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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    20 Abril de 2012  
 
 
NOTÍCIAS DO DEPARTAMENTO

CONFIGURAÇÕES DO RACISMO NO BRASIL SÃO QUESTÕES PARA A PSICANÁLISE?


MARIA AUXILIADORA DE ALMEIDA CUNHA ARANTES [1]

 

 

A teoria psicanalítica freudiana e, mais especificamente, os textos de Freud que formulam o pensamento sobre a cultura se tornam, cada vez mais, indispensáveis aos que procuram as implicações da cultura sobre a construção da subjetividade.

O entrelaçamento cultura e subjetividade é produto do vínculo essencial entre a história da espécie e a história singular e se desvela na história do sujeito atravessado pelas vicissitudes desta relação. A história da qual cada um se apropria é um fazer permanente, sobredeterminado pela necessidade e afetado pelo desejo. Simultaneamente a dor e prazer/desprazer são acólitos neste caminho que é percorrido entre marcas, povoado de vestígios, nenhum deles inocente e sem sentido. Prazer e desprazer são princípios do funcionamento psíquico; “dor uma experiência do excesso, originária do campo da destrutividade e da crueldade”.  

Entre as manifestações da crueldade e da dor presentes nas raízes da fundação do nosso país, o racismo e a violência são expressões do modelo de predação e rapinagem dos povos aqui encontrados, modelo este que os europeus, então recém-chegados, exerceram e mantiveram como prática de colonização.

No Relatório ao Comitê Contra a Tortura elaborado pelo Ministério da Justiça, em 2000, Luciano Mariz Maia fez uma análise demonstrando que, no Brasil, a colonização portuguesa implantou a prática da tortura e de tratamentos desumanos, degradantes e cruéis, e que as penas corporais eram o principal instrumento de punição dos mais diversos tipos de delito, conforme determinava a Coroa Portuguesa. “A formação do Estado brasileiro realçou a origem patrimonialista do processo de colonização, quando a Coroa Portuguesa confiou a empreendedores privados a exploração das capitanias hereditárias, em que os donatários também tinham ‘direito à designação de capitães e governadores’ (...) e também toda a jurisdição cível e criminal, incluindo a alta justiça (pena de morte e talhamento de membro) relacionada com os peões, índios e escravos”.  

 

A escravização do negro, que vigorou oficialmente no Brasil até 1888, deixou marca indelével na nossa história e os incontáveis estudos sobre sua vigência não esgotam e nem exorcizam a barbárie perpetrada pelos portugueses, pelos brasileiros e compartilhada pela sociedade. Maia retoma um estudo de Luiz Felipe Alencastro que descreve a escravização dos negros africanos trazidos para o Brasil como uma política de desenraizamento, de dessocialização e decorrente despersonalização dos escravizados. “Desembarcado nos postos da América portuguesa, mais uma vez submetido à venda, o africano costumava ser surrado ao chegar à fazenda. (...) A primeira hospedagem que [os senhores] lhes fazem, logo que comprados e aparecem na sua presença, é mandá-los açoitar rigorosamente (...)”.  

 

A tortura na Colônia e no Império e até 1888 foi sustentada como um recurso do poder político para garantir o poder econômico e a riqueza, “pois os escravos, mesmo sendo considerados mercadorias, foram inequivocamente os principais produtores da riqueza do país: da extração do ouro, da produção do tabaco e do açúcar”.


Este comportamento de violência desmedida contra o negro escravizado, na opinião desses autores, serviu como base para um comportamento que será reproduzido na prática da tortura ocorrida durante a ditadura civil-militar, implantada no Brasil a partir de 1º de abril de 1964, dentro dos mais diferentes lugares públicos ou privados onde a tortura se manteve como prática extrema e cruel - para arrancar informações, comprovar dados, punir ou simplesmente para humilhar.

 

Em relação aos indígenas não foi diferente. Fabio Konder Comparato diz que o “apresamento de índios para servirem como mão de obra escrava dos colonizadores brancos, inclusive dos altos funcionários nomeados pela Coroa Portuguesa, aqui estabelecidos como proprietários rurais,  perdurou até o fim do século XVIII. No Norte do Brasil, o pretexto para tal prática era grosseiro: faziam-se entradas para resgatar índios que teriam sido mantidos como escravos, após uma guerra tribal. O falso resgate justificava, aos olhos do governo colonial e da Igreja, o estabelecimento de um novo cativeiro, doravante em proveito dos brancos. Mas quando a expedição oficial era recebida no sertão com hostilidade, não se hesitava em dizimar tribos inteiras”.


