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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    18 Setembro de 2011  
 
 
NOTÍCIAS DO SEDES

Sobre o 4º Vamos falar de Saúde Mental? – 6/08/11


RENATA ALEXANDRE LINS (1)


Para seguirmos tecendo o fio da história deste espaço criado no Instituto Sedes Sapientiae, se faz novamente necessário um breve resgate do caminho realizado até aqui. Diante das efervescências políticas ocorridas no ano de 2010 durante o processo de organização para a IV Conferência Nacional de Saúde Mental, e das demandas dirigidas ao Instituto Sedes por conta de sua tradição como um centro de resistência política civil à ditadura e de apoio a propostas de reformas psiquiátricas e outras no campo da saúde (2), nasce este espaço aberto aos trabalhadores de Saúde Mental de São Paulo.

Para tanto, um movimento de rearticulação política interna iniciou-se, dando origem a uma comissão que concentrou desejos de criar um espaço de participação e compartilhamento das angústias, práticas e aspirações advindas de nosso trabalho cotidiano, com vistas a gerar criações e posicionamentos coletivos diante do quadro atual da Saúde Mental.

No primeiro encontro, as dificuldades foram emolduradas pelas palavras "fragmentação" e "isolamento"; no segundo encontro, a montagem de cenas de trabalho geradoras de angústia representaram problemas fundamentais de ordem político-ideológica no campo, e as palavras que se destacaram para definir o grupo desta vez foram "multiplicidade e transversalidade" (3); no terceiro encontro, foram nomeados com clareza os princípios manicomiais e anti-manicomiais, que muitas vezes se apresentam mesclados em nossas próprias práticas (4).

Deste terceiro encontro nasceu a proposta de falarmos mais sistematicamente de nossas experiências cotidianas, com o intuito de construirmos uma cartografia da Saúde Mental na Grande São Paulo, geradora de articulação e pensamento. Norteados por esta ideia nos encontramos periodicamente, em reuniões da comissão impermanente, para organizar as apresentações de práticas - a princípio da Zona Oeste e da Zona Norte de nossa cidade -, o que logo se aliou à ideia de fazermos um duelo entre rappers e repentistas que simbolizasse, de uma maneira poética, "duelos" que têm emergido em nossos encontros - como o manicomial e o antimanicomial -, formato dialógico que já costuma fazer parte de ambas as formas de expressão artística.

No dia 6 de agosto, iniciamos o encontro com um breve retrospecto sobre o Vamos Falar de Saúde Mental?, com o intuito de acolher os novos integrantes. Em seguida, Márcio Farias, estudante de psicologia e rapper, coordenou uma roda de improviso inicial com todo o grupo, batendo palmas e criando um refrão, gingando algo como: "podemos compartilhar, eu não sei rimá mas vamos mudar a saúde mental, loucura e participação" (5), que tomava diferentes vozes e conteúdos entre os participantes. Após este aquecimento, nos dividimos em quatro grupos, por regiões da cidade de São Paulo, com vistas a um reconhecimento mútuo a partir da escolha de uma palavra sobre o porquê de estar ali, como: compartilhar, fazer história, aprender, integrar, articular.

A participação de Sebastião Marinho, o músico repentista, se iniciou aqui e seguiu entremeando todo o processo com improvisos musicais. Dizia ele de saída: "vocês é que sabem, mas o que percebemos entre nós é que quanto mais louco, mais cantador".

Passamos então às apresentações das práticas cotidianas. O primeiro serviço a se apresentar foi a instituição Projetos Terapêuticos, localizada na Zona Oeste, representada por mim, Luciana Mannrich e Luciana Ross. Iniciamos dizendo que a instituição privada existe há 10 anos e se propõe a desenvolver projetos de vida com pessoas que passaram por crises psíquicas graves e se encontram num estado de isolamento, paralisação e desesperança. Trabalhamos com uma orientação psicanalítica e intersetorial, em articulação com outros saberes e afinados com os princípios da Reforma Psiquiátrica. Partimos da inquietação básica de como abrir brechas nesse tempo contínuo da desesperança. Como desenvolver projetos de vida? Como produzir movimento, passagens subjetivas e sociais? Como produzir ligação? Nossa resposta básica: fazendo rede, considerando os diversos níveis de rede, que a partir de círculos concêntricos se entremeiam: entrevistas - programa - casa - recursos da cidade - equipamentos de saúde, outras instituições e pessoas do território mais imediato - territórios mais distantes via internet. Apresentamos mais em detalhes cada um dos grupos do programa de atendimento e em seguida falamos sobre o Tramando a Rede e o Boletim, dispositivos específicos de construção de redes, que abrem fluxos para os projetos, as passagens, as ligações, à semelhança de um tear. Destacou-se aqui o termo "urdidura", que pelo dicionário significa: "Ação ou efeito de urdir. Conjunto de fios de mesmo comprimento reunidos paralelamente no tear por entre os quais se faz a trama".

