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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    37 Abril 2016  
 
 
SAÚDE MENTAL

NEM UM PASSO ATRÁS!!


MARCIA RAMOS [1]

 

“ - Diga qual o seu nome para conversarmos melhor.”


“ - Diga você! Não é minha dona?! Me trouxe pra cá!!”

Este é o trecho de uma conversa em uma emergência psiquiátrica, em hospital geral.

Atualmente, quando uma pessoa está em surto psicótico, colocando-se em riscos ou a outrem, e não está aceitando o tratamento, realizamos internações involuntárias através da emergência psiquiátrica em hospital geral, onde essa pessoa ficará por dias suficientes para sair do surto e voltar aos cuidados intensivos compartilhados pelas equipes de seu território. Essas equipes são da UBS - Unidade Básica de Saúde -, do Consultório na Rua, da Estratégia Saúde da Família (ESF), do NASF (que compõe com a equipe ESF) e do CAPS – Centro de Atenção Psicossocial, de sua região. Esse trabalho é integrado com a equipe da emergência psiquiátrica, através de contatos constantes e reuniões semanais. Além da integração intersetorial pela qual contamos com atores de serviços da Assistência Social (equipes do CRAS, CREAS, SEAS), da Educação e do Judiciário (Defensoria Pública, Promotorias e Varas).

Mesmo com todos os cuidados que tomamos, ainda assim essa situação é vivida como violência por aqueles a quem a liberdade é tolhida, como demonstra o diálogo inicial. O que nos impulsiona a refletir constantemente sobre essas ações e quais seriam as alternativas possíveis.

O desejável é avançar na qualidade destes cuidados, tornando as intervenções cada vez mais intensivas quando há sinais de que a retirada temporária do convívio em comunidade seja requerida, para tornar o mais breve possível o retorno, ou mesmo evitar o afastamento.

Em situações de tentativas de suicídio, os colegas dos Hospitais Gerais notificam imediatamente a Vigilância Sanitária, que por sua vez comunica as equipes do território e participa das discussões para os cuidados compartilhados. A pessoa que chegou ao limite de suportar seu sofrimento será acolhida e encaminhada para a melhor forma de cuidados em Saúde Mental para o seu caso. Terá prioridade na agenda de um psicólogo, se for a melhor opção nesse momento, ou irá para um CAPS.

Descrevo como atuamos nas situações consideradas as mais críticas, não sendo o momento para descrever todos os demais níveis da atenção em Saúde Mental realizados no SUS. Momento sim de reafirmar a crescente qualidade de serviços que trabalham com respeito à cidadania, com promoção de protagonismo de seus usuários.

Temos apontado constantemente as necessidades para superar impasses e qualificar a cada dia a rede de atenção psicossocial, que abrange tratamento aos autistas, psicóticos, borderlines, neuróticos graves, deficientes intelectuais com diferentes níveis de dependência, bem como a não menos importante demanda de pessoas que procuram os psicólogos nas UBSs por diversos tipos de sofrimento psíquico que não correspondem a nenhum diagnóstico que conste em uma classificação de doenças.

O Brasil do século XXI tem reconhecimento internacional pelos avanços que alcançou com a Rede de Atenção Psicossocial – RAPS - no SUS. Uma construção de décadas de lutas, trabalho, militância, participação social, produção acadêmica, envolvimento de familiares e usuários do sistema, e a atuação de diversas instituições de muito respeito, dentre elas o Instituto Sedes Sapientiae, particularmente o Departamento de Psicanálise.

A Luta Antimanicomial é vitoriosa em mostrar que internações psiquiátricas de longa duração são formas inaceitáveis de tratamento, que causam danos insuperáveis a quem as vivencia, e que podemos ter uma rede substitutiva de cuidados que não produza a perda dos laços familiares e comunitários.

Os manicômios são locais de perda de identidade, de inúmeros maus tratos e de exageros medicamentosos. Com Foucault, aprendemos como se deu historicamente a apropriação médica sobre a loucura e sua função disciplinar. No Brasil, ao longo de décadas e especialmente no período da ditadura militar, os manicômios tiveram uma finalidade higienista em um sentido ironicamente amplo, com internações de indigentes, loucos, alcoolistas, militantes políticos e homossexuais, ou seja, qualquer desvio da ordem estabelecida. O livro Holocausto Brasileiro, de D. Arbex, é exemplar na documentação dos horrores cometidos no Hospício de Barbacena (MG), cuja revelação nos convoca a superar definitivamente as situações de internações totais, onde sempre se repetem tais abusos.

Nosso esforço e desafio se dirige à retirada de milhares de pessoas que estão vivendo há muitos anos dentro de manicômios. Somente no Estado de São Paulo ainda são quatro mil e oitocentas pessoas. Através do programa De Volta Para Casa poderão ter uma vida digna, seja com familiares que sejam localizados seja em residências terapêuticas. O movimento é de desinstitucionalização.

