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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    35 Agosto 2015  
 
 
NOTÍCIAS DO DEPARTAMENTO

TESTEMUNHO DE UM ACONTECIMENTO


FATIMA VICENTE[1]



Participei da III Jornada Temática: Corpos, Sexualidade, Diversidade, proposta e organizada pelo grupo do feminino (Grupo de Trabalho e Pesquisa: O feminino e o imaginário cultural contemporâneo) realizada nos dias 19 e 20 de junho de 2015, no Sedes. Diferentemente do que sempre faço nessas ocasiões, desta vez não tomei notas durante as atividades das quais participei e, diferentemente também do que tenho feito com certa regularidade, quando da realização de eventos promovidos por esse coletivo, desta vez não me inscrevi para apresentar um texto meu. Finalmente, também diferentemente das vezes anteriores, não pude ficar até o final do evento, portanto, não participei da discussão da mesa sobre o filme de Miriam Chnaiderman, De gravata e unha vermelha, o que eu muito gostaria de ter feito, uma vez que assisti ao filme, queria muito ouvir os comentadores convidados e, eventualmente, contribuir com a discussão. Mas não me foi possível. Por outro lado, como sempre há uma primeira vez para algumas coisas, coordenei uma das mesas, convite que aceitei com prazer, embora não sem temor pela delicadeza da tarefa e, finalmente, também pela primeira vez, me dispus a escrever para o Boletim um pequeno artigo sobre o evento, o que se materializa neste testemunho.

Foi em uma conversa com Alessandra Sapoznik, poucos dias depois do evento, que algumas ideias centrais deste comentário foram se configurando. Almoçávamos juntas para conversar sobre um possível projeto que, talvez, viéssemos a propor ao Departamento. A conversa corria solta. Estávamos animadas com as possibilidades que ali estavam surgindo e, como tínhamos combinado o almoço para logo depois de uma reunião do Conselho de Direção com os professores dos Cursos do Departamento, estávamos ainda na vibração do encontro recém-acontecido, reunião que nos parecia ter sido muito boa, da qual o encaminhamento resultante fora relativamente inesperado, nos deixando numa auspiciosa expectação. Foi nesse contexto e clima que comentei com ela, a título de analogia possível para o que pretendíamos, a respeito de uma coleção de livros denominada Trans (editada pela Editora 34), pois a coleção me parecia se organizar a partir de um princípio semelhante ao que estávamos pensando para o nosso futuro projeto. Meu comentário a fez evocar o de Wisnik, sobre o filme da Miriam, e dos desdobramentos que ele propôs para esse trans, palavrinha de muitos usos e de muitas possibilidades. Eu já estava escrevendo este texto, mas até então ainda tinha pouca clareza do que pretendia dizer. Ou melhor, pressentia o que precisava ser dito e que eu ainda não alcançava dizer.

A mim parecia que os trabalhos que haviam sido apresentados na jornada transmitiam a vigência de um processo de mudanças no imaginário cultural sobre o feminino, e o faziam por meio das questões que os textos articulavam, e do modo como as desenvolviam e, também, pelo que apontavam de aberturas. Entretanto, a mim parecia que tudo isso não dava conta do que havia sido a realização maior do evento, coisa que, por outro lado, eu apenas intuía e, angustiada, não conseguia formular. Eu temia não conseguir sair dessa indeterminação intuitiva e, devido a isso, não conseguir escrever, como já havia acontecido com o texto que eu já não apresentara no evento. Ficava tentada a atribuir tanto meu medo como as irrealizações que de fato aconteceram a situações de minha vida pessoal, que efetivamente têm modificado minhas relações com coisas, pessoas e que tais, e também a situações coletivas que nos têm, desde – talvez junho de 2013, mas, com certeza, desde outubro de 2014 – nos têm abalado coletivamente e a nossas esperanças. Entretanto, fossem quais fossem os elementos que me sobredeterminavam neste estado de coisas, a resultante era que, de uns tempos para cá, eu vinha (ainda venho) me (des) reconhecendo. Especialmente, me achando perdida sem meus recursos conhecidos, em um estado tal que me vi tendo que abandonar algumas convicções e pensamentos arraigados sobre mim, mesmo certas pequenas identificações, como por exemplo, a que me expressava, por décadas, por meio do verso de Caetano Veloso - “vislumbro certas coisas de onde estou”. Afinal, sempre me fora possível vislumbrar algum futuro, ainda que este estivesse se delineando em um horizonte distante e acreditar nele, mesmo que eu não estivesse vendo nada com clareza, mesmo que eu não estivesse vendo nem mesmo alguma pequena coisa com clareza. Os futuros estavam lá, pois havia uma aposta no horizonte. Sempre considerei que, se isso era possível, assim o era porque esses futuros já estavam lá de uma forma específica, como antecipações de futuros possíveis, futuros a serem construídos, mediante a produção coletiva que nos levassem até eles. Creio que a isso se chama ter ideais já que a possibilidade antecipatória própria ao vislumbrar depende de ter esse algo que sustente a aposta que leva à construção. Entretanto, isso parecia ter se acabado, ou estar se acabando. Parecia que, de alguma forma, a esperança, decididamente deixara de vencer o medo e, nesses tempos, parece não haver mais o que vislumbrar. E, decididamente, essa não é uma questão apenas pessoal.