O segundo trabalho, apresentado por Denise Cardellini, também alocado na Zona Oeste, foi um projeto de investigação e intervenção numa escola pública do território, criado em dezembro de 2009, a partir de uma parceria entre o Centro de Saúde de Pinheiros e a escola Alfredo Bresser. Essa parceria demandou um trabalho inclusivo e ampliado por outras redes da comunidade, como a Autoformação Local, que tem como objetivo o compartilhamento de saberes e experiências de indivíduos e organizações públicas e da sociedade civil com atuação na área da Subprefeitura de Pinheiros. O objetivo do projeto denominado "Espaço Exploratório Lúdico" é conhecer mais a realidade escolar e construir um trabalho conjunto com os profissionais, alunos e familiares, a partir de conflitos que geram mal-estar, violência e exclusão. A criação de um espaço de maior continência, cuidados e inovações nas relações contribui para o rompimento de um ciclo de diagnósticos e medicalizações dos conflitos escolares e promove a abertura de novas possibilidades para os sujeitos. Denise apresentou mais em detalhe o processo de criação e desenvolvimento do projeto, como a escola se abre e ao mesmo tempo se fecha para esta nova experiência, e nos trouxe, ao final, falas de alguns dos alunos: "hoje foi o dia mais feliz da minha vida porque fui professor, ensinei ao meu colega a fazer tsuru, após passar por uma oficina de tsurus"; um outro aluno menciona: "a professora disse que não leva os alunos ao espaço lúdico porque não merecemos", era a primeira vez que estava indo ao lugar.

O terceiro relato, apresentado por Danielle Antonelli, Érica Fontana e Tatiane Anhaia foi sobre o PAI (Pólo de Atenção Intensiva em Saúde Mental) da Zona Norte. O serviço foi criado em 2007, como uma OSS - Organização Social da Saúde - , é uma parceria entre a Secretaria de Estado da Saúde e a Associação Congregação de Santa Catarina e funciona junto ao conjunto hospitalar do Mandaqui. Trata-se de uma unidade de internação em hospital geral com cerca de 1500 atendimentos por mês, com o objetivo de realizar internações breves, intensivas e humanizadas, com ações multiprofissionais e integradas à rede do território. Apresentaram um mapeamento de serviços diversos na zona norte (shopping, igrejas, cartórios, escolas, universidades, bibliotecas) e outro específico de serviços de saúde. Falaram mais em detalhes sobre a equipe e as atividades propostas e, no quadro da articulação em rede, as flechas iam do PAI para os demais serviços de saúde stricto sensu. Uma das inquietações trazidas pelo serviço era: "Qual a importância das nossas ações?". Um trecho da frase que encerrou a apresentação: "Eu só peço a Deus / Que a dor não me seja indiferente / Que a morte não me encontre um dia / Solitário sem ter feito o que eu queria..." (Mercedes Sosa).

Após um momento para o café, abrimos a plenária com a proposta de extrairmos questões à luz dos impasses atuais no campo da saúde. Como aproveitar as experiências para formularmos questões e decisões de caminhos para nós? Como este nosso trabalho retorna para as instituições, equipes e para as políticas?

O grupo é então invadido pelos graves acontecimentos no campo, que atingem o cerne de nossas conquistas no que diz respeito à Reforma Psiquiátrica. Os recentes posicionamentos políticos de liberação da internação compulsória para pessoas usuárias de crack e a legitimação das Comunidades Terapêuticas se apresentam como demandas de extrema urgência, que exigem nossa discussão e posicionamento.

A questão passa a ser então se comentamos os trabalhos apresentados ou se entramos nesta discussão sobre as políticas públicas. Aos poucos fica claro que uma conversa está ligada à outra, uma vez que não basta fazermos articulações políticas sem termos propostas, ou seja, nossa resposta passa por mostrar o que fazemos como alternativas.

Desse modo seguimos a discussão desde este prisma. Questões cruciais do campo passam a ser levantadas e relacionadas com as apresentações. Põe-se em jogo, por exemplo, as associações possíveis entre serviços públicos e organizações de apoio ao público. Escutamos ali uma instituição privada (que é articulada a uma OSCIP de mesmo nome, fundada há 2 anos), uma OSS e um serviço da rede pública, três iniciativas norteadas por princípios antimanicomiais.

O trabalho em rede foi um dos pontos nodais da discussão, assim como os questionamentos sobre o que é mesmo trabalhar em rede? Como entender as redes para além da lógica dos encaminhamentos para outros serviços? Como construir redes quentes que façam frente às redes frias (6) de pensamento conservador e hegemônico que, oferecendo-se como soluções às questões prementes que se apresentam, ampliam sua influência na mídia a cada dia promovendo retrocessos no campo?

