom a edição Standard, o que favoreceu a necessária tarefa de realizar citações em português através dessa ferramenta. E, desde 2004, é possível acompanhar, com alegria, cada novo lançamento feito pela mesma Imago, desta vez na versão efetivamente traduzida do alemão por Luiz Alberto Hanns (Escritos sobre a psicologia do inconsciente, volumes 1, 2 e 3, Imago 2004, 2006 e 2007)(8).

A partir deste 2010, porém, às versões brasileiras da Imago somam-se as iniciativas editoriais oportunizadas pela passagem dos 70 anos da morte de Freud, que tornaram seus textos originais objeto de domínio publico. Até o momento, são elas:

- por Paulo César de Souza: Obras Completas, Companhia das Letras, em 20 volumes, a serem concluídos no prazo de uma década. Desde março, os 3 volumes disponíveis são: volume 10:Observações psicanalíticas sobre um caso de paranóia relatado em autobiografia ("O caso Schreber"), artigos sobre técnica e outros textos (1911-1913); volume 12:Introdução ao narcisismo, ensaios de metapsicologia e outros textos (1914-1916); volume 14:História de uma neurose infantil ("O homem dos lobos"), além do princípio do prazer e outros textos (1917-1920). Para o segundo semestre de 2010 estão previstos os lançamentos de outros 2 volumes, os de números 16 e 18, com as obras publicadas entre 1923-25 e 1930-36, respectivamente.

- por Renato Zwick: O futuro de uma ilusão (revisão técnica e prefácio de Renata Udler Cromberg. Inclui o ensaio biobibliográfico "Itinerário para uma leitura de Freud", de Paulo Endo e Edson Sousa) e O mal-estar na cultura (revisão técnica e prefácio de Márcio Seligmann-Silva e o mesmo ensaio biobibliográfico de Paulo Endo e Edson Sousa), L&PM editora, 2010;

- por Kristina Michahelles: Totem e tabu, L&PM editora, 2010(lançamento previsto para 2010);

- por Marilene Carone: Luto e melancolia e Conferências introdutórias à psicanálise, Cosac Naify (lançamento previsto para 2010).

Afigura-se, assim, a possibilidade de, uma vez mais, reconstruirmos nossa estante de livros de psicanálise, através de novas escolhas abertas à diversidade de tamanhos, cores, títulos e origens dos volumes que quisermos conservar - escolhas abertas, enfim, a novas palavras. Talvez este seja um bom retrato, plural, de um saber para os tempos que correm.

Como se disse no debate de 31 de março, promovido pelo Conselho de Direção entre o Departamento de Psicanálise e o germanista Paulo César de Souza: dado que "nem a tradução é impossível, nem o tradutor é invisível" (Claudia Berliner), uma possibilidade diante de nossa tarefa de pensar o texto é a de cotejar diferentes traduções, "tomando-as como o que são - ferramentas de leitura, impossíveis de serem perfeitas" (Renato Mezan) - e praticar, assim, uma espécie de "politeísmo - que questione, às vezes subversivamente, as convicções dos leitores e também dos tradutores" (Noemi Kon).

O espaço do Boletim Online está aberto para a continuidade desta discussão.

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(1) Referência à canção de Caetano Veloso que dá título a seu 12º LP solo, lançado em 1981.
(2) Da equipe editorial do Boletim Online.
(3) Cf. "Prefácio especial para a edição brasileira de Anna Freud", In FREUD, S. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, volume XI. Rio de Janeiro: Imago, 1970, p. XI.
(4) Cf. "Nota do editor brasileiro" In FREUD, S. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, volume XI. Rio de Janeiro: Imago, 1970, p. 5. O leitor incrédulo deve comparar o texto desta nota aos textos das demais notas, ao longo da coleção.
(5) Na primeira edição de Os pensadores, "Cinco lições de psicanálise", "A história do movimento psicanalítico" e "Esboço de psicanálise" dividiam o espaço do volume 39 (1974) com "Textos escolhidos" do fisiólogo Ivan Petrovich Pavlov! Na edição de 1978, o volume Freud passaria a incluir "O futuro de uma ilusão" e "O mal-estar na civilização".
(6) Ao final deste texto, Marilene apresenta um valioso cotejamento das traduções, em diversas línguas, de diferentes conceitos freudianos.
(7) Sua primeira edição data de 1982.
(8) O tradutor apresentou seu projeto aos Estados Gerais da Psicanálise, conforme acessível em: http://www.estadosgerais.org/mundial_rj/download/3f_Hanns_112141003_port.pdf




 
 
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