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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    37 Abril 2016  
 
 
PSICANÁLISE E POLÍTICA

PRODUÇÃO DE DEMOCRACIA – DA POLÍTICA NA PSICANÁLISE À PSICANÁLISE NA POLÍTICA


HEIDI TABACOF [1]

 

Foi com grande entusiasmo que recebi o convite para participar deste ATO, inédito e histórico, em que psicanalistas de diversas tendências e instituições se reúnem para tomar posição na acirrada crise política brasileira, em defesa radical da Democracia, mais uma vez ameaçada.

O que pode fazer o psicanalista num momento como este, além de, como cidadão, tomar seu lugar no debate político coletivo?

A oportunidade de falar com jovens universitários e colegas psicanalistas sobre o tema fez-me evocar o início da minha própria formação, psicóloga com o desejo de devir psicanalista nos idos dos anos 70, em plena ditadura, quando o que se colocava era a necessidade urgente de incluir a dimensão política na psicanálise e articular ao campo psicanalítico a realidade histórica e social de um país submetido ao poder totalitário. Uma espécie de pensamento redundante, tendo em vista a dimensão política intrínseca à psicanálise com sua ética do desejo, libertária e transformadora.

Mas o fato é que naquele momento era preciso anunciar essa evidência para fazer a crítica à ideia de neutralidade da posição do analista defendida pela Internacional Psicanalítica e replicada por sua representante no Brasil, o que à época significava, na prática, adesão ao status quo autoritário, de consequências institucionais nefastas, hoje amplamente conhecidas. Maior exemplo disso é o caso de Amílcar Lobo, médico psicanalista que colaborou com a tortura sob o beneplácito de Leon Cabernite, então presidente da Sociedade de Psicanálise do Rio de Janeiro, denunciado corajosamente, em 1973, por Helena Besserman Vianna e só desligado da Sociedade em 1980.

 

Foi, portanto, com um forte espírito de combate, simultaneamente contra a ditadura civil militar e a favor de uma psicanálise implicada com a vida social e as questões de seu tempo, que sucessivas gerações de psicanalistas puderam estabelecer os parâmetros éticos, teóricos e metodológicos que deram origem a uma psicanálise – talvez brasileira e latinoamericana -, embrenhada na cidade, na rede pública de serviços, nos hospitais, nas escolas, nas instituições jurídicas, nas ruas, em iniciativas de formação, produção e atuação criativas e complexas, que se desdobraram e se desdobram ainda, como aqui e agora, neste Ato político realizado na universidade, convocado por psicanalistas reunidos, também, acredito, pelo compromisso de pôr a trabalhar o saber do inconsciente na luta pela sustentação da legalidade democrática.

Uma conquista árdua e preciosa, e um empenho a perseverar dentro e fora das instituições psicanalíticas pela democratização da própria psicanálise e por sua inserção nos movimentos sociais e na cultura, como condição de preservação da sua potência e longevidade.

Em minha trajetória, como na de muitos colegas da minha geração, dois encontros foram fundamentais nesse sentido: na origem, Wilhelm Reich, apaixonante por ser comunista e psicanalista e ademais protagonizar a memorável façanha de ser expulso tanto do Partido Comunista quanto da Sociedade de Psicanálise; e depois, já à procura de Freud, o encontro com o Instituto Sedes Sapientiae, historicamente engajado na luta pelos direitos humanos e contra a ditadura e, consoante com isso, o Departamento de Psicanálise, do qual hoje faço parte.

Penso que é na via inversa e não excludente do que se trata agora: além de incluir a política na psicanálise, é preciso fazer a inclusão da psicanálise na política, na prática.

Emblema disso é a visão atual da presidente Dilma Rousseff como uma mulher torturada, como uma mulher sendo torturada, que em algumas fotos publicadas pela mídia antidemocrática e golpista tem as feições trabalhadas para parecer desfigurada, quase enlouquecida, num recurso vil e inaceitável de desmoralização, descrédito e desestabilização da legitimidade de sua posição republicana. Ao mesmo tempo, nas publicações mais dignas, em seu rosto emagrecido parecem ressurgir os traços da jovem militante desafiadora e determinada, sentada por força do arbítrio no banco dos réus, naquela que é a imagem mais comovente e eficaz de suas campanhas para a presidência. Nas fotos que ilustram camisetas e outras peças de campanha ficam fora da cena os homens que a interrogam e que, infantilmente, escondem a cara pretendendo escapar à responsabilidade pelos seus atos e ao julgamento da história.

 

Mais difícil é dizer o que eles sentem: estariam amedrontados, envergonhados, culpados? Deveriam, é claro, mas penso que não é o que acontece.

É um equívoco atribuir-lhes sentimentos que seriam efeito da transgressão apenas no caso de uma consciência moral bem constituída, o que não se verifica quando estamos diante de agentes da lei e operadores da justiça, que se atribuem a condição de estarem acima e infensos a elas.

É ao retorno da cena traumática que assistimos agora?

Acredito que sim, mas há, porém, uma inversão dos lugares na cena. Agora é a esquerda que se amedronta, se envergonha e se culpabiliza (não toda, mas uma parte significativa dela) – o que retardou e dificulta a resistência ao golpe que está sendo urdido. Um movimento que precisa ser analisado para que o traumático seja ultrapassado e outro projeto político (re)fundado, construindo novas pautas a partir da crítica e da autocrítica, sem a inibição constrangida do desejo.

Para tanto, é necessário que se inclua o trabalho com a subjetividade, cuja matriz inconsciente edípica: autoritária, fálica e rivalizante, em nada favorece a capacidade de lidar com a diversidade e as perdas narcísicas exigidas pelo exercício da democracia - que, apesar de suas imperfeições, ainda é a melhor das nossas possibilidades.

É tempo de inventar modos de subjetividade democrática em larga escala, porque além de sustentar a democracia, estamos vendo que é preciso produzi-la, através da convocação da fala e da escuta, em verdadeiros debates. Penso que só assim teremos a chance de operar mudanças políticas mais profundas e consistentes.

Um desafio que nos concerne como psicanalistas, como sujeitos e como atores no campo social, cultural e político.

São Paulo, 7/4/2016

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[1] Psicanalista. Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, professora do Curso de Psicanálise.

 




 
 
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