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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    37 Abril 2016  
 
 
PSICANÁLISE E POLÍTICA

CLÍNICA DO TESTEMUNHO DO INSTITUTO PROJETOS TERAPÊUTICOS


CRISTINA BARCZINSKI [1]
MARIA MARTA AZZOLINI
[2]

 

Por quê? Por que o sofrimento de cada dia se traduz, constantemente, em
nossos sonhos, na cena sempre repetida da narração que os outros não
escutam?

É isto um homem?
, Primo Levi  [3]


No dia 5 de dezembro, no Memorial da Resistência, foi organizado o evento de encerramento da participação do Instituto Projetos Terapêuticos no Projeto  Clínicas do Testemunho. Este trabalho iniciou-se a partir da Comissão de Anistia, instalada pelo Ministério da Justiça em 2001, ao selecionar projetos da sociedade civil que pudessem implantar núcleos de apoio e atenção psicológica a vítimas da violência de Estado desde 1946. A ideia do projeto foi a de alcançar uma reparação plena - não mais apenas financeira e moral -, o que se deu de três formas: o eixo voltado para trabalho clínico em grupo, transgeracional, levando em conta tanto o âmbito privado, fantasmático de cada sujeito, quando o terreno coletivo; outro eixo voltado para a capacitação de profissionais da área da Saúde Mental que lidam com uma população atingida até hoje pela violência de Estado e finalmente o eixo de pesquisa que, baseado na experiência clínica, produzisse  conhecimento sobre as consequências psíquicas e sociais da violência de Estado. O atendimento clínico se concretizou através da intervenção junto àqueles (familiares, descendentes) direta e indiretamente afetados pela violência sofrida, seja na forma de tortura e/ou de exílio, seja na perda por desaparecimento de familiares que lutaram contra o regime ditatorial. Seguindo a proposta do  eixo clínico, foram também organizadas Conversas Clínicas Públicas, dispositivo que ocorre em um espaço público (auditório, teatro), tendo como disparador um filme, peça, entrevista ou outro evento cultural que se refira a  acontecidos na ditadura civil-militar.

 

Na ocasião foi exibido um documentário sobre o trabalho realizado pela equipe ao longo deste período – trabalho este supervisionado pela psicanalista Caterina  Koltai -, assim como foi distribuído o livro Travessia do silêncio, testemunho e reparação, que reúne contribuições de membros do grupo relatando o trabalho desenvolvido, assim como artigos escritos por outros autores em torno do mesmo tema [4].

 

O início da cerimonia se deu com a encenação de um trecho da peça Antígona de Anouilh, baseada na obra de Sófocles. Dois atores representavam Creonte, o cunhado de Édipo e rei de Tebas, e Antígona, filha de Édipo e de Jocasta, que acabara de tentar enterrar seu irmão, Polinice, morto numa briga com seu irmão, Etéocles. Como o primeiro era acusado de subversão, seu tio determinou que este sobrinho não tivesse direito a sepultura e que seu corpo fosse entregue aos abutres, para sua alma vagar sem descanso. Embora acusada de desobediência e, por causa disto, em vias de ser condenada à morte, Antígona resiste ao convite ao arrependimento, afirmando que está ali para dizer não. Tendo a arte como elemento disparador, levantou-se a questão da arbitrariedade e do sofrimento imposto aos familiares de pessoas desaparecidas vítimas da violência de Estado, pelo não reconhecimento da morte, impedindo que o luto por esta perda seja dignamente vivido e elaborado [5].

 

No dia deste encontro, numa tarde de sábado, apesar do tema sinistro, o clima era fraterno, vários colegas presentes celebravam com o grupo o final de uma etapa importante da chamada justiça de transição [6]. A mesa  era composta por todos os membros da equipe Clínica do Testemunho do Projetos Terapêuticos - Cristina Herrera, Issa Mercadante, Maria Marta Azzolini, Maria Beatriz Vannuchi, Moisés  da Silva Jr., Pedro Antunes e Rodrigo Blum - além de Carla Cosmo, coordenadora de Reparação Psíquica e Redes da Comissão da Anistia, da psicanalista Maria Rita Kehl, ex-integrante da Comissão da Verdade e do psicanalista argentino Osvaldo Saidon, membro da equipe clínico-jurídica  da Grupo Tortura Nunca Mais.

 

Moisés Rodrigues da Silva Jr., um dos coordenadores do projeto, mencionou a enorme dificuldade da primeira fase do projeto, quando a proposta de trabalho ainda era desconhecida da sociedade como um todo e do público específico que dele poderia se beneficiar. Ao longo do processo, ficou evidente a importância da conquista do reconhecimento do sofrimento causado pelo regime ditatorial. Algumas das pessoas presentes ou familiares destas admitiram que, uma vez libertadas, ao longo destas décadas, pouco falaram em família sobre a violência sofrida. Neste contexto de silenciamento, faz-se essencial o papel da formação de grupos como “comunidades de resistência à morte, como fazimento da vivacidade da vida”. Para responder aos abusos cometidos, tem enorme importância simbólica que o próprio Estado proponha uma política de reparação, até mesmo por que a violência de Estado persiste contra determinadas populações e esta violência precisa ser combatida no presente [7].

