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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    21 Junho de 2012  
 
 
PSICANÁLISE E POLÍTICA

TORTURA: TESTEMUNHOS DE UM CRIME DEMASIADAMENTE HUMANO

ABERTURA DA DEFESA DA TESE DE DOUTORADO REALIZADA NO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO DE CIÊNCIAS SOCIAIS DA PUC/SP NO DIA 24/10/2011


MARIA AUXILIADORA DE ALMEIDA CUNHA ARANTES [1]

Razões de Escolha

Preliminares

O título do meu trabalho é Tortura: testemunhos de um crime demasiadamente humano. No título estão contidas ideias centrais do meu estudo: a tortura, crime praticado pelos humanos de forma demasiadamente cruel e degradante, relatado a partir de testemunhos de atingidos pela tortura.

A prática da tortura percorre a história dos humanos e sua sustentação ao longo dos tempos, apesar do processo contínuo de desenvolvimento da cultura, faz supor que há um empecilho intrínseco aos humanos que impede sua exclusão do campo da civilização.

A tortura supõe a presença de três protagonistas: o torturado, o torturador e a sociedade que a permite. E é em função desta concepção que tomei a decisão, a partir das condições de que disponho, de provocar uma ruptura no campo de silenciamento que envolve a prática da tortura e torná-la mais visível. O fazer calar que se sobrepõe à tortura interessa principalmente a um segmento da sociedade: o dos torturadores e de seus mandantes, dos que a autorizaram e continuam a autorizá-la, dos que sabem que a tortura ocorre e dos que se calam porque pensam ser um assunto que não lhes diz respeito.

Um dos objetivos da minha pesquisa é contar, recontar e divulgar testemunhos de vítimas da tortura e que, insubmissos à situação de vitimados, denunciaram torturas que sofreram e deram nome aos torturadores, contaram o que viram ocorrer nos lugares em que estavam presos: no Brasil, durante a ditadura civil militar; em campos concentracionários durante a Segunda Guerra Mundial; e em Argel, durante a guerra da Argélia.

Convicta de que a tortura é um procedimento milenar, reuni fragmentos de acontecimentos em que a tortura foi uma prática desmedida que dá materialidade à afirmação freudiana de que a destrutividade é intrínseca à condição humana. Exatamente por isso os textos escritos por Freud constituem a principal referência a que recorri para demonstrar que, apesar dos esforços humanitários e civilizatórios que reiteradamente condenam a tortura e outros comportamentos que aviltam a humanidade, a destrutividade insiste e se mantém.


A construção da tese

A decisão de escrever esta tese é antiga. Começou quando me aproximei e conheci mais de perto os efeitos da implantação da ditadura civil-militar no Brasil a partir de 1964. Através da campanha pela Anistia Ampla Geral Irrestrita, no final da década de 1970, tive acesso aos casos de tortura, de assassinato e de desaparecimento por motivos políticos e convivi com as histórias dos atingidos neste período e, mais diretamente, com os casos de tortura aos presos políticos.

Uma das cenas que ficou inscrita na minha memória foi a primeira visita ao Presídio da Justiça Militar Federal em São Paulo, conhecido como presídio do Barro Branco, em 1977. Fui recebida por todos os presos políticos que ali estavam e constatei que os ditadores foram implacáveis com os militantes das organizações políticas resistentes à ditadura.

Tomei, sem saber, a decisão que me acompanhou desde então: denunciar a tortura, sempre. O recurso para fazê-lo foi percorrido de diferentes formas e agora, através da pesquisa acadêmica, compartilho o resultado desta busca.

A tipificação da tortura a que me refiro, neste trabalho, é a adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1984 e ratificada pelo Brasil em 28 de setembro de 1989, a Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes.

