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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    38 Junho 2016  
 
 
NOTÍCIAS DO SEDES

CRISE POLÍTICA, DEFESA DA DEMOCRACIA: ENCONTROS NO SEDES


CRISTINA BARCZINSKI
MARIA CAROLINA ACCIOLY
[1]

 

 

Durante a tarde, a convidada Maria Victoria Benevides não conseguiu comparecer e sugeriu um amigo e colega para vir conduzir esta conversa. Assim Dodora nos apresentou Fabio Comparato, advogado, escritor e jurista brasileiro, formado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo; doutor em Direito pela Universidade de Paris e doutor Honoris Causa da Universidade de Coimbra. Um defensor incansável dos Direitos Humanos que, entre outros prêmios, recebeu a medalha Chico Mendes e em 2009, o título de Professor Emérito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. É ainda o fundador da Escola de Governo e membro da Comissão Justiça e Paz. Foi advogado da Inês Etienne Romeu, sequestrada na Casa da Morte em Petrópolis e da família Telles, contra o coronel Ustra. Foi advogado da OAB em 2010 na ação para rever a Lei de Anistia, já que a tortura é um crime contra a humanidade. Diante da negativa do STF, insistiu num embargo, já que dos 434 mortos e desaparecidos apenas 10 cadáveres foram encontrados. Ainda nada foi conseguido. Ingressou ações contra o oligopólio da mídia em 2011, apoiado na Constituição de 88, conhecida como Constituição Cidadã, que proíbe o monopólio ou oligopólio da mídia no país, ação pela qual recebeu parecer favorável da AGU e compareceu diante da Ministra Rosa Weber em 2013, mas o tópico ainda não foi colocado em julgamento... Um exemplo de persistência e luta.      

 

Começou sua fala questionando o significado de democracia e sua relação com o impeachment. Contextualiza a construção da sociedade política dizendo que toda sociedade tem um poder, que funciona como espinha dorsal da sociedade. Um poder supremo e soberano. Na monarquia se tratava de um único soberano poderoso, cercado pela aristocracia, ou seja, uma minoria de nobres. O poder centralizado se mantém nas oligarquias - poucos no poder. Quando surge a democracia na Grécia, surge o significado: o poder do povo. Em uma democracia o poder soberano é o povo, a maioria. A população teria o poder soberano de tomar decisões de interesse nacional. Assim como a palavra república fala do público, do que pertence a todo o povo. Tudo isso para afirmar que o povo brasileiro não é soberano. Nunca vivemos numa democracia de fato. A oligarquia e o poder concentrado na mão de poucos sempre se manteve presente em nossa história. Desde a constituição de 88 houveram 10 emendas e nenhuma foi debatida com a população.

 

Fabio chama a ditadura brasileira de Ditadura civil-empresarial-militar. Ele chama o empresariado de bastidores do teatro político. Desde os séculos XVI-XVIII os senhores de engenho já participavam de esquemas de propinas e troca de favores, nos sistemas de casamentos arranjados e compadrio; desde sempre no Brasil os empresários e os agentes estatais estiveram unidos. Aqui se mantém uma oligarquia disfarçada de democracia. Nos últimos anos os grandes empresários da indústria não ganharam tanto dinheiro quanto os banqueiros (os quais continuam a enriquecer durante a crise) e se viraram contra o governo. O capitalismo financeiro ultrapassou o industrial, e o poder segue na mão de poucos.

 

Fabio reconhece que temos um sistema representativo e que o Presidente da República é um representante democrático pois é escolhido por todos os brasileiros. Diferentemente dos deputados federais, uma vez que cada estado tem seu próprio colégio eleitoral. Entretanto apenas o Congresso Nacional tem o poder de convocar plebiscitos e referendos. Dessa forma, o impeachment não é um dispositivo democrático porque não é o poder soberano do povo que decide. Um sistema mais democrático para ele é o recall americano - referendo revocatório que não pode ser utilizado para presidente, mas sim para governadores - no qual o povo elege e o povo pode destituir.

 

Para introduzir a democracia é preciso agir em dois campos: nos poderes e na mentalidade coletiva. Agir nos poderes seria a atuação junto aos órgãos que representam os poderes, por exemplo lutar por um projeto de lei que regulamente o plebiscito e os referendos como decisão popular. Segundo Fabio, a mentalidade coletiva do povo brasileiro é submissa à classe dominante e portanto devemos combater a submissão do povo, trabalhar para que a população entenda que o que o povo recebe não são favores dos ricos e sim direitos fundamentais, como está na Declaração de Direitos Humanos de 1948, todos livres e iguais em dignidade e direitos. Para isso devemos usar os meios possíveis, a internet e redes sociais, mas também cursos de educação política, para que o povo se organize e se politize. Metade da população brasileira ainda é pobre, pertence às classes C e D (53%), enquanto a classe A corresponde a 3,6%. E a grande classe média vive com medo e dominada pela mídia, um oligopólio de 6 famílias ricas. O medo da classe média refere-se à pobreza, teme ficar pobre e teme que os pobres cheguem à classe média.

 

Ainda sobre o impeachment da presidente Dilma, Comparato disse que a rigor não se trata de golpe, mas chamamos golpe por pelo menos dois motivos: porque o crime de responsabilidade pelo qual ela está respondendo foi cometido por outros presidentes e governantes, e porque houve apoio dos EUA neste processo. Até 1985 houve uma profusão de golpes militares na América Latina, todos apoiados pelos EUA. De lá para cá, 12 casos de impeachment, mostrando que esta figura jurídico-política deixou de ser levada a sério, e passou a servir para castigar um inimigo no jogo político. Por isso dizemos golpe.