 

A fala de Issa Mercadante, também coordenador deste projeto, ressaltou o papel fundamental do companheirismo em dois momentos históricos diversos: presente não só nos relatos daqueles prisioneiros que compartilharam de uma mesma cela e eram cuidados pelos colegas depois da tortura, como também através do suporte que os membros da equipe do projeto puderam oferecer uns aos outros para a sustentação do trabalho clínico em meio ao horror das narrativas [8]. Ficou claro como em quase todos os discursos, entre várias formas de tortura, o isolamento é o que perpetua o trauma ao longo dos anos. A Clínica do Testemunho inaugura um espaço protegido onde o discurso volta a circular, construindo uma rede transferencial propiciadora da elaboração psíquica de muitas questões que não seriam sequer formuladas, num malabarismo complexo entre expor as história de violência e preservar a rememoração da obscenidade inerente à prática da tortura. A questão intergeracional também apareceu com muita força no processo a partir do qual também familiares de vítimas da violência puderam compartilhar histórias dolorosas vividas. Este trabalho, que nomeia o inominável, reinaugura a possibilidade de produzir conhecimento a partir de uma dor silenciada.

 

Presente ao encontro, Maria Rita Kehl comentou sobre a importância de se trabalhar estas questões de forma grupal. Acredita que a violência vivida no privado deva ser trazida a público, este é um gesto político. Não se cura na análise a indignação contra a injustiça, ela precisa ser denunciada. Pois ela acredita que um dos efeitos da anistia, que não diferenciava vítimas de algozes, foi justamente a banalização e o silenciamento a respeito da violência de Estado daquele período. No entanto, mesmo num estado democrático, a polícia continua militarizada e atualmente mata mais no Brasil do que na época da ditadura e, o que é ainda pior, as atrocidades cometidas por ela continuam a não despertar a indignação necessária, numa sociedade para a qual “bandido bom é bandido morto”. A psicanalista reconheceu que foi muito restrita a extensão do que pôde se descobrir e comprovar na Comissão da Verdade, simplesmente por falta de colaboração dos militares com as investigações necessárias para a reconstituição dos crimes praticados pelo Estado. Enxerga a Clínica do Testemunho como um espaço de solidariedade, onde se busca trabalhar, a partir de um referencial psicanalítico, com o sentimento de vergonha e culpa vivido pelas vítimas desta violência.

 

Osvaldo Saidon, psicanalista argentino que, exilado, trabalhou vários anos  no Rio de Janeiro com vítimas da tortura, enxerga na atualidade uma ameaça à política dos Direitos Humanos. Acentua a importância do grupalismo e dos conceitos de traumático e de comunidade de destino para pensar a construção de um grupo identitário baseado no compartilhamento de experiências. Comentando o vídeo exibido na ocasião, em que os membros do projeto relatam o impacto deste trabalho e da escuta destas narrativas sobre o psiquismo de cada um, Saidon afirma que este trabalho o incita a buscar não só a verdade, mas também a justiça.

 

Várias pessoas, entre anistiados políticos e seus familiares, estavam presentes e deram seu depoimento sobre a participação na Clínica do Testemunho. Foram unânimes em reconhecer os efeitos - sobre si mesmos e sobre suas famílias - do fato de terem acesso a uma escuta atenta e a um espaço de acolhimentos para suas histórias. Ressaltaram a importância de estender este projeto para as vítimas atuais da violência de Estado, que normalmente integram as camadas mais desfavorecidas da população. A proposta compartilhada é aquela que visa resgatar a história passada para intervir sobre o presente e construir futuro, recuperando narrativas e abrindo a possibilidade da construção de laços - para além do horror.

 

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[1] Psicanalista, aspirante a membro do Departamento de Psicanálise, integrante do grupo de trabalho Sexta Clínica e da equipe editorial deste Boletim.
[2] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise, professora do curso Conflito e Sintoma e integrante da equipe clínica da Clínica do Testemunho do Instituto Projetos Terapêuticos.
[3[ Primo Levi, escritor italiano, foi preso durante a 2a Guerra no campo de extermínio de Auschwitz, na Polônia e escreveu alguns livros a respeito desta experiência.
[4] O livro e o vídeo estarão em breve disponíveis para consulta na Biblioteca do Instituto Sedes Sapientiae.  
[5] Nas palavras de Cristina Herrera, em artigo presente no livro produzido pela equipe da Clínica do Testemunho do Instituto Projetos Terapêuticos: Como enterrar os mortos sem a presença dos corpos, ou dos vestígios materiais e imateriais de uma vida – as fotos, os objetos, as lembranças, as palavras, as imagens? Como prosseguir sem a possibilidade de fazer rituais de elaboração de um luto por falta de narrativas familiares e sociais para concluir uma história? “Enredos na Transmissão: a construção do testemunho entre as gerações na Clinica do Testemunho?” in Travessia do silêncio, testemunho e reparação, p. 91.  
[6] A justiça de transição é definida como o conjunto de abordagens, mecanismos (judiciais e não judiciais) e estratégias para enfrentar o legado de violência em massa do passado, para atribuir responsabilidades, para exigir a efetividade do direito à memória e à verdade, para fortalecer as instituições com valores democráticos e garantir a não repetição das atrocidades. Fonte: Justiça de transição, de Ines Prado Soares in http://escola.mpu.mp.br/dicionario/tiki-index.php?page=Justi%C3%A7a+de+transi%C3%A7%C3%A3o.  
[7] Recentemente a ONU apresentou à sociedade brasileira um relatório no qual denuncia a violência policial brasileira, tanto no momento da detenção quanto nos presídios. A respeito, consulte  o link http://g1.globo.com/politica/noticia/2016/03/relator-da-onu-denuncia-situacao-cruel-em-prisoes-do-brasil.html.
[8] Afirma Pedro Antunes a respeito: É uma clínica onde se opera em um limiar muito sensível, é um iminente estado de comoção. Nesses momentos foi fundamental a dinâmica de confiança e de sintonia existente ente os membros da coordenação, que podia fazer circular com desenvoltura presenças e posições. “Testemunho em grupo: gerações juntas na elaboração do trauma” in Travessia do silêncio, testemunho e reparação, p. 55.




 
 
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