Não obstante a Proclamação da Independência do Brasil e a elaboração da primeira Constituição de 1824 terem abolido os açoites, a tortura, a marca de ferro quente e todas as penas cruéis, o Código Criminal do Império de 1830 previa que se o réu for escravo, e incorrer em pena que não possa ser capital ou de galés, será condenado na (pena) de açoites e, depois de os  sofrer, será entregue ao seu senhor, que se obrigará a trazê-lo com um ferro pelo tempo e maneira que o juiz designar.

 

Fragmentos ainda pulsantes da história da nossa construção como povo realimentam as produções de nossa(s) subjetividade(s) em processos atravessados pela experiência da dor, que “se inscreve no registro das representações e afetos adscritos à ordem da morte, da destruição”.

 

O racismo é um componente inconteste de nossa formação cultural e por isso mesmo presente nas nossas singulares histórias, muitas vezes denegado, negado, forcluído, manifesto, combatido ou questionado, necessariamente integra o conjunto das questões com as quais a psicanálise e os que a exercem devem se importar e sobre as quais podem e devem se manifestar.


As possibilidades que o Departamento de Psicanálise abre para estabelecer uma interlocução sobre o racismo e o negro no Brasil certamente ampliam caminhos para a consolidação da nossa constituição como cidadãos e para a ampliação de nosso fazer como psicanalistas.

 

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[1] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise e da comissão organizadora do evento “O racismo e o negro no Brasil: questões para a psicanálise”.

[2] COSTA, J. F, “Da cor do corpo: a violência do racismo”, in Violência e Psicanálise. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1984. Este texto inicialmente foi publicado como prefácio ao livro Tornar-se negro, da psicanalista Neusa dos Santos. Ainda neste texto, afirma Jurandir Freire Costa : “O desprazer, todos sabemos, não pertence a uma linhagem psíquica autônoma, diversa em natureza e objetivos da linhagem do prazer. Ele é tão-somente o momento negativo, o passo atrás dado num processo imantado pela positividade da experiência de satisfação. Prazer e desprazer são facetas de uma mesma ordem de orientação psíquica ou, se se quiser, de um mesmo princípio do funcionamento mental. (...) Diversa é a situação de pensamento atraído para a órbita da dor. A dor não é um fenômeno pertencente à série de elementos que compõem o regime erótico. A experiência da dor inscreve-se no registro das representações e afetos adscritos à ordem da morte, da destruição. Diante da dor, o que interessa é recompor a integridade do aparelho psíquico esgarçado pelo estímulo excessivo. Na ‘experiência de dor’, ao contrário da ‘experiência de satisfação’, o movimento do psiquismo rigidifica-se. Reduz-se a acionar defesas cujo único objetivo é controlar, dominar, fazer desaparecer a excitação dolorosa. O modelo de compreensão das reações psíquicas em face da dor é o da compulsão de repetição, como Freud demonstra a propósito das neuroses traumáticas”.

[3] MAIA, L. M., “Mecanismos de punição e prevenção da Tortura”, texto apresentado no Seminário Nacional “A eficácia da Lei da Tortura”, In: Revista CEJ, Centro de Estudos Jurídicos do Conselho de Justiça Federal, nº 14, p. 45.

[4] MAIA, L. M., idem, p. 46.

[5] BOMFIM, M., A América Latina – males de origem, Rio de Janeiro, Topkooks, 1993, p. 131.

[6] COMPARATO, F. K., Dossiê Ditadura – Mortos e Desaparecidos Políticos no Brasil 1964-1985, Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos, Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, Prefácio, p.15.

[7] MAIA, L. M., “Mecanismos de punição e prevenção da Tortura”, texto apresentado no Seminário Nacional “A eficácia da Lei da Tortura”, In: Revista CEJ, nº 14, p. 47.

[8] COSTA, J.F., op. cit..

 




 
 
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