 

À noite, depois de uma tempestade assustadora, que ilustrava à perfeição o momento sinistro em que vivemos, o convidado foi Antonio Carlos Malheiros, desembargador, professor de Direito da PUC/SP, coordenador da Infância e da Juventude do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, membro da Comissão da Verdade e voluntário da Associação Viva e Deixe Viver. Ele contou que sua experiência com a ditadura começou na década de 60, quando, aluno da Faculdade de Direito da USP, teve de retirar e esconder um colega jurado de morte pelo CCC (Comando de Caça aos Comunistas). Na época procurou seu professor Fábio Comparato, a quem confessou estar com medo, ouvindo dele a resposta: "Que bom que você está com medo, isto é uma proteção. Mas jamais compactue com o medo!".

 

Ainda no Ensino Médio, quando frequentava o Colégio São Luis, foi introduzido à experiência da dor, pobreza e morte. Orientado por seu professor de Geografia Fauzi Saad, visitou pela primeira vez uma favela e conheceu famílias que viviam em condições degradantes, nas quais fome, abuso e doença imperavam. Desde então passou a se dedicar ao trabalho com crianças em situação de risco social e com população de rua.

 

Malheiros enxerga no momento atual a volta de uma direita ainda mais radical do que aquela que apoiou Castello Branco. Qualifica o lema Ordem e Progresso como uma proposta considerada reacionária já na época da proclamação da República, que ele entende como resultado de um golpe, não do clamor popular, que certamente teria escolhido D. Pedro II.  Os senhores de terra teriam urdido este golpe como vingança contra a abolição da escravatura.

 

Em relação ao governo interino, se espanta em constatar que Temer, que foi seu colega na PUC, formou um ministério só de homens brancos, vários deles investigados pela Lava Jato. Critica a fusão inicial dos ministérios da Educação e da Cultura e o fato desta área ter sido entregue ao DEM, partido que sempre foi contra as ações afirmativas, que Malheiros entende como "remédios enquanto o país não se transforma". Mostra-se muito pessimista quanto à possibilidade de uma verdadeira conciliação nacional em relação ao período ditatorial, pois o trabalho da Comissão da Verdade, da qual fez parte, não resultou na prisão de nenhum dos acusados.

 

Não vê nenhuma possiblidade de Dilma voltar à presidência. Embora não acredite que ela tenha cometido um crime, acha que agiu com "falta de prudência". Advoga a ideia de que a oposição deva voltar para a democracia direta, que funciona à base de referendos, construir núcleos de politização nas periferias. Vê com interesse a notícia de que Luiza Erundina está buscando formar um novo partido. 

 

Surgiram algumas questões do público, como quando Marcia Porto Ferreira perguntou ao convidado como entende o papel do judiciário. Malheiros vê o poder judiciário como fechado, conservador, embora credite o Supremo como "uma caixa de surpresas". Ele mesmo faz parte de um grupo chamado Juízes pela Democracia, mas este grupo está sempre alijado das grandes decisões.

 

Quando perguntado se acredita na invenção de outro sistema político, afirma que não podemos esmorecer, mas não há nada a ser feito sem uma coligação política que o sustente. Defende a ideia de que deveríamos nos aproximar do modelo americano de recall político, no qual só quem vota pode tirar um político do poder. Afirma também que as eleições municipais devem ser acompanhadas de perto, com a busca de candidatos que tragam ideias que favoreçam as comunidades. Mencionou algumas novas formas de militância, como a formação de rodas de conversa. Acredita que o PT ficou paralisado e não soube aproveitar a mobilização que houve em 2013, enquanto a direita, sim, esta soube se organizar.

 

Respondendo à questão de se acreditava que o fato da presidente ser mulher tenha contribuído para a derrocada do governo Dilma, Malheiros afirma que sim, o preconceito é arraigado, mas também enxerga uma falta de habilidade política por parte dela. Por outro lado, acredita que Dilma seja "absolutamente honesta", comove-se com a dor da injustiça e não acredita que seja acusada criminalmente. De uma forma geral, prevê poucos avanços e muitos retrocessos até 2018. Neste ponto, do público surgiu a observação de que a discussão estava girando em torno do poder executivo, quando o mais urgente seria trabalhar para que tenhamos um parlamento mais decente, senão só nos restará a repetição. A esquerda precisa se organizar, pois as forças conservadoras têm uma organização consistente com objetivos muito claros: eliminar os direitos conquistados. Num momento em que o próprio Ministro da Justiça afirma que não há direito absoluto, tudo é possível.

 

Houve por parte do público presente um movimento que indicava o desconforto com uma perspectiva um tanto melancólica a respeito do momento atual. Falou-se na importância de tornar público internacionalmente o processo por que passa o país, tornar o impeachment vergonhoso internacionalmente. Ao ser perguntado se considerava golpe, Malheiros acredita que não; no entanto, mesmo que o impeachment seja previsto pela constituição de 1988, isto não quer dizer que este dispositivo seja democrático. Preconiza que só o povo, que elegeu a presidente, deveria ter soberania para retirá-la do poder. Na verdade, acha que não havia mais saída, pois o governo de Dilma estava literalmente paralisado, sem poder mais governar.

 

Mario Fuks observou a importância de se fazer um trabalho de análise desta situação e apoiar novas formas de mobilização. As mobilizações de junho de 2013 marcaram um momento fértil, atravessado por contradições importantes, mas não existia ainda uma polