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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    37 Abril 2016  
 
 
EDUCAÇÃO

IMPACTOS E CONSEQUÊNCIAS DA REORGANIZAÇÃO ESCOLAR EM SÃO PAULO


ANNA HELENA ALTENFELDER [1]
CHRISTIANE GOMES [2]
REGINA INÊS VILLAS BOAS ESTIMA [3]


Em outubro de 2015, o governo do Estado de São Paulo anunciou a implementação da reorganização da rede estadual de ensino, o que levaria ao remanejamento de alunos e professores, fechamento de salas e de escolas. A proposta previa a separação entre estudantes dos anos iniciais do ensino fundamental daqueles do ensino médio.

O anúncio da medida causou apreensão e até mesmo indignação na comunidade escolar. Alijados da discussão sem maiores esclarecimentos sobre critérios, genuinamente preocupados em como as mudanças poderiam afetar a organização da vida familiar, alunos e familiares começaram a questionar as decisões da Secretaria de Educação.

É importante destacar que a frágil justificativa técnica apresentada pelo governo do Estado para a reorganização da rede paulista, a de que a mudança iria beneficiar a gestão escolar, leva a crer que a formulação da proposta contou com outras motivações, como redução de custos.

De fato, as medidas de mudança supervalorizam a gestão de sistema e a gestão escolar sem levar em conta as premissas de qualidade expressas no Plano Nacional de Educação, conjunto de metas e estratégias que irão nortear a educação brasileira para os próximos 10 anos e que foi sancionado em junho de 2014. Vale lembrar que, quase dois anos após a sanção do PNE, o Estado de São Paulo ainda não tem o seu Plano Estadual de Educação, que conta com três propostas paradas na Assembleia Legislativa de São Paulo.

Sem voltar atrás no movimento de não considerar pontos de vista, realidades e necessidades da comunidade escolar, a Secretaria não acolheu as ponderações das famílias e alunos e nem buscou o diálogo.

A grande mobilização foi feita pelos estudantes, que promoveram a ocupação de mais de 200 unidades de ensino em todo o Estado.

Os jovens se organizaram de forma horizontal e não hierarquizada, buscaram autonomia e independência em suas pautas, deixando claro o desejo de participar de decisões que envolvem suas vidas e seu futuro, o que significa influir no currículo aplicado em sala de aula, comprovando que a escola precisa se reinventar para dar conta dos anseios e desejos da juventude conectada ao século 21.

Prova disso foram as aulas realizadas durante as ocupações e o cuidado que os jovens tiveram com a estrutura de suas escolas, cuidando do espaço, promovendo reformas e benfeitorias e mais: descobrindo comida e equipamentos – tais como instrumentos musicais e computadores – trancados e escondidos dos alunos.

A mobilização intensa dos estudantes paulistas, que passaram também a ocupar e fechar grandes vias da capital, seguida por uma forte reação da polícia militar, que usou de violência na repressão às mobilizações, pressionou o governo a voltar atrás, já que outros importantes órgãos como o Ministério Público e Defensoria Pública reconheceram como legítimas as ações dos jovens. Diante disso, o governo suspendeu a reorganização, prometendo que o ano de 2016 seria dedicado aos debates sobre o tema com toda a comunidade escolar, incluindo os estudantes e suas famílias.

Porém, o ano letivo de 2016 foi iniciado com a constatação do aumento do número de alunos por sala de aula; diminuição de aulas atribuídas aos professores, prejudicando a composição da sua jornada de trabalho e forçando-os a buscar aulas em outras unidades; redução de profissionais como agentes escolares. Pais e alunos se surpreenderam com a falta de vagas para alunos candidatos à matrícula vindos de outras unidades, turmas fechadas, horários de escolas alterados, estudantes transferidos compulsoriamente. Mais uma vez a secretaria adotou as medidas sem estabelecer qualquer canal de comunicação. Em contrapartida, os estudantes seguem com algumas das estratégias utilizadas no processo de ocupação, como as aulas públicas, debates e encontros realizados no espaço escolar.