Entretanto, pelo menos em nossa instituição psicanalítica, está surgindo algo de diferente no ar.

Foi naquela conversa com Alessandra que reconheci que alguma coisa se presentificava, um acontecimento, cuja emergência eu identificava na Jornada, mas que parecia prosseguir em seus desdobramentos no tempo e no espaço. Lanço mão de minha experiência do evento, na tentativa de, por meio disso, chegar a nomear algo do que ali se presentificou.

Participei das mesas Reviravoltas da feminilidade e O que muda e o que permanece que ocorreram, respectivamente, no sábado pela manhã e no princípio da tarde e coordenei uma das mesas que ocorreu na sexta-feira à noite O poder, os discursos do saber e o corpo da mulher. A mesa do sábado pela manhã foi coordenada por Marli Ciríaco Vianna e dela participaram as colegas Helena M. F. M. Albuquerque, Lygia Vampré Humberg e Maria Silvia Bolguese; nela, chamou-me a atenção a disponibilidade das colegas em apresentarem pesquisas em trânsito, como eram os trabalhos de Maria Sílvia Bolguese e de Helena Albuquerque; no caso do de Maria Sílvia, o trabalho intitulado O tempo e os medos. Contribuições psicanalíticas – da juventude ao envelhecimento e velhice aprofunda e diversifica as questões que ela vem trabalhando sobre o envelhecimento. Na ocasião, ela apontou interessantes relações entre a gravidez, como condição específica da mulher, e a sobrecarga ao organismo feminino que essa condição acarreta - relações a serem também consideradas daquelas perspectivas. Em minha apreciação destaco como o mais marcante que suas ideias foram transmitidas, e são estudadas, priorizando uma perspectiva que se apóia no reconhecimento dos sofrimentos biológicos e suas consequências para o sujeito, sem a concomitante redução cientificista e biologizantes do psíquico a um epifenômeno do orgânico. O que me parece raro em muitas abordagens contemporâneas do sofrimento e que pode contribuir para problematizar psicanaliticamente algumas abordagens organicistas redutoras, embora contemporâneas. Da mesma forma e por motivos análogos quanto à singularidade, me chamou a atenção a proposta de pesquisa apresentada por Helena Albuquerque sobre o tema da menopausa, trabalho intitulado O tabu da menopausa, que, diferentemente do habitual, não prioriza as perdas que tal condição impõe à mulher, perspectiva mais frequente na pouca literatura psicanalítica existente sobre o tema, mas leva em conta a oportunidade de mudança de posição subjetiva que tal situação pode representar para cada uma. Não por acaso a mesa foi nomeada como Reviravoltas da Feminilidade! E, para tratar de uma reviravolta das mais comoventes, o artigo de Lygia A feminilidade em questão – quando uma mulher tem o seu bebê internado numa UTI neonatal, que trata da situação de uma mãe, ela própria, para quem o nascimento de sua criança fora dos parâmetros protocolares (no caso, o da prematuridade, por exemplo) resulta em experiência de profundo contato com o desamparo constituinte. Experiência que se desdobrou nela como saída elaborativa singular, da qual a escrita e apresentação daquele texto parecem ter feito parte. Outro ponto, de ousadia, a marcar o modo da produção psicanalítica que estamos fazendo neste Departamento.

