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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    23 Novembro de 2012  
 
 
PSICANÁLISE E POLÍTICA

PSICANÁLISE, SAÚDE MENTAL E INSTITUIÇÕES: HISTÓRIA DE UM PROJETO [1]


MARIO PABLO FUKS [2]


Em 1984 se estabeleceu, entre o Instituto Sedes Sapientiae e a Secretaria de Saúde do Estado, um convênio que tinha por objetivo a realização de atividades formativas destinadas aos profissionais da Rede Ambulatorial de Saúde Mental. As instâncias responsáveis pela efetivação desses trabalhos foram a Coordenadoria de Saúde Mental e o Departamento de Psicanálise. Acho que este foi o acontecimento inaugural desta relação entre a psicanálise e as instituições públicas de Saúde Mental, que tem uma longa história de avanços, de paradas e de retrocessos, e que encontra uma nova oportunidade de se manifestar nesse encontro convocado pelo Conselho do Departamento.

Um convênio com essas características, entre um coletivo de psicanalistas e um organismo do Estado empenhado em uma transformação institucional, é fato, sem a menor dúvida, insólito e só pode ser compreendido como fruto de uma conjuntura histórica complexa que tentaremos descrever. Para entendê-la, temos que retroceder a um momento anterior, também fundamental, que foi a criação, nos anos 76, do Curso de Psicanálise do Sedes. A partir desse momento, e tendo como eixo o Curso - assim como o projeto que o animava -, tinha se constituído no Sedes um espaço muito ativo que, por sua consistência teórica e clínica, por suas posições ideológicas alternativas e por sua projeção no campo institucional, atraiu e possibilitou a formação psicanalítica de um número importante de profissionais.

O final dos anos 70 foi uma época de intensa mobilização em torno da reforma psiquiátrica, tendo como pano de fundo o anseio de redemocratização que atravessava o país. Surge em 1978 o movimento dos Trabalhadores de Saúde Mental, no Rio de Janeiro, que se expande rapidamente para outros estados. Partindo inicialmente de reivindicações trabalhistas e corporativas, esse movimento ganha importância crescente na organização dos profissionais da área, exerce um crítica do modelo psiquiátrico vigente, denuncia as condições desumanas a que se vêem submetidos os pacientes e começa a exigir transformações. No Sedes - que já havia sido um lugar importante de resistência nos períodos mais duros da ditadura e que era nesse momento um espaço fervilhante de atividades promovidas pelos cursos, pelo Centro de Educação Popular (CEPIS), por entidades sindicais, por grupos ligados aos movimentos populares -, se realiza o 1o Congresso Nacional de Trabalhadores de Saúde Mental (jan1979). Mas o movimento dos TSM não é o único pólo de aglutinação e referência no campo. Um par de meses antes do encontro mencionado, se realiza no Rio de Janeiro o 1º Congresso Brasileiro de Psicanálise de Grupos e Instituições, do qual participam os principais líderes da Rede de Alternativas à Psiquiatria, do Movimento Psiquiatria Democrática, da antipsiquiatria: Franco Basaglia, Félix Guattari, Robert Castel e Erving Goffman, que faziam parte de um movimento mais amplo de questionamento social e de criação de alternativas. (Cytrynowicz, 2006; Amarante, 1998).

A própria psicanálise e suas instituições formativas vinham sendo questionadas por diversas correntes do pensamento crítico em Saúde Mental. Grupos de analistas no mundo todo começaram a questionar o apoliticismo e a recusa reativa das questões sociais que dominavam a mentalidade das sociedades psicanalíticas dependentes da IPA. Tomando apoio nas posições do Grupo Plataforma Internacional, foi questionada a estrutura hierárquica - de configuração piramidal - no topo da qual estavam os didatas, sua rigidez normativa, a fronteira igualmente rígida estabelecida entre o dentro e o fora da instituição, a dogmatização das teorias, a ritualização das práticas e a reivindicação monopólica da herança freudiana. Muitos deles repensaram sua pertinência e abandonaram tais instituições, ou iniciaram e percorreram caminhos independentes. Contribuíram, também, com a criação e o fortalecimento de projetos psicanalíticos formativos de fôlego, promovendo uma colegialidade sem hierarquias em contextos institucionais novos (Fuks, 2003). O Sedes foi um deles.