O artigo 1º diz:

Para fins da presente Convenção, o termo tortura designa qualquer ato pelo qual dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais, são infligidos intencionalmente a uma pessoa a fim de obter, dela ou de terceira pessoa, informações ou confissões; de castigá-la por ato que ela ou terceira pessoa tenha cometido ou seja suspeita de ter cometido; de intimidar ou coagir esta pessoa ou outras pessoas; ou por qualquer outro motivo baseado em discriminação de qualquer natureza; quando tais dores ou sofrimentos são infligidos por um funcionário público ou outra pessoa no exercício de funções públicas, ou por sua instigação ou com o seus consentimento ou aquiescência [2].

Neste artigo 1º há três elementos fundamentais para a definição da tortura: a ocorrência de dores ou sofrimentos agudos físicos ou psicológicos; a existência de uma intenção deliberada; o fato de tais dores serem infligidas por funcionário público ou pessoa investida em função pública.

A tese é composta de três capítulos e ao final apresento nas Considerações Finais as principais conclusões.

No Capítulo I sistematizo as contribuições da psicanálise a partir de textos escritos por Freud e ao apresentá-los no início tive a intenção de delinear um perfil de Freud profundamente envolvido com as questões de seu tempo, e no que diz respeito à destrutividade - sua indignação frente à devassa provocada pela Primeira Guerra Mundial que lhe era contemporânea. Os maus ventos da 2ª Guerra se infiltraram em sua casa em Viena, ainda em 1938, com a presença de soldados e posteriormente de agentes da Gestapo que vasculharam sua casa, roubaram seu dinheiro e levaram presa sua filha Anna Freud. Um de seus biógrafos diz que

A ideia de que o ser que lhe era mais precioso neste mundo, e de quem dependia sobremaneira, pudesse achar-se em perigo de ser torturado e deportado para um campo de concentração, era difícil suportar. Freud passou o dia inteiro andando de um lado para outro, fumando uma série infinda de charutos, a fim de amortecer suas emoções. Quando ela voltou, às sete horas da noite desse dia, já não era mais possível reprimir essas emoções. No seu diário desse dia, (...) há somente uma lacônica entrada: ‘Anna na Gestapo’.[3]

Os textos de Freud que tomei como principal referência foram “Totem e Tabu” (1913); “Reflexões para os tempos de guerra e de morte” (1915); “O Mal-Estar na Cultura” (1929) e “Por que a guerra?” (1933). Estes quatro ensaios apresentam uma concepção radicalmente pessimista dos avatares do homem frente ao seu único e possível destino: a morte.

Quando Freud estabeleceu a filogênese como uma contingência da história da humanidade a partir do mito da morte do pai da horda, o mito do parricídio, talvez ainda não pudesse supor que este ato fundador viesse a se presentificar de forma tão avassaladora, a ponto de estabelecer uma fenda no avanço da civilização e da cultura, atravessada pela pulsão de morte. Dessa fenda emerge a tortura.

Incluo, neste capítulo, subsídios da psicanalista francesa Nathalie Zaltzman, autora contemporânea que entrelaça a psicanálise à figura do homo sacer sistematizada em Giorgio Agamben, articulação indispensável para a compreensão do crime de tortura. Faço, ao final, uma referência a Françoise Sironi, etnopsiquiatra francesa do Centro Georges Devereux na Universidade Paris VIII, que formulou uma concepção sobre o silenciamento imposto pela tortura afirmando que a tortura faz calar.

Iniciar a tese com os subsídios da psicanálise torna possível percorrer os relatos de tortura que dão materialidade às concepções construídas por Freud, sobre a destrutividade e a crueldade, no campo desagregador presidido por Tanatos.

No campo antagônico, as tentativas expressas nos pactos humanitários para enfrentamento da prática da tortura são reiteradamente derrotadas.

O que é possível é tentar construir momentos de trégua, como propõe Freud, ou de reciprocidade, que podem vir a ser cada vez mais constantes, visando um dia que não se definirá como a soma dos habitantes do globo, mas como a unidade infinita de suas reciprocidades, conforme a concepção de Jean Paul Sartre, no prefácio ao livro de Frantz Fannon, Os condenados da Terra [4], sobre a guerra de libertação da Argélia.