Tive gosto em participar das discussões as quais ocorreram num clima muito especial de compartilhamento e, da mesma forma, tive gosto em participar da segunda mesa do sábado para a qual havia me inscrito, a mesa O que muda e o que permanece. Essa mesa foi coordenada por Iso Alberto Ghertman e nela apresentaram trabalhos os colegas Maria Aparecida Kfouri Aidar, com o texto Mulheres e supereu, ainda; Silvia Leonor Alonso e Mario P. Fuks, com o texto Um bonde chamado histeria e, finalmente, Silvia Gonçalves com o texto Socorro, eu não estou sentindo nada. Surpreendi-me com o clima de continuidade de trabalho presente no contexto, o que, me pareceu, se devia, ao menos parcialmente, ao fato de que muitos dos participantes da mesa anterior haviam permanecido na sala, interessados em prosseguir a discussão com os temas da mesa seguinte. Alguns permaneceram como na posição anterior, participando como ouvintes e debatedores, outros, mudando de posição, passaram de participantes para apresentadores de textos. Outros mais, como eu e vários colegas, chegávamos de outras discussões. Ainda assim, a sintonia entre os uns, os outros e nós, os recém-chegados, compareceu nas discussões, desvelando que a continuidade se fazia em outro registro. Em primeiro lugar, o agrupamento daqueles textos possibilitava uma linha forte de permanência e desenvolvimento das questões em torno do bonde do desejo, que a bolsa de Jasmim fetichiza e que as dores do caso trazido por Silvia Gonçalves grita em silêncio mudo, pedindo por uma escuta. Onipresente, o velho supereu comparece no texto de Cida, requerendo ainda, muita feitiçaria metapsicológica para vir a ser decifrado e muitas mudanças da vida social para vir a ser, quem sabe, aposentado e substituído por um outro jeito de se fazer humano e de se fazer vida em comum.

O que me leva à questão proposta pela mesa que coordenei e que se chamou O poder, os discursos do saber e o corpo da mulher. Naquela mesa foram apresentados dois diferentes trabalhos, o texto de Renata Udler Cromberg intitulado Corpo judeu, corpo mulher: Freud, o antissemitismo e o nazismo e o texto Ciência, religião e perversão no caso Roger Abdeldmassih, apresentado por Helena M. F. P. Albuquerque, Danielle M. Breyton e Veronica Mendes de Melo. Os textos eram conclusões de diferentes pesquisas realizadas pelas autoras, no caso de Renata, pesquisa extensa, a partir de documentários, docudramas e literatura disponível sobre a realidade histórica do nazismo e a do antissemitismo “atemporal”, material a partir do qual ela desenvolveu densa reflexão sobre o lugar do feminino, suportado por mulheres e crianças, em várias das situações-limite ali referidas e o repúdio à feminilidade, representado, no caso, por uma virilidade que não pode admitir nem a falha, nem a falta, nem o negativo, sob pena de desmoronar. Por outro lado, a partir de documentos disponíveis em várias mídias, a pesquisa de Helena, Danielle e Veronica punha em destaque as condições em que a articulação de diversos discursos do saber faz desaparecer o sujeito por meio de sua incidência no corpo da mulher. Nessas situações de domínio, evidenciaram-se as modalidades desejantes pelas quais os que estavam a elas submetidas construíram suas saídas.

Acredito que essa problemática, a do poder, é propícia para falar da potência de acontecimento com a qual esta Jornada se revestiu e ganhou corpo. Analiso, a partir da experiência vivida, e do relato por meio do qual tentei transmiti-la, que o poder é um dos elementos trans que foram processados e pelos quais fomos processados nessa Jornada. Penso que, também nós, por meio deste evento, construímos novas saídas para as perspectivas perdidas. E que a Jornada, em seu modo de realização e no trabalho que realizamos nela, respondeu com a potência do desejo de transformar as realidades vigentes em futuros possíveis. Senão vejamos.

Gostei demais e penso que isso se deveu à qualidade teórica dos textos apresentados, à sensibilidade clínica dos autores que os textos evidenciavam, mas também, à diversidade das propostas trazidas. Diversidade presente nas elaborações conclusivas, nas pesquisas em andamento, nas propostas de futuras pesquisas, nas reflexões clínicas, seja estrito senso, seja de clínica ampliada ou da clínica sobre a cultura, a clínica em extensão. Em todos os trabalhos observei a presença destacada do contemporâneo, tanto nas temáticas quanto nos modos de produção dos trabalhos ou da apresentação deles. E, fundamentalmente, em todas as situações observei e compartilhei situações de troca, de possibilidades de pensamento, de possibilidades de retificação de erros cometidos, de abertura ao que está em trânsito. Concluo que, nessa Jornada, descemos da visão que vislumbra do alto os futuros possíveis para o chão, no qual colocamos nossos ouvidos para escutar o que faz sua aparição comovendo a terra.

Acontecimentos são como a chuva e como boas interpretações, são efetivos na hora que ocorrem e permanecem produzindo efeitos por muito tempo depois. Colho aqui alguns efeitos posteriores relativos ao evento promovido pelo grupo do feminino, a III Jornada temática: Corpos, Sexualidade, Diversidade; reverberações do acontecimento, conforme elas se produziram em mim, conforme chegaram até mim e conforme ecoaram em mim, promovendo reflexões e hipóteses. Compartilho com vocês.



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[1]Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise e professora do Curso de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.




 
 
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