Dentro do projeto do curso, o trabalho nas instituições públicas era investido positivamente. Para os trabalhadores de Saúde Mental - psicólogos, médicos, etc. -, ter uma formação psicanalítica séria e consistente deixou de ser dicotômico com o desenvolvimento de um projeto profissional num âmbito institucional público. Persistia, contudo, uma representação dicotômica consultório/estabelecimento público ligada ao lócus pertinente à experiência clínica psicanalítica, que se fazia presente na forma de uma pergunta sintomática que aparecia de tanto em tanto nas supervisões: “Podemos trazer um caso de instituição?”. Esta questão se articulava também com a indagação sobre as relações, diferenças e oposições entre psicoterapia e psicanálise. Psicoterapia e trabalho institucional eram conotados como algo menor e, de alguma maneira, bastardo.

Em 1982 fizemos uma Jornada sobre Psicoterapia e Psicanálise e houve um trabalho intenso em torno dessa questão. Rejeitou-se majoritariamente a ideia de uma distinção entre Psicanálise e Psicoterapia pautada pela quantidade de sessões, quantidade de anos de formação, quantidade de anos de análise pessoal. Que haja ou não psicanálise não depende do lugar geográfico, nem depende só da situação contratual liberal ou institucional, mas das condições dadas ou criadas para a montagem de um dispositivo em que certo tipo de fala e certo tipo de escuta sejam possíveis. Questionou-se a extrapolação de conceitos psicanalíticos - tais como neutralidade e abstinência -, habitualmente usada pelas instituições psicanalíticas para justificar uma condenação a priori de ação psicanalítica extramuros. É o caso exemplar de Bion e seu trabalho psicoterápico, durante a guerra, com grupos de combatentes hospitalizados em Northfield, que foi questionado por sua analista, Melanie Klein. Existe uma publicação impressa dessa Jornada, com artigos de Renata Cromberg e Rubia Delorenzo, Renato Mezan e Joel Birman, especialmente convidado para essa oportunidade. É muito possível que seja a primeira publicação do Departamento, quando ainda não existia departamento.

O convênio
O convênio assinado dois anos depois, em 1984, foi um passo à frente importantíssimo, que nos permitiria realizar um dos objetivos mais investidos do projeto formativo, no momento em que se iniciava uma nova gestão de governo no Estado de São Paulo. Através da Coordenadoria de Saúde Mental e da Divisão de Ambulatórios, conduzidas por um grupo de psiquiatras e sanitaristas progressistas - questionadores do modelo hospitalocêntrico e favoráveis à sua transformação - estava-se promovendo uma mudança no esquema de atendimento, através do fortalecimento quantitativo e principalmente qualitativo da rede ambulatorial. Alguns deles tinham formação e prática psicanalítica, como era o caso de Ana Pitta-Hoisel, que tinha a seu cargo a Divisão de Ambulatórios, e havia sido aluna do curso. A proposta era que organizássemos e desenvolvêssemos atividades formativas no Sedes, destinadas a capacitar os profissionais dos ambulatórios, especialmente através de cursos sobre os diferentes tipos de psicoterapia.

“As mudanças na rede oficial foram recebidas por nós com grande entusiasmo, mas também apreensão frente aos novos desafios. O trabalho com as instituições, há tanto tempo falado, tornava-se agora uma possibilidade concreta. A complexa malha de relações sociais, políticas e econômicas que se apresentam nesse campo funcionariam para nós como um agente provocador para o desenvolvimento do pensamento psicanalítico. E a partir daí viriam a enriquecer nossa prática e nossa reflexão psicanalíticas. Que possibilidades existiriam para a psicanálise dentro da rede pública? ” (Collucci et al,1987).

Mas não haveria também a possibilidade de transformar a psicanálise em um mito? Quais eram os riscos de absorção de seu discurso como um novo instrumento do poder psiquiátrico - como aconteceu com a psicanálise norte-americana que, imbuída de um ideal adaptacionista, ocupou por décadas um lugar relevante na formação dos psiquiatras e nos programas de Saúde Mental, restringiu o acesso às instituições psicanalíticas dos não-médicos e atenuou globalmente a potência questionadora da psicanálise?