Como apresentar as alternativas? Desde que lugar nos posicionamos? Cabe já nos nomearmos como Observatório de Saúde Mental do Instituto Sedes Sapientiae? Com quem nos articulamos? Por onde nos manifestar? Foi apresentada brevemente a Frente Antimanicomial do Estado, que se constituiu como uma resistência diante das demandas atuais. A internação compulsória é um ato médico ou um sequestro administrativo? Isto é recolher e não acolher. Alguém lembra da importância da questão do tempo: como dar lugar para a urgência da intervenção e ao mesmo tempo para a paciência de tirar alguém do sofá (referência à apresentação do Projetos Terapêuticos)? Como articular macro com micropolítica?

Alguém diz: "Vamos criar uma urdidura. Esse é o nosso trabalho".

Os pontos dados pelo cantador ao longo do encontro falavam ternamente sobre o afeto presente que ali se desenvolvia. Como alguém disse, "essa coisa quente que fazemos aqui", essa quebra do isolamento a partir de um compartilhamento de questões, de angústias e também da costura de possibilidades, de um jeito de seguirmos.

Fizemos neste encontro uma passagem delicada: de um regime mais fluido dos afetos para um registro de reflexão sobre o que se realiza e o que não se consegue realizar. Fica clara a ânsia do grupo em se constituir como um coletivo que tenha corpo, voz, consistência e reconhecimento social para se posicionar nas lutas políticas que se apresentam no campo da Saúde Mental a partir das estratégias que desenvolvemos cotidianamente.

Alguém costura mais dois pontos entre os níveis macro e micro: "A ditadura no Brasil acabou em termos propriamente políticos. Precisamos abrir a nossa fundamentação a respeito da Saúde Mental. Pobre e preto continuam sem democracia. Saúde Mental tem a ver com repressão política e econômica" e, de outra parte: "os trabalhos de hoje falaram do investimento na potência da ligação que vai fazendo a erotização da vida, da vida indo pra frente".

O próximo encontro do Vamos Falar de Saúde Mental? será no dia 3 de setembro, das 10h às 13h, e está focado na questão das internações compulsórias para as pessoas usuárias de drogas. Desta vez fazem parte da comissão de organização impermanente: Daniel Assis, Estela Rabelo, Fátima Vicente, Luciana Mannrich, Márcio Farias, Patrícia Villas Boas, Pedro Carneiro, Pedro Mascarenhas, Sérgio Maida e Taeco Toma.

O grupo é aberto a todos os interessados, bastando inscrever-se pelo e-mail saudemental@sedes.org.br.

 


(1) Psicanalista; ex-aluna do curso de Psicanálise e membro do grupo Psicanálise e Contemporaneidade, ambos do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae; terapeuta da Instituição Projetos Terapêuticos e membro da comissão organizadora impermanente do 4º Vamos Falar de Saúde Mental?, da qual fizeram parte: Antonio Sérgio Gonçalves, Danielle Antonelli, Erica Fontana Miranda, Lilian Ferrarezi, Marcio Farias, Maíra Ferreira, Patrícia Villas-Boas, Pedro Carneiro, Pedro Mascarenhas, Renata A. Lins e Rodrigo Nóia Montan.

(2) Trecho baseado no livro História do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae (Narrativa Um, 2006).

(3) Trecho baseado em textos redigidos por Maria Silvia Bolguese, que podem ser encontrados na íntegra no site do Instituto. O primeiro deles, relativo ao 1o e ao 2o encontros, foi originalmente publicado no Boletim Online no. 16, de abril de 2011.

(4) Aqui remeto o leitor ao texto de Maíra Ferreira sobre o 3º encontro, originalmente publicado no Boletim Online no. 17, de junho de 2011, e que se encontra publicado no site do Instituto Sedes Sapientiae.

(5) Este e outros detalhes sobre a apresentação foram possíveis a partir das anotações de Pedro Mascarenhas durante o encontro.

(6) As redes frias (expressão utilizada aqui para fazer referência à lógica manicomial) podem ser entendidas como aquelas que produzem efeitos de homogeneização e serialização, enquanto as redes quentes se caracterizariam por um funcionamento no qual a dinâmica conectiva é geradora de efeitos de diferenciação e subjetivação, produzindo planos de produção de novas formas de existência. (Passos, E. e Barros, R. "Clínica, política e as modulações do capitalismo". Em: Clínica e Política 2 - Subjetividade, direitos humanos e invenção de práticas clínicas. Ed. Abaquar / Grupo Tortura Nunca Mais, Rio de Janeiro, 2009).




 
 
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