O que os jovens nos ensinaram?

Na vida, a cada decisão tomada, uma escolha é feita, o que pressupõe algumas renúncias. Em política pública não é diferente. As escolas reorganizadas podem ter uma forma mais racional de gestão administrativa e de gestão de pessoas apenas se seus gestores conseguirem viabilizar um planejamento articulado a favor dessas premissas, sem perder de vista as outras prioridades.

A experiência aponta que nem sempre a racionalidade administrativa imposta pelo sistema, por si só, potencializa um plano de ação pedagógico articulado em um ambiente criativo que favoreça a experimentação, pesquisa e um currículo vivo para a formação de professores e alunos.

A escola é território de relações complexas e precisa de gestores com ampla visão político pedagógica que, através do diálogo, vão tecer práticas mais legítimas de gestão para alcançar efetividade. Cabe ao gestor escolar uma mediação interpretativa das normas que o sistema impõe, conciliando os diferentes interesses que estão em jogo. Essa prática exige posicionamentos perante o sistema e à comunidade escolar que lidera. Não é tarefa simples.

Com efeito, o fenômeno extrapola a simples ocupação de um espaço, se considerarmos que o espaço carregado de significados compartilhados e expressos nas práticas sociais se transforma em lugar, que por sua vez torna-se território no momento em que valores e dispositivos de poder são explicitados.

Como afirma Lopes “o território é, assim, um espaço mediado pelas representações construídas por um determinado grupo ao estabelecer seu poder frente a outro e que se apropria do espaço como forma de sua expressão e projeção” (Lopes, 2007, p. 80) [4].

Ao ocuparem as escolas, os jovens constituíram território criando novos usos para o espaço interno, estabelecendo novas relações com o espaço externo, trazendo novos atores, estabelecendo formas inéditas de comunicação e sobretudo modificando relações de poder.

Assim foi possível a construção de novos significados compartilhados, novos sentidos pessoais, novas formas de pensar, agir, sentir, compreender a escola. Cabe agora aos educadores uma escuta ativa que possa suscitar perguntas e interrogações capazes de desconstruir visões e concepções sobre a juventude e a melhor forma de educá-los.

Nos últimos anos, o discurso construído e compartilhado por diferentes setores sociais, entre eles professores e gestores escolares e de sistemas educacionais, é que os jovens são desinteressados, desmotivados, pouco empenhados e responsáveis por seus processos de aprendizagem e desenvolvimento. São extremamente individualistas, com pouco senso de coletividade, dando prioridade a satisfazer necessidades físicas e de consumo.

Como afirma Dayrell: “Diante dessas representações e estigmas, o jovem tende a ser visto na perspectiva da falta, da incompletude, da irresponsabilidade, da desconfiança, o que torna ainda mais difícil para a escola perceber quem ele é de fato, o que pensa e é capaz de fazer. A escola tende a não reconhecer o ‘jovem’ existente no ‘aluno’, muito menos compreender a diversidade, seja étnica, de gênero ou de orientação sexual, entre outras expressões, com a qual a condição juvenil se apresenta. (Dayrell, 2007) [5]

Por outro lado, também circula a ideia de que a escola não conversa com as necessidades, realidades e culturas juvenis. Que permanece arraigada a modelos tradicionais, conteúdos anacrônicos que não preparam o jovem para a vida contemporânea. Que está defasada e o único sentido que o jovem vê nela é a obrigação e a obtenção de um diploma. Nesta perspectiva acredita-se que o jovem não gosta da escola e não tem sentimento de pertença em relação a ela.

A ocupação das escolas paulistas abalou seriamente as crenças relacionadas ao potencial de mobilização e transformação da juventude e sua relação com a escola e o papel desta instituição na vida dos alunos.