A psicanálise e nosso papel como psicanalistas teriam sentido se promovessem uma mudança nas relações de poder dentro da ordem psiquiátrica. Era importante para nós marcar uma posição político-técnica definida, nada neutra em relação às políticas de Saúde Mental. Assim o fizemos na análise da demanda que nos era dirigida e na fundamentação da proposta. Regionalizar os recursos e reencaminhar a demanda não era suficiente, mas era fundamental. Os ambulatórios já existiam anteriormente, mas sua função havia sido a de porta de entrada e esteira transportadora, destinada a ocupar os leitos em manicômios públicos e hospitais privados conveniados, verdadeiros depósitos de doentes cronificados. Para transformar isto se montou a estratégia de equipes multiprofissionais destinadas ao acolhimento e tratamento da demanda ambulatorial. Mas as equipes estavam funcionando mal. Percebia-se uma burocratização dos serviços, uma ausência de comunicação entre eles e com os pacientes, uma mecanização do diagnóstico, a supermedicação farmacológica, a ausência ou escassez de recursos alternativos, como as psicoterapias. Em nosso diagnóstico da situação concluímos que estavam em jogo os anos de autoritarismo e de atraso formativo, mas principalmente a pregnância de um modelo manicomial de pensamento.

Como dizíamos na Introdução ao Plano de Aplicação (1985), “o modelo manicomial, tendo como baluarte evidente o espaço físico do hospital psiquiátrico, estende seus efeitos nas mais diversas áreas: no nível dos preconceitos presentes na população, no nível da estrutura organizacional das instituições, no nível das concepções a respeito da saúde e doença presentes nos agentes integrantes das mesmas, no nível das atitudes e comportamentos supostamente técnicos com que são abordados os pacientes e os problemas veiculados pela demanda. Quase tudo nesse modelo é dirigido a reduzir ao máximo o contato subjetivo com o sujeito que sofre, a cristalizar tal sofrimento na forma de doença mental classificável, de loucura instituída. O diagnóstico, podendo ser um instrumento conceitual orientador de uma estratégia clínica, transforma-se em um exercício ritual congelador e coisificante e em um coadjuvante para um destino de cronificação. A conduta terapêutica se subordina à rotina medicamentosa, reduzida a um dispositivo de manipulação e controle do distúrbio. Nessas condições, as vivências de burocratização da prática e de incomunicação não podem ser consideradas como uma falha na dinâmica das equipes, mas um corolário lógico onde o administrar (administrar diagnóstico – administrar remédio) constitui o relevo ambulatorial do reprimir, do conter, do silenciar, que predomina no âmbito da internação. Mas o fato de que tudo isso seja vivenciado como penoso e insatisfatório pelas próprias equipes, fala da presença de um conflito e de um desejo de mudança, sendo fundamental a presença desse elemento subjetivo para qualquer possibilidade de transformação.” (p. 2-3).

Vemos como isto correspondia à utilização do modelo psicanalítico para a compreensão de um sintoma institucional (submissão alienante a um mandato social, recusa do conflito, bloqueio do desejo, perda do sentido, impossibilidade de elaboração de sentido histórico e de um projeto identificatório) e a lógica que aponta para uma intervenção possível. Portanto, “... a democratização das relações, a abertura de espaços para repensar a experiência, o intercâmbio na busca conjunta de alternativas terapêuticas, enquanto ativamente procurados pelos integrantes da rede, configura condições particularmente aptas para inserir o trabalho formativo como parte viva integrante da prática institucional, não só para um melhoramento do atendimento, mas como parte integrante de todo atendimento possível.” (Idem p. 3).

Para tornar possível a psicoterapia havia que promover uma mudança que era ao mesmo tempo teórica, ideológica, política, organizacional, de questionamento e de redefinição de funções e papéis, e de posicionamento subjetivo. A discussão de situações clínicas permitiria a reintrodução da subjetividade na compreensão dos sintomas do paciente e na análise da implicação subjetiva do próprio terapeuta. Aumentava-se a consciência dos conflitos e a consciência do peso da ideologia que atravessava sua prática. (Fuks, 1986). O que propusemos, pelo menos para esse primeiro ano do convênio, eram seminários teóricos funcionando na modalidade de grupo operativo, no contexto do Sedes. Formamos uma equipe de coordenadores, constituída por 15 colegas, alguns com participação anterior ou atual na prática institucional, integrada por: Ana Maria Sigal, Beatriz Mendes, Cecília Hirchzon, Cleide Monteiro Arini, Eliane Vaz Macia, Eva Wongtchowsky, Gilka Zlochevsky, Helena Mange Grenover, Lucía Barbero Fuks, Mary Ono, Mario Fuks, Rita Cassia Cardeal, Rubia Delorenzo, Vivian Montag e Tereza Mantovanini Guedes. Organizaram suas atividades na forma de pequenos grupos de longo prazo, que serviram também de estímulo para elaborar e apresentar trabalhos no Congresso de 1985 [3] e, posteriormente, em agosto de 1986, no 1º Encontro de Psicanálise e Instituição do Departamento de Psicanálise, que já existia, e foi organizado pelo Setor de Saúde Mental e Instituições, que passou a existir também. O material apresentado neste encontro se publica em 1987, com introdução de Angela S. Cruz, Cecília Hirchzon, Fátima Vicente e Vera Collucci, incluindo artigos de várias das pessoas da equipe inicial e também de Laurinda Ribeiro de Souza, Gislaine Mayo, Clarissa Silbiger, Tania Hamoud e Orlando de Marco, membros do Departamento que realizavam trabalhos em outros marcos institucionais. (Psicanálise e Instituição, Agosto 86).

Em 1986, o governo do Estado realizou uma modificação na organização do atendimento à Saúde Mental, que passou a ser regionalizado em diferentes Escritórios Regionais de Saúde – subdivisões da Secretaria da Saúde, os ERSAS. As equipes de supervisores do Convênio passaram a ir até os locais de atendimento dos profissionais da rede, aproximando-se da realidade de trabalho das equipes, donde as questões institucionais poderiam ser mais trabalhadas. “Nessa conjuntura, propusemos uma concentração de atividades numa única região, politicamente melhor organizada e que havia solicitado nossa intervenção, onde desenvolveríamos supervisões clínicas e institucionais junto às equipes, além de seminários teóricos a propósito de temas relevantes para as mesmas” [4]. Abria-se a possibilidade de intervenções mais diretas que conduziram, também, a explicitar as diferenças entre supervisão programática, supervisão institucional e supervisão clínica.

Entretanto, esta etapa que começou com tantas expectativas, tornou-se bem complexa. Com as mudanças no Governo do Estado (Quércia), na Secretaria de Saúde (Pinotti) e na direção do Hospital da Água Funda, nossa atuação tornou-se limitada. As supervisões eram perpassadas por questões de poder entre grupos políticos ou “panelas”, que afetavam a política de transformação. “Por várias vezes, frente às arbitrariedades político-administrativas, pensamos em interromper o convênio com o Estado, e assumir um lugar de denúncia. Continuamos... E continua também o esforço permanente de estar situado entre nossa identidade de psicanalistas e a preocupação de não psicanalizar as instituições, confundindo ou reduzindo as questões ideológicas e de poder a jogos imaginários intra e inter-subjetivos” [5]. Foi um período muito desgastante e desanimador. A luta pela Reforma Psiquiátrica passava por outros lugares, impulsionada pelo Movimento dos TSM - apoiada por governos com maior compromisso (Bauru, Santos) - e se construía uma proposta programática maior: uma sociedade sem manicômios, que começa a incluir atores sociais novos, como as associações de usuários, familiares e voluntários.

Mas, também nesse período, se cria o primeiro CAPS em São Paulo: PIM para enfermos graves, envolvendo atividades psicoterápicas, ateliês de arte e terapia ocupacional. Inspira-se nos Hospitais-Dia dos franceses, nas Comunidades Terapêuticas, nos Centros de Saúde Mental norte-americanos e nos substitutos dos manicômios da Itália. De novo, Ana Pitta e também Jairo Goldberg, colega muito querido de nosso Departamento, tiveram um papel muito importante em sua fundação e desenvolvimento.