O Capítulo II, “A tortura no Brasil durante a ditadura civil-militar”, está organizado em três partes. Após uma breve introdução e referências aos fatos que antecederam o golpe de 1º de abril de 1964, abordo na Parte I o conceito de exceção, e mais precisamente de Estado de Exceção, retomado por Giorgio Agamben em um estudo publicado em 2003, no qual aponta a atualidade do Estado de Exceção que se impôs como paradigma nos tempos pós 11 de setembro de 2001.

Agamben considera que as democracias ocidentais vivem uma relação entre o direito e a violência, demonstrando que o ordenamento jurídico contém em si seu contrário: a suspensão dos direitos, que admite uma violência não regulada pela lei [5]. A ditadura civil-militar entre 1964 e 1985 que se impôs aos brasileiros estabeleceu a exceção como regra.

Apresento, brevemente, os principais conteúdos dos 17 Atos Institucionais da ditadura civil militar no Brasil, que escreveram passo a passo a arquitetura da exceção e a decorrente arbitrariedade, onde a prisão, a tortura, o assassinato e o desaparecimento dos opositores foi exercido sem reservas.

Na Parte II transcrevo testemunhos de cinco ex-presos políticos brasileiros torturados durante este período: Gilse Cosenza, presa em Belo Horizonte em junho 1969; Alípio Freire, preso em São Paulo em agosto de 1969; Rita Sipahi, presa no Rio de Janeiro em 1971; Aldo Arantes, preso em São Paulo em dezembro de 1976 e Haroldo Lima, preso em São Paulo em 1976.

As atividades destes e de todos os demais presos, dentro das prisões no Brasil, produziu importante subsídio para a elaboração das denúncias da tortura e dos torturadores, para os documentos da Campanha da Anistia, que continuam como referência para o que ocorreu dentro das prisões no Brasil.

Encerro o capítulo na Parte III, problematizando questões relativas à ditadura civil-militar, ainda não resolvidas, e a necessidade de criação de uma Comissão da Verdade que possa fazer avançar o processo de consolidação da democracia no nosso país.

O Capítulo III, “Referências históricas”, está dividido em duas partes.

Na Parte I, me refiro aos casos paradigmáticos que foram balizas para o percurso sobre a incidência da tortura através dos tempos. Organizo o capítulo em torno de narrativas e testemunhos, que não excluem outras referências ao longo do texto.

Inicio o percurso com um caso ocorrido em 1630, conhecido como o Processo dos Untores, no qual dois habitantes de Milão, Guglielmo Piazza e Giácomo Mora, foram vítimas da cruel e obscurantista prática da tortura. Sofrimentos intensíssimos e extremos levaram os dois a confessar que eram sim os responsáveis pela epidemia da peste que chegara à região. Este acontecimento recebeu uma análise de Pietro Verri que, juntamente com Cesare Beccaria, contribuíram para a condenação da tortura no século XVIII.

A segunda e terceira narrativas, ambas no século XX, se referem à Segunda Guerra Mundial e à Guerra da Argélia em 1957. Para escrever sobre estes acontecimentos, escolhi analisadores e testemunhos dos fatos, e este caminho atende um pedido feito pelos prisioneiros moribundos aos sobreviventes dos campos de extermínio nazistas:

Lembrem-se de tudo, contem tudo; não só para combater os campos, mas também para que nossa vida, tendo deixado um traço, conserve um sentido. Uma vida não é vivida em vão, se dela resta um traço, um relato, para somar-se às inúmeras histórias que fazem a nossa identidade [6].

Primo Levi e Julius Fucik são os testemunhos e faço referência específica ao uso das cobaias humana nos campos nazistas.

Sobre a Guerra da Argélia, o testemunho de Henri Alleg torna evidente que o uso da tortura nesse país foi um laboratório para procedimentos semelhantes nas ditaduras latino-americanas e especificamente no Brasil.

