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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    37 Abril 2016  
 
 
PSICANÁLISE E POLÍTICA

A DIGNIDADE DOS CACHORROS


MIRIAM CHNAIDERMAN [1]

 

O dia de filmagem no Cemitério de Perus tinha sido duro. O mormaço queimava e o calor era insuportável. Havíamos entrevistado os peritos forenses que trabalham com as ossadas retiradas da vala clandestina. Escolhi um muro branco, ao lado do monumento que marca o local onde foram encontrados os corpos. O monumento cor de terra com a frase de Luiza Erundina nos acompanhou em nossa árida jornada. Quis filmar em frente ao muro branco para fazer o contraste com os depoimentos que fiz com aqueles que hoje frequentam a Clínica do Testemunho do Sedes Sapientiae, e que tinha como fundo um pano preto. A Clínica do Testemunho é parte do programa de reparação da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça. Os peritos forenses também vêm sendo atendidos em um trabalho que busca dar suporte para o que fazem. São jovens, alguns formados em arqueologia, outros em Ciências Sociais, uma em Biologia, que passam seus dias convivendo com as ossadas. Limpam esqueletos, conversam com os familiares dos desaparecidos políticos, cuidam – como dizem – de dar dignidade à morte de pessoas que foram desaparecidas. Dar dignidade. A corpos maltratados, que foram jogados como se fossem lixo...

Através das falas dos peritos vamos tendo acesso ao que foi acontecendo. Na década de 70 os corpos eram trazidos ao cemitério e fazia-se o registro - ou como desconhecido ou com um nome falso. É possível ver isso nos livros azuis que ficam em prateleiras na parte administrativa do Cemitério. O Cemitério Dom Bosco foi inaugurado por Paulo Salim Maluf e a ideia era instalar um forno crematório para eliminar qualquer vestígio. Foi a companhia inglesa que fabricava o forno que – desconfiando das intenções dos dirigentes políticos e sabendo que o Brasil vivia um período negro - não realizou o projeto nefasto. Um cemitério distante do centro, de difícil acesso, onde vestígios de corpos com marcas da violência da tortura seriam queimados. Foi depois disso que o primeiro forno foi instalado no Cemitério da Vila Alpina, lugar mais central. Naquele momento, meados da década de 70, os corpos haviam sido exumados, retirados das covas individuais. Quando não foi instalado o forno, abriu-se a vala clandestina onde foram jogados os restos mortais de 1.564 pessoas. Eram pessoas mortas pelo Esquadrão da Morte, vítimas de epidemias ocultadas pela censura à imprensa, mortos pelo abandono do Estado e corpos de desaparecidos políticos.
 
Foi em 1990 que o jornalista Caco Barcellos, a partir de informações dadas por Antônio Pires Eustáquio, administrador do Cemitério Dom Bosco, em Perus,  chegou à vala clandestina. Caco investigava a venda de caixões nos cemitérios da capital para uma reportagem na tevê. Paralelamente, para seu importante livro Rota 66 [2], fazia um levantamento sobre mortes envolvendo policiais militares na cidade de São Paulo. Foi em setembro de 1990 que Luiza Erundina criou a Comissão Especial de Investigação das Ossadas de Perus.

Naquele domingo, defronte ao local onde foram descobertas as ossadas, ficamos sabendo de uma dura história. A sensação de estar mexendo em porões impenetráveis desse nosso Brasil.

Abriu-se a vala e as ossadas foram levadas para a Unicamp. Badan Palhares responsabilizou-se pela identificação. Tudo isso está registrado em importante documentário dirigido por João Godoy [3] .

Aí começa uma triste história de abandono. Pela segunda vez, esses corpos são abandonados e desaparecidos. Palhares recebeu o dinheiro do governo para trabalhar na identificação dos corpos e abandonou o trabalho. As ossadas ficaram abandonadas em uma sala da Unicamp, sem qualquer cuidado. Foram misturadas, jogadas prá lá e prá cá. Os peritos relatam a existência de fotos em que os sacos de lixo preto com as ossadas estão embaixo de montanhas de cadeiras amontoadas. Sem qualquer dignidade. Como se fossem nada. Um nada negro. Que cheira mal...

Foi preciso que os familiares se mobilizassem para que as ossadas fossem retiradas da Unicamp. O lugar juridicamente designado para as ossadas seria o Instituto Médico Legal.

Novo protesto do grupo de familiares. Como os corpos poderiam ficar no mesmo lugar que forneceu laudos falsos para as mortes ocorridas nos porões da ditadura?  É quando os corpos são levados para o Cemitério do Araçá, onde ficariam por mais dez anos. Abandonados.

É só em 2014 que é criado o Grupo de Trabalho de Perus, composto pela Secretaria dos Direitos Humanos de Brasília, a Secretaria dos Direitos Humanos de São Paulo e a UNIFESP, onde foi criado um grupo de trabalho com peritos forenses.

Na primeira entrevista que fizemos, a perita chorou ao contar dos casulos de insetos que encontrou nos crânios ao abrir as caixas. São 1.051 caixas. A cada dia, o encontro com ossos, fungos, terra, restos de animais. Aqueles esqueletos foram ganhando nomes, caras, história. A dor sentida quando tem cabelo, resto de uma roupa. Não são mais ossadas. São pessoas desaparecidas com uma história. Com uma família. São 42 desaparecidos políticos. Os outros corpos são também restos de uma dura história brasileira.

No depoimento de um perito a afirmação de que o termo “indigente” não deveria nem existir. São pessoas, como todos nós, que vivem de modo precário. Pessoas. O fotógrafo contratado para registrar todo esse processo no Laboratório de Antropologia Forense relata estar comovido de participar de um momento tão solene, onde pessoas abandonadas são resgatadas. Todos os peritos se despedem de seus companheiros de trabalho quando encerram o dia: “Amanhã voltamos...”. Despedem-se daqueles seres humanos.

O olhar sobre o mundo foi transformado, em todos eles. Um dos peritos conta que, quando esbarra na rua com um pé de meia no meio da sarjeta, fica exasperado: o que terá acontecido à pessoa que calçava essa meia? Outra perita conta de sua angústia sempre que passa por um homem de rua. É preciso cuidar, é preciso aconchegar.

Em todos os peritos, a fala é de orgulho por devolver dignidade a pessoas abandonadas.

Na saída do cemitério, em uma avenida de periferia, vi dois cachorros atropelados, cercados pelos companheiros de matilha. Formavam uma roda, e o maior, dignamente, velava os mortos com os outros. Ritual fúnebre, silencioso, em meio à avenida barulhenta. Desejei que alguém pudesse parar o carro e dar um enterro digno àqueles corpos. Parece que esperavam por isso.

Para saber mais:

Túmulos possíveis, Miriam Chnaiderman. Ilustríssima, 10 de janeiro de 2016: http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2016/01/1727365-tumulos-possiveis.shtml

O oco da fala, Miriam Chnaiderman (Brasil, 17’, digital, colorido, 2016). É tudo verdade 2016 _ 21o Festival internacional de documentários. Competição brasileira: Curtas metragens:
https://www.youtube.com/watch?v=TKh9ls3LAf0
 

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[1] Miriam Chnaiderman é uma psicanalista que faz cinema, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.
[2] http://baixar-download.jegueajato.com/Caco%20Barcellos/Rota%2066%20-%20%20A%20Historia%20Da%20Policia%20Qu%20(324)/Rota%2066%20-%20%20A%20Historia%20Da%20Polici%20-%20Caco%20Barcellos.pdf
[3] Vala comum. João Godoy, 1994. https://www.youtube.com/watch?v=662aQ6k5YRY




 
 
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