Outros avanços são o projeto de lei Paulo Delgado, para a extinção dos manicômios e sua substituição por recursos não manicomiais, a intervenção no Hospital Anchieta, em Santos e, com a criação dos NAPS, cooperativas, associações, casas de residência.

Em maio de 1989, o Setor de Saúde Mental e Instituições se reorganizou e convidou os membros do Departamento para participar do Setor [6], com o objetivo de integrar novos participantes e se reestruturar, diferenciando setor e convênio. Esta separação garantiria que o setor tivesse uma organização independente das demandas imediatas dos convênios – instáveis pela própria natureza destes, com atrasos de pagamentos, indefinições na renovação dos contratos, etc. – e que desenvolvesse atividades para formação de seus membros, constituindo um espaço para compartilhar diferentes experiências institucionais e discussão de leituras [7]. Junto com alguns colegas, iniciamos um grupo de estudo em torno da psicose, e particularmente da psicose infantil.

Em 1989, Luiza Erundina, candidata do PT, assumiu a prefeitura de São Paulo. No campo da Saúde Mental, estabelece como metas o combate à cultura manicomial, a implantação de um modelo assistencial que tornasse desnecessária a internação psiquiátrica – com a criação de Hospitais-Dia, de Centros de Convivência e Cooperativas de ex-internados, a implantação de atendimento de Saúde Mental nas Unidades Básicas de Saúde e a criação de Unidades de Saúde Mental em hospitais gerais.

Em setembro do mesmo ano, assumimos um pedido proveniente do Hospital-Dia da Vila Prudente e as UBSs da ARS-3. Neste convênio, ficou estabelecido que “a supervisão terá uma abordagem psicanalítica de dinâmica grupal e também com as dimensões institucionais das práticas, compreendendo aspectos teórico-técnicos e visando o desenvolvimento de métodos adequados à situação de trabalho” [8].

Complementarmente, recebemos um pedido de supervisão clínica e institucional para acompanhar a implantação de um HD infantil na Vila Prudente. A intervenção no HD infantil foi uma experiência particularmente interessante. Era uma volta ao trabalho na própria instituição, aproveitando muito da experiência anterior em trabalhos de supervisão clínica e institucional, sendo que o trabalho teórico prévio em torno das psicoses infantis nos havia dado uma base para pensar as questões que devíamos enfrentar. Formamos uma pequena equipe que se complementava muito bem. Fernando Cantalice e eu tínhamos bastante experiência nas instituições públicas e Eliane Berger tinha muito conhecimento sobre clínica com crianças, sobre dispositivos para o tratamento de pacientes graves em Hospital-Dia e sobre as experiências pioneiras na França de Maud Mannoni em Bonneil, na linha do éclatement das instituições e da promoção de instituições não-totais. Organizamos uma dupla intervenção: no plano da equipe assistencial (em que trabalhei junto com Eliane Berger) e no plano do Conselho Técnico Administrativo, do qual quem se ocupou foi Fernando Cantalice Medeiros.

A equipe estava semi-paralisada pela pressão do CTA para aumentar os atendimentos, por questões traumáticas não elaboradas do momento da conversão do equipamento da Divisão de Sanidade Escolar em Hospital-Dia e pela demanda intensa e peculiar vinda das próprias crianças, que começamos a associar com as dificuldades para construir e utilizar recursos e objetos intermediários, tanto na interação corporal como na comunicação verbal. Lembro de uma supervisão em que trabalhamos intensamente esta questão, depois da qual uma das terapeutas teve uma ideia insólita, que era a de tentar conversar por telefone com uma menina que não falava. E funcionou. Quando houve que desenvolver, tempos depois, um instrumental adequado para a relação com o espaço extrainstitucional e criar, por exemplo, estratégias de inclusão para as crianças na escola, ficamos sabendo que a equipe do HD demonstrou um habilidade extraordinária para montar estratégias de contato e intercâmbio com as professoras [9].