A inclusão de trechos da entrevista do general francês Paul Aussaresses, encarregado dos Serviços de Inteligência na guerra da Argélia, e principal integrante da 10ª Divisão de Paraquedistas, sob o comando do general Massu, revela que o desaparecimento de corpos assassinados dos prisioneiros foi uma decisão levada à prática nessa guerra. Aussaresses esteve no Brasil em 1973, a convite dos generais brasileiros como Adido Militar junto à embaixada da França em Brasília, e manteve, durante sua permanência no país, estreito contato com os militares, ministrando cursos e ensinamentos sobre técnicas de enfrentamento de opositores presos ou não..

Apresento informações sobre instrumentos de tortura usados durante a Inquisição na Idade Média e durante a Guerra da Argélia que inspiraram procedimentos de tortura no Brasil, o que pode ser percebido pelos testemunhos do ex-presos políticos.

Na Parte II deste capítulo, indico instrumentos da legislação internacional, principalmente a partir da Convenção Contra a Tortura de 1984. Faço referência às políticas de enfrentamento da tortura pelo Estado e governo brasileiros, expressas na Constituição de 1988, na adesão aos pactos internacionais, na aprovação da Lei brasileira 9.455 de 1997 contra a tortura, bem como abordo os procedimentos para a prevenção e o combate à tortura que vêm sendo construídos no país.

Nas Considerações Finais apresento as reflexões decorrentes dos capítulos anteriores. Sistematizo as quatro principais conclusões que afirmo como decorrentes desta pesquisa:

1. A tortura é um ato que só os humanos praticam e o fazem ao longo da história da espécie humana
2. O torturador exerce a crueldade de forma extrema. Está consciente do que faz e por isso torna-se responsável pelo crime cometido
3. A tortura é um ato humano, cruel e degradante, e que atinge ao mesmo tempo a humanidade à qual o torturador também pertence
4. A inscrição psíquica produzida pela tortura não se apaga

- Em relação à primeira afirmação de que a tortura é praticada ao longo da história, incorporei testemunhos e narrativas que evidenciam o que os humanos conseguiram fazer contra a própria espécie humana, se destruindo mutuamente, de forma intermitente.

Desde os muros untados em Milão no século XVII, passando, no século XX, pelos testemunhos de Primo Levi e Julius Fucik, prisioneiros dos nazistas durante a Segunda Guerra Mundial, de Henri Alleg, prisioneiro na Guerra da Argélia, assim como nas denúncias dos ex-presos políticos da ditadura civil-militar no Brasil, todos contam a seu tempo o que os torturadores fizeram e causa perplexidade perceber que os motivos para torturar são sempre os mesmos: arrancar confissões, fabricar provas, humilhar e punir.

Ao analisar em 1770 o Processo dos Untores, ocorrido em 1630, o analisador Pietro Verri relata que, na aflição de encontrar culpados pela disseminação da peste que dizimava a população na Europa, chegando a matar 800 pessoas por dia na cidade de Milão, os governantes determinaram, a partir de comprovação dos médicos, que os culpados eram os untores dos muros da cidade de Milão. Sob tortura, dois suspeitos inventaram um crime que na verdade não tinham cometido, e nem poderiam, sendo a culpa creditada ao comissário de saúde Guglielmo Piazza em parceria com o barbeiro Gian Giácomo Mora: ambos foram acusados de fabricar um óleo venenoso feito de esterco, pus dissolvidos numa água amarelada que as lavadeiras usavam para as roupas, no quintal do barbeiro da cidade, onde brincavam seus filhos. Esta mistura, considera pelos médicos da época como o corpo de delito (assim nomeado pela primeira vez) era aplicada sobre um papel e com ela untavam os muros da cidade. Ambos, após torturas crudelíssimas, foram levados ao patíbulo onde morreram negando as acusações que lhes foram imputadas..

Ao aproximar o Processo dos Untores ao uso de cobaias humanas, no século XX, evidencia-se que, em ambas as situações, o conhecimento científico foi usado pelos torturadores. O extermínio, a otimização dos fornos crematórios, as experiências com cobaias humanas contaram com a participação de homens da ciência, e Primo Levi declarou que não se assistira, até então, a procedimento algum que combinasse com tamanha lucidez a tecnologia, o fanatismo e a crueldade.