Temos clareza de que neste país imenso são desiguais os avanços até agora alcançados nas diferentes regiões. Sabemos da necessidade da expansão da Rede, mas não se justifica oferecer a internação porque não se investiu o suficiente para se buscar a ampla oferta de serviços substitutivos. Os dados do Ministério da Saúde comprovam que a queda de leitos e internações psiquiátricas ocorre de modo inversamente proporcional ao crescimento dos cuidados extra-hospitalares.

Sendo assim, é inaceitável a troca da Coordenação Nacional de Saúde Mental ocorrida em dezembro de 2015, de Roberto Tikanori - reconhecido por sua qualidade técnica e sua militância -, por Valencius Wurch Duarte Filho, cujo histórico vai na contra mão de todo o processo da Reforma Psiquiátrica brasileira. Não é demais citar, mesmo com tudo que já foi divulgado, que Valencius foi diretor do manicômio Casa de Saúde Dr. Eiras, em Paracambi (RJ). Em entrevista a um jornal da grande mídia, ele disse que foi diretor de 1993 a 1998. Na década de 1990 a 2000, esse manicômio privado, então o maior da América Latina, primou por ser alvo de denúncias por violações dos Direitos Humanos, tendo finalmente sido fechado judicialmente em 2012.

Estamos acompanhando e fortalecendo potentes movimentos, virtuais e presenciais, contrários a essa troca de perigosas consequências para a política nacional de Saúde Mental. A sala da Coordenação de Saúde Mental do Ministério da Saúde está sob ocupação por movimentos sociais desde a escandalosa troca de coordenador. No âmbito virtual, são infindáveis as publicações com a hashtag #Fora Valencius.

Entidades da sociedade civil dão valorosas demonstrações de apoio, sendo de grande expressão, dentre outras, a nota pública do CONANDA – Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente: http://primeirainfancia.org.br/wp-content/uploads/2016/02/NOTA_PUBLICA_SC_Conanda_MS.pdf.

Por referência a 18 de maio, dia nacional de Luta Antimanicomial desde 1987, ocorrem, desde dezembro último e a cada dia 18, manifestações públicas nos serviços e nas ruas, contrárias à nomeação do novo coordenador. Em meio a performances culturais, as passeatas mostram faixas com palavras de ordem como: “abraçaRAPS”, “loucura não se prende”, “Por uma sociedade sem manicômios”, “Fora Valencius” e brada-se o lema “Nem Um Passo Atrás, Manicômios Nunca Mais”.

Para saber mais:

Nota pública contra a nomeação de Valencius Wurch Duarte Filho para a CGMAD/MS. Associação Brasileira de Saúde Coletiva em 10/12/15: https://www.abrasco.org.br/site/2015/12/nota-publica-cgmadms/

Manifesto em defesa do tratamento humanista e da reforma psiquiátrica. Carta Aberta da Clínica Psicológica do Sedes à sociedade brasileira em 15/12/15: http://sedes.org.br/site/teste8/

ENSP se une a instituições da Saúde Coletiva contra nomeação de ex-diretor de manicômio para política de Saúde Mental. 15/12/15: http://www.ensp.fiocruz.br/portal-ensp/informe/site/materia/detalhe/38776

Nota de apoio ao protesto via ocupação da Coordenação Geral de Saúde Mental do Ministério da Saúde e repúdio à nomeação do Coordenador Nacional de Saúde Mental. Associação Juízes para a Democracia em 18/12/15: http://www.ajd.org.br/documentos_ver.php?idConteudo=194

O movimento da luta antimanicomial e o retorno das multidões. Antonio Lancetti e Aldo Zaiden em 08/01/16 na revista Brasileiros: http://brasileiros.com.br/2016/01/o-movimento-da-luta-antimanicomial-e-o-retorno-das-multidoes/

Repetição e desejo na Saúde Mental. Antonio Lancetti, Maria Rita Kehl e Aldo Zaiden em 18/01/16 na Folha de São Paulo: https://pt.scribd.com/doc/295907036/Repeticao-e-desejo-na-saude-mental-Por-Antonio-Lancetti-Maria-Rita-Kehl-e-Aldo-Zaiden

Nota pública a respeito da nomeação do novo Coordenador da política de Saúde Mental e suas possíveis consequências. Sociedade Civil CONANDA – Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente: http://primeirainfancia.org.br/wp-content/uploads/2016/02/NOTA_PUBLICA_SC_Conanda_MS.pdf

Loucura não se prende. Luciana Chauí-Berlinck na revista Cult: http://revistacult.uol.com.br/home/2016/02/loucura-nao-se-prende/



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[1] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.

 




 
 
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