As meninas e meninos que ocuparam estas escolas em todo o Estado de São Paulo - ao transformarem o formato das aulas, ao cuidarem da conservação dos espaços, ao tomarem as decisões de forma horizontal, ao impedirem que tais escolas fossem fechadas – mostraram-se participativos e envolvidos na gestão da escola e nas instâncias de decisão. Motivados, envolvidos e preocupados com a aprendizagem.

“Quando a reorganização foi anunciada eu me questionei: eu vou entrar na faculdade por causa da escola; eu arrumei empregos por causa da escola, e agora ela vai fechar? Daí a gente começou a nossa mobilização”, contou, em recente entrevista ao site Educação e Participação, Dafne Damasceno Cavalcante, de 17 anos, estudante da Escola Silvio Xavier em São Paulo, que participou das ações dos estudantes (leia entrevista completa: https://educacaoeparticipacao.org.br/acontece/a-gente-resolveu-construir-um-modelo-de-escola-horizontal-democratico-sem-bandeiras-diz-aluna-lider-do-movimento-de-ocupacao-das-escolas-do-estado-de-sao-paulo/).

O que eles querem é uma escola viva que realmente faça diferença em suas vidas. “A gente não quer mais reproduzir conteúdos, mas produzi-los”, disse o estudante Ivysson Luz, estudante da escola Conselheiro Crispiniano, de Guarulhos, durante um evento realizado na Universidade de São Paulo em janeiro deste ano.

A partir deste acontecimento a escola tem de se perguntar se ainda é válido um projeto pedagógico homogeneizador, que desconsidera identidades plurais, preso a tempos e espaços que segregam e compartimentam saberes, que luta por uma disciplina cada vez mais difícil e mais que tudo que não considera os jovens como atores na sua formulação e implementação.

Os jovens deram a toda sociedade uma aula de participação na vida pública. Sem dúvida este processo de exercício da cidadania terá consequências não apenas no ambiente escolar, mas na vida destes jovens na sociedade. E são estes fatores que podem construir uma nação justa e com equidade. Basta a nós, sociedade civil e ao poder público, termos a sensibilidade para aprender esta lição. O fato é que toda a articulação e mobilização promovida por estes jovens mostra que nada será como antes, ou seja, representa um divisor de águas na história da escola pública no país. Diante disso, fica a pergunta: quais serão os efeitos deste movimento para a educação brasileira e, mais especificamente, no ensino médio?

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[1] Pedagoga com formação em psicopedagogia pelo Instituto Sedes Sapientiae. Doutora em Psicologia da Educação pela PUCSP. Foi professora e coordenadora pedagógica do ensino básico. Professora e coordenadora do curso de Psicopedagogia Clínica e Institucional do Instituto Sedes Sapientiae. Atua desde 2002 no Centro de Estudos e Pesquisas em Educação Cultura e Ação Comunitária - CENPEC, como formadora, pesquisadora, autora de material de orientação didática e gerente de projetos. Atualmente é superintendente da organização.
[2] Assessora de Comunicação no Centro de Estudos e Pesquisas em Educação Cultura e Ação Comunitária - CENPEC. Mestre em Comunicação e Cultura pela USP e integrante do conselho editorial da Revista O Menelick 2ºAto, que fala sobre a produção artística e cultural da diáspora africana.
[3]Geógrafa e Pedagoga com Mestrado em Educação pela Faculdade de Educação da USP. Professora e Diretora aposentada da Secretaria Estadual de Educação de SP e da Secretaria Municipal de Educação de SP. Atualmente é coordenadora de projetos do CENPEC.
[4]LOPES, J. J. 2007. Reminiscências na paisagem: vozes, discursos e materialidades na configuração das escolas na produção do espaço brasileiro”. In: J. J. LOPES; S. M. CLARETO (orgs.). Espaço e educação: travessias e atravessamentos. Araraquara: JM Editores, pp.73-98.
[5] Educ. Soc., Campinas, vol. 28, n. 100 - Especial, p. 1105-1128, out. 2007 1125. Disponível em http://www.cedes.unicamp.br/




 
 
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