Henri Alleg, preso na Guerra da Argélia, relata a tortura pela água, inspirada nos procedimentos da Inquisição, durante a Idade Média; esta modalidade retorna após 2001 pelas mãos do governo norte-americano, como foi amplamente divulgado pelos meios de comunicação. A novidade é que os norte-americanos passaram a considerar a tortura pelo afogamento como uma forma de tortura que denominaram de tortura light, o waterboarding.

Ao lado das posições estressantes, de práticas de isolamento acústico, sensorial, térmico e visual, da humilhação sexual e exposição prolongada ao frio excessivo alternado com calor intenso, essas práticas ficaram conhecidas através das mídias digitais, eletrônicas, televisivas e escritas como práticas aprimoradas de tortura, e por isso fora do alcance da legislação estadunidense que proíbe a tortura.

Alleg relata igualmente a forma de tortura com choques elétricos, anos depois também testemunhada pelos ex-presos no Brasil. Entre os procedimentos aplicados na Argélia, o mais nefasto foi revelado pelo general francês Paul Aussaresses, ao confirmar que o desaparecimento de opositores mortos era um método bem-sucedido, copiado do programa nazista de matar sem deixar vestígios e executado com eficácia contra os argelinos.

Ação semelhante foi executada pelos militares brasileiros, a partir dos anos 1970, com o início dos desaparecimentos dos corpos dos militantes mortos durante a ditadura civil-militar no Brasil, o que se repetiu no Uruguai, na Argentina, no Chile, durante as sucessivas ditaduras que se implantaram na América do Sul na segunda metade do século XX.

A ditadura civil-militar no Brasil criou um arcabouço jurídico para estabelecer a exceção como regra, o que otimizou a tortura e a morte e a melhor forma de organizá-las, escondendo os corpos assassinados, obstruindo o acesso aos arquivos da época.

O que ocorreu no país entre 1964-1985, período correspondente à implantação, desenvolvimento e atuação da ditadura civil-militar, permanece, em parte, oculto da sociedade brasileira.

A principal demanda hoje, para a consolidação da democracia, é a instalação da Comissão da Verdade, para apuração desse período.

- Em relação à conclusão de que o torturador é plenamente consciente e deve ser responsabilizado pelo crime cometido pergunto: - o que quer o torturador?

Ao sustentar seu anonimato e impor o silenciamento, instaurando o fazer calar, o torturador escapa do julgamento e da punição, e se torna um facilitador para que a tortura se mantenha. Prestou seu serviço ao poder político, econômico, religioso, não importa, e nesta condição incorporou a função de manus lunga do poder, usufruindo da impunidade.

A tortura transita no campo dos interditos, seu amálgama é o segredo, seu locus privilegiado, a prisão ou outro lugar qualquer onde a vítima é totalmente privada de sua liberdade. Neste local o torturador exerce seu poder sobre um semelhante assimetricamente imobilizado, vedado, amordaçado e nu.

O torturador precisa de duas confirmações:

a) primeiro, arrancar a confissão como prova, e cumpre nesta missão a obediência ao chefe, que lhe traz a certeza de ter cumprido, da melhor forma possível, um dever [7].

b) segundo, o torturador desfruta de uma vitória íntima, sem proclama e sigilosa, uma vitória interna, sem qualquer traço de ambivalência ou de culpa. Demonstrou ao torturado seu poder destrutivo e, ao exercê-lo, sente-se recompensado.

Por isso mesmo o torturador é responsável pelo que escolheu fazer e deve responder pelo crime de tortura.

- Terceira afirmação: a tortura é um ato humano, cruel e degradante, e que atinge ao mesmo tempo a humanidade à qual o torturador também pertence

Qualificar a tortura como ato inumano é um paradoxo. A tortura é cruel e extrema. Causa, sim, um ataque desmedido à humanidade, e por isso foi considerada crime que lesa a humanidade.

Os próprios humanos conseguiram arquitetar atos que incidem sobre o campo humano com tal intensidade que explodem e incidem sobre a cultura e deixam uma inscrição indelével.