Nós estávamos aprendendo muito. Todas estas experiências eram discutidas no Setor e se aprofundavam os estudos sobre Psicoses no Departamento. A visita de Christine Laznik e Bernard Penot estimulou um grande interesse pelos artigos desses psicanalistas amigos, que eram vanguarda no estudo do autismo e dos transtornos graves da adolescência. As conferências de Bernard Penot, publicadas pela Percurso e seu livro Figuras da Recusa foram muito trabalhados.

Entretanto, acontece a eleição de Paulo Maluf, e começamos a entrever que, mais cedo ou mais tarde, a coisa na Prefeitura ia acabar. De fato, se põe fim às supervisões em diversos equipamentos. Mas ainda era um momento de muita mobilização e trabalho com as equipes de saúde dos Hospitais-Dia e de outros equipamentos com o CAPS e os NASF de Santos. Isto nos levou a uma decisão estratégica. Lançar um curso no Sedes que convocasse gente das instituições e que se configurasse como um espaço de resistência possível frente à estagnação e o retrocesso que se perfilava no horizonte.

É assim que no ano seguinte, 1993, o Setor de Saúde Mental e Instituições lança um curso de aperfeiçoamento, de um ano de duração, sobre Psicoses: Concepções teóricas e estratégias institucionais, que teve uma acolhida muito boa e sobre o qual gostaria de falar um pouco. O corpo docente estava constituído por Alexandra Sterian, Eliane Berger, Márcia de Mello Franco, Nayra Cesaro Ganhito e Renata Caiaffa, tendo como professores convidados para alguns temas específicos Maria Beatriz Costa Carvalho (sobre grupos com psicóticos), Jairo Goldberg do CAPS (sobre o olhar para fora das instituições de tratamento) e Nelson Carrozo – da instituição A Casa (o tema dele foi a saída do HD – pontes com o mundo: a república e o acompanhamento terapêutico).

Esse curso foi ministrado ao longo de três anos sucessivos. No último ciclo, no entanto, tornaram-se patentes - através das mudanças do tipo de práticas nos serviços, da diminuição do número de alunos e da redução da motivação - os efeitos das políticas restritivas e de retrocesso a partir da nova administração municipal. Após um primeiro período de violência aguda, tanto para pacientes como para profissionais, correspondente à implantação do PAS, que acompanhamos por um tempo através de reuniões com os trabalhadores - aplicando numa situação traumática atual o que havíamos estudado e transmitido - começava um novo momento de desgaste e decidimos parar.

O curso foi um período importante de ressignificação retroativa das experiências atravessadas nas diversas instituições e um estímulo para novas elaborações. Um dos eixos teóricos que desenvolvemos centrou-se no conceito de recusa, que concebemos como um processo defensivo que se põe em ação quando alguma percepção ameaça socavar as crenças e ilusões que dão suporte ao narcisismo de indivíduos, grupos ou coletivos maiores e que produz efeitos dissociativos favoráveis à produção de sintomas diferentes do sintoma neurótico - como se vê no campo das perversões e da psicose. Enfocamos a recusa desde o ponto de vista do bloqueio do processo de subjetivação, estudando quais episódios e processos intrafamiliares o produziam – e o reproduziam no tempo presente do contexto institucional – investigando também quais dispositivos poderiam ser montados para superar a recusa e iniciar um processo de ressubjetivação. Estudamos as relações dessubjetivantes presentes na instituição psiquiátrica, a evaporação das histórias singulares e a ausência de interlocução, enfatizando a possibilidade de uma recuperação da elaboração psíquica através do trabalho da equipe no Hospital-Dia. Uma compreensão mais ampla das políticas de Saúde Mental vigentes, explicitadas ou não, nos permitiu situar a problemática da psicose em um contexto científico, ético, social e político. Nesse contexto, afirmamos o valor da clínica psicanalítica como dispositivo promotor do processo de subjetivação e sua importância como interlocução, construção de narrativas, possibilidade de elaboração de situações traumáticas. Como dizia J. Kristeva “o psíquico pode ser o lugar em que se elaboram, e portanto se desfazem, tanto o sintoma corporal como a projeção delirante, a psique é nossa proteção, com a condição de que não fiquemos fechados, encerrados, nela, mas que a transfiramos mediante um ato de linguagem para uma sublimação, um ato de pensamento, de interpretação, de transformação relacional. (...) Mas a psicanálise tem dois grandes obstáculos que deve enfrentar: 1) a competição com as neurociências: a pílula ou a palavra e 2) aliado do anterior, o desejo de não saber em suas diversas formas ...” [10] principalmente o tirar da cabeça que caracterizava o recalque como modo patógeno de fugir do conflito, através das diferentes defesas, e a recusa, forma teorizada posteriormente e que se apóia em diversos fetiches, discursos e relações perversas.

