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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    37 Abril 2016  
 
 
ESCRITOS

GENEALOGIA DE UM ARTISTA




SÍLVIA NOGUEIRA DE CARVALHO[1]

A discrição é incompatível com uma exposição sobre a psicanálise.

É preciso ser sem escrúpulos, expor-se, arriscar-se, trair-se, comportar-se
como o artista que compra tintas com o dinheiro da casa e queima os
móveis para que o modelo não sinta frio. Sem algumas dessas ações
criminosas, não se pode fazer nada direito
.

Freud, Carta a Pfister,
5 de junho de 1910


Leio A resistência de Julián Fuks [2] e, num vão, apreendo que é um romance de formação [3]. Gênero difícil porquanto nos despeja de cultivada abstinência. Me despeja e me exila, me deixa entre, a mim que na clínica só psicanaliso o artista e na arte só faço gosto em olhar a obra.

Em tal romance de formação, a obra quer dizer do artista. Tudo junto e misturado? Comedimento, generosidade, sabedoria e loucura?

À primeira página, um enigma: “Ao Emi, muito mais que o irmão possível”. Que espécie de laço se ata quando se dedica trabalho a quem seria muito mais que sua função possível? Sobre que impossíveis da transmissão da experiência humana a obra se debruça e versa?

Adentro a leitura e me surpreendo saboreando a concisão que evoca em mim certos tipos de perturbação de Lydia Davis. Sigo um pouco mais e, em franca ficção leitora, reencontro verdes memórias de escritores vários, Kafka principalmente entre eles.

Leitor de Joyce, Julián realiza seu retrato de artista quando jovem ao construir uma narrativa aguda na qual corre os riscos decorrentes de uma espécie de embate entre criação e pulsão de saber, expressa através de apropriações complexas de imagens da vida cotidiana. Tais como aquelas imagens ora cálidas, ora marmorizáveis que compõem toda a vida familiar. Tais como as imagens-artifício [4] fotograficamente construídas por Sofia Borges para estranhar sua família, dessignificando suas reuniões mais habituais e imprimindo “incoerência e falta de rastro” a seus personagens [5].

Desde seu lugar usual à mesa, à frente do irmão mais velho, o artista mirou-se no espelho daqueles olhos claros para interrogar suas próprias origens. Assim compôs Sebastián, o alter ego que estranha os pais, seus ditos e feitos.

Nesta procura do romance familiar se perfila o impossível da reconstrução visual do antes passado, no vão entre duas portas – a porta siderante diante da lei, aberta pelo porteiro portenho que aquiesce: “Adelante, usted pase, haga lo que quiera”; a porta de vidro fechada pelo irmão que o aparta do convívio, na reafirmação da dignidade possível a qualquer solidão. Sebastián estranha os lugares marcados aos quais assim foi lançado, feito meus amigos argentinos estranhariam ladeiras curvas de ruas paulistanas e inóspitos cafés expressos.

Por fim, a luz advém das palavras que ressoam a inscrição do artista na filiação: “Seja como for, vá em frente, você fez o que tinha que fazer...”. A travessia do novo romance de Julián nos permite afinal compreender que estranhar é também entender pelo avesso. Em Fuks, o avesso da psicanálise, sua transferência de existência se chama literatura.

Outubro de 2015.



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[1] Psicanalista. Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. Membro do EBEP – Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos em São Paulo.
[2] São Paulo: Cia das Letras, 2015.
[3] Em crítica literária, o romance de formação expõe o processo de subjetivação de um personagem, da infância e adolescência até a maturidade.
[4] DIONÍSIO, G; MASAGÃO, A; NOGUEIRA DE CARVALHO, S. (GAS). As tais fotografias: origens e destinos da imagem na arte contemporânea. XII Jornada do EBEP: Imagens improváveis, imagens impensáveis – presenças no mundo. Rio de Janeiro, 2013.
[5] BORGES, S. D. Genealogia. Trabalho de conclusão de curso. São Paulo: USP, 2008.





 
 
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