No livro Memorias del Calabozo, o ex-preso político uruguaio Eleuterio Fernández Huidobro diz:

(...) a agressão que estavam cometendo contra nós já não era contra militantes políticos de uma organização concreta. A essa altura dos acontecimentos, estavam agredindo o gênero humano por nosso intermédio. O que estavam fazendo transcendia a questão política e a questão ideológica [8].

Os tribunais de Nuremberg, em 1945, e de Roma, em 1998, através de seus respectivos Estatutos, ao definirem os crimes de lesa-humanidade, explicitaram um esforço ao assumir estas práticas como máximas e as penalizaram como procedimentos que remetem à ruptura com a humanidade.

Afirmá-las como um ato inumano, por outro lado, leva à indiferença da sociedade, aliviada por uma prática que foi exercida por uma espécie de gente que não é humana, logo, uma prática que não lhe diz respeito.

Percorrendo os marcadores da história da tortura, com o recurso à teoria psicanalítica, a afirmação freudiana de que a destrutividade é inerente ao humano e, ao mesmo tempo, o principal empecilho à cultura, materializa paradoxalmente, a assertiva (a aporia) de que a tortura é um ato humano que estabelece uma fenda no próprio campo da humanidade, uma fenda que não se fecha.

E finalmente, a afirmação de Freud de que nada do que uma vez se formou, pode perecer, é incontestavelmente reiterada ao longo da tese, através dos testemunhos e fragmentos de acontecimentos apresentados.

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[1] Psicanalista. Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.
[2] Instituto Interamericano de Direitos Humanos/IIDH; Associação para a Prevenção da Tortura/APT; Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República/SEDH. Protocolo Facultativo à Convenção das Nações Unidas contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, p. 21.
[3] JONES, E. Vida e Obra de Sigmund Freud, p. 764.
[4] SARTRE, J. P., “Prefácio”, In: FANON, F. Los condenados de la Tierra. México: Fondo de Cultura Económica, 2007.
[5] AGAMBEN, G. Estado de Exceção (trad. Iraci D. Poleti). São Paulo: Boitempo, 2004.
[6] TODOROV, I. Em face do extremo, p. 111.
[7] Torturadores históricos como Eichmann e Rudolf Hess não tiveram qualquer constrangimento em afirmar que obedeciam a Hitler, e que esta era a única alternativa de que dispunham. A resposta do nazista Eichmann, ao ser interrogado durante o Tribunal de Jerusalém sobre sua responsabilidade frente à matança que coordenou dentro dos campos de extermínio, de que apenas cumprira ordens, tornou-se um exemplo sinistro e paradigmático da tentativa de se eximir da responsabilidade pelos atos criminosos, afastando qualquer fragmento de dúvida, de ambivalência e consequentemente de culpa frente ao crime que executou. Tal como Eichmann, também o general paraquedista francês Paul Aussaresses deixou a comunidade internacional perplexa quando, em 2001, em entrevista a jornalistas, disse que, durante a Guerra da Argélia, não poupou esforços em extrair informações sob tortura e fazer desaparecer corpos assassinados. Perguntado pelos entrevistadores em 2008 se havia se arrependido do que fizera, respondeu: Não, nunca tive qualquer arrependimento, obedecia a ordens do general Massu, e completou: se você é um oficial que depende de um superior que você respeita, você irá até o fim com ele.
[8] Huidobro, Mauricio Rosencof e outros sete dirigentes do Movimento de Libertação Nacional – Tupamaros, entre os quais, o atual presidente do Uruguai, foram mantidos pelos militares uruguaios em regime de reclusão e incomunicação por onze anos e meio, entre 1973 e 1985. Encarcerados em celas subterrâneas de dois metros por um e muitas vezes privados de água e alimentos durante esse período, os militantes eram ameaçados de eliminação a qualquer momento e torturados sem motivo aparente, reiteradas vezes. (Rosencof, M., Huidobro, E. F. Memorias del Calabozo, p.67.



 
 
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