Seguimos trabalhando com estes conceitos em outros projetos, que porém fazem parte de uma etapa posterior a tudo isto, fora do marco dos convênios interinstitucionais e das políticas públicas que os inspiraram; por isso, encerro esta crônica por aqui.

BIBLIOGRAFIA

Amarante, P. (Coord.) Loucos pela vida: a trajetória da reforma psiquiátrica no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1998.

Birman, J., Mezan, R., Delorenzo Morais, R. e Tennenbaum, R. Psicanálise e Psicoterapia. Jornada Interna do Departamento de Psicanálise, maio de 1982.

Cytrynowicz, M.M. e Cytrynowicz, R. História do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. Cap. 10: Convênios e projetos externos. São Paulo: Narrativa Um, 2006.

Fuks, M. P. Apresentação. Mesa de Abertura do II Encontro Mundial dos Estados Gerais da Psicanálise (Rio de Janeiro, 2003).

--------------- “Sobre o Convênio Sedes - C.S.M.” em Psicanálise e Instituição, I Encontro de Psicanálise e Instituição (agosto/1986). Setor de Saúde Mental e Instituições. Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae de São Paulo, agosto de 1986.

Collucci,V., Hirchzon, C., Santa Cruz, A. e Vicente, F.: “Apresentação” em Psicanálise e Instituição, I Encontro de Psicanálise e Instituição. Setor de Saúde Mental e Instituições (agosto/1986). Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae de São Paulo, março de 1987.

Curso de Psicanálise. “Plano de Aplicação de Trabalhos e Recursos do Convênio entre a Coordenadoria de Saúde Mental da Secretaria de Saúde do Estado e a Associação Instrutora da juventude Feminina – Mantenedora do Instituto Sedes Sapientiae”. 1985.

Setor de Saúde Mental e Instituições. Psicanálise e Instituição. Trabalhos apresentados no I Encontro de Psicanálise e Instituição. Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae de São Paulo, agosto de 1986.

Docentes do Curso de Psicose: concepções teóricas e estratégias institucionais. “Existimos, a que será que se destina?”, pôster apresentado no Congresso Interno do Departamento de Psicanálise, novembro de 1994.

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[1] O presente artigo foi apresentado ao Departamento de Psicanálise em 23 de agosto de 2012, como conferência de abertura do II Encontro de Psicanálise e Instituição.
[2] Psicanalista. Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.
[3] I Congresso de Trabalhadores de Saúde Mental de São Paulo.
[4] FUKS, Mario; SOUZA, Laurinda; BERGER, Eliane “Psicanálise e Instituição: história e desafio de uma experiência” (entrevista), Percurso, n° 10, 1o sem, 1993, p. 85.
[5] GRUPO DE SUPERVISORES do Setor de Saúde Mental e Instituições. “Sobre um projeto de formação na Rede Pública”, Percurso, n° 2, 1o sem., 1989, p. 60.
[6] “Informe do Setor de Saúde Mental e Instituições”, outubro de 1989.
[7] “Notas Sobre o Convênio com a Secretaria da Saúde”, Boletim, Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, n. 4, março/abril 1991, p. 6.
[8] Edital de Licitação: Supervisão Clínica em Saúde Mental, Convite n.227/91, ARS-3, Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo, Projeto Técnico, setembro 1991.
[9] Ver “Adeus a loucura!” de Odelis Basile et al, em Percurso 16.
[10] Kristeva, “Para que servem os psicanalistas em tempos de angústia ignorada” in As novas doenças da alma. Havia sido apresentado em um colóquio em 1989, A psicanálise: uma questão para o amanhã.




 
 
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