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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    21 Junho de 2012  
 
 
NOTÍCIAS DO CAMPO PSICANALÍTICO

O AFETO É UM MOVIMENTO EM BUSCA DE UMA FORMA ANDRÉ GREEN, 1927-2012


SÍLVIA NOGUEIRA DE CARVALHO [1]

Morrer... Dormir... Dormir... Talvez sonhar
Shakespeare, Hamlet

Nascido em 1927 no Cairo, André Green passou a viver em Paris em 1946, onde completou seus estudos em medicina com a especialização em psiquiatria. Clínico independente das escolas de psicanálise em sua leitura da obra freudiana, analisou-se com Maurice Bouvet, afiliando-se à Sociedade Psicanalítica de Paris (SPP) sem impedir-se de passar a frequentar os Seminários de Lacan a partir do Colóquio de Bonneval de 1960, no qual Green apresentara um trabalho sobre as pulsões e o inconsciente, problematizando as relações entre este e a neurobiologia. Desde 1961 interessou-se também pelo pensamento de Winnicott e, mais tarde, pelo de Bion, a fim de fazer conversar a teoria pulsional e a teoria da relação de objeto[2].


Da geração de Guy Rosolato (de quem se tornara amigo ao trabalharem juntos no hospital Sainte-Anne[3]), de Leclaire, Laplanche, Pontalis, Anzieu e Aulagnier, o primeiro tempo de seu percurso foi marcado pelo trabalho com os conceitos de afeto, de discurso vivo, de estruturas não neuróticas e do narcisismo. Defendeu a teoria da heterogeneidade do significante, tendo em mente a referência freudiana para considerar que o significante não pode ser reduzido à representação de palavra - envolvendo também a representação de coisa, os estados do corpo e o ato - e mapeou os diferentes destinos do afeto na psicopatologia psicanalítica. Concebeu o narcisismo negativo, ao valorizar a pequena nota de Freud - no Complemento Metapsicológico à Teoria dos Sonhos - sobre a alucinação negativa[4].

Amante de Shakespeare, ao posicionar-se nas discussões relativas ao valor do conceito de pulsão de morte na teorização freudiana, na entrevista de 2011[5] Green reafirmaria que crer ou não crer não é a questão: trata-se de reconhecer que “há um negativo radical, que diz NÃO, sem referência a qualquer positividade”. Que nos digam as figuras clínicas do ódio, em seus movimentos individuais de desorganização (Marty), em sua destrutividade (Winnicott).

Seja nos ensaios em que se dedicou à sua singular perspectiva de aplicação da psicanálise – a da implicação subjetiva assumida pelo psicanalista que desliga o texto -, seja em artigos teóricos importantes, Green não se furtou à escolha deliberada de “deixar transparecer parte de sua intimidade a fim de tocar o leitor em sua própria intimidade”, conforme o elogio de Jean-Bertrand Pontalis em entrevista à revista Percurso[6], numa referência à força do artigo “A mãe morta” - que teve uma de suas raízes na recordação de Green do momento depressivo vivido por sua própria mãe diante da trágica perda da irmã mais nova, ocorrida quando Green contava com dois anos de idade.

Nos anos 90 André Green sistematizou suas concepções teórico-clínicas, ao avançar dos adjetivos ao substantivo na introdução do conceito de trabalho do negativo, expressão tirada de sua leitura da Fenomenologia do Espírito, de Hegel[7].

Com os pés no novo século, propôs, a partir de 2000, um projeto coletivo de investigação da psicanálise que se chamará contemporâneo e não greeniano, perspectiva inscrita desde o título do livro Idées directrices pour une psychanalyse contemporaine (2002). No dizer de Fernando Urribarri, psicanalista argentino que se tornou seu principal interlocutor nessa empreitada, "possivelmente é o primeiro grande autor da história da psicanálise que milita contra o estabelecimento de uma corrente militante, de um enésimo discurso dogmático, identificado com seu nome"[8].

Faleceu André Green. Para além do convite à leitura de sua obra [9], ficaram as entre-vistas: Um psicanalista engajado – conversas com Manuel Macias, e a série de vídeos realizada a partir da presença amiga de Urribarri – registros que parecem pôr em ato o valor por ele atribuído à passagem de nossas palavras pelo pensamento do outro.

Para embaralhar um pouco as cartas das obras em arte e em psicanálise, em sua homenagem evocamos o depoimento do cineasta Fritz Lang sobre o que é um realizador, em sua entrevista a Jean-Luc Godard (Paris, 1964):

Ele tem de entrar na pele de um ator. Ele tem de saber por que motivo as pessoas do roteiro fazem o que fazem (...) Um dia, perguntaram-me isto, e eu tive uma ideia que nunca mais me largou (...) Talvez, nos nossos filmes, ponhamos os nossos corações, os nossos desejos, tudo o que amamos ou nos traiu (...) Penso que um realizador tem de ser um psicanalista.



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[1] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae e da equipe editorial deste Boletim Online.
[2] Sobre este tema, cf. Camila Junqueira. Rumo à “metapsicologia dos limites”: o diálogo possível entre a teoria pulsional e a teoria das relações de objeto e algumas de suas consequências: Freud, Winnicott e Green. Tese de doutorado. IP-USP, 2010.
[3] Sainte-Anne reunia, ao lado do hospital psiquiátrico propriamente dito, uma série de serviços e instituições a ele associados, e tais setores eram representados por figuras como as de Henri Ey (bibliotecário e conferencista semanal), Julián de Ajuriaguerra (psiquiatra responsável por um pequeno serviço, anatomopatologista, clínico de patologia do cérebro e pesquisador do desenvolvimento da criança), ao qual René Diatkine estava ligado, Jean Delay (chefe da Clínica Psiquiátrica), Pierre Marty (que desenvolveu suas primeiras pesquisas em psicossomática), Lebovici, Lacan e Lagache. 1953 foi o ano em que os dois últimos deixaram a Sociedade Psicanalítica de Paris, e fundaram a Sociedade Francesa de Psicanálise, o que coincidiu com o momento da nomeação de Green para a residência em Sainte-Anne). Cf. Green, Um psicanalista engajado.
[4] “Quero acrescentar, a título de complemento, que uma tentativa de esclarecimento da alucinação deveria principiar não com a alucinação positiva, mas com a negativa” (Freud, 1917 [1915] in Obras Completas vol. 12 – Introdução ao narcisismo, Ensaios de metapsicologia e outros textos. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 165).
[5] Percurso de André Green 1960-2011. Entrevista com Fernando Urribarri (vídeo).
[6] Cf. Percurso 42, “Jean-Bertrand Pontalis, na borda das palavras”.
[7] Produto da pulsão de morte, o trabalho do negativo opera uma positivação da negatividade, pela qual o buraco, a falta e o luto se tornam objetos de identificação e de investimento, em detrimento do próprio objeto faltante.
[8] Fernando Urribarri. “Legado de André Green: Recordar, elaborar, assumir” - Discurso pronunciado por ocasião dos funerais de André Green.
[9] Editados em português: O discurso vivo (RJ, Francisco Alves, 1982); Narcisismo de vida, narcisismo de morte (SP, Escuta, 1988); A pulsão de morte [co-autor] (SP, Escuta, 1988); O desligamento – psicanálise, antropologia e literatura (RJ, Imago, 1994); Revelações do inacabado – sobre o Cartão de Londres de Leonardo da Vinci (RJ, Imago, 1994); André Green e a Fundação Squiggle [editado por Jan Abram] (SP, Roca, 2003); Psicanálise Contemporânea: Revista Francesa de Psicanálise: Número especial 2001 [org.] (RJ, Imago e SP, SBPSP, 2003); Orientações para uma psicanálise contemporânea – desconhecimento e reconhecimento do inconsciente (RJ, Imago e SP, SBPSP, 2008); O trabalho do negativo. POA, Artmed, 2010). Também editados em castelhano: De locuras privadas (Amorrortu), La nueva clínica psicoanalítica y la teoría de Freud (Amorrortu), El lenguage en el psicoanálisis (Amorrortu), Las cadenas de Eros (Amorrortu), El tiempo fragmentado (Amorrortu), La diacronía en psicoanálisis (Amorrortu), La causalidad psíquica (Amorrortu), El pensamiento clínico (Amorrortu). Para uma introdução à obra de André Green, ver Talya Candi, O duplo limite: o aparelho psíquico de André Green (SP, Escuta, 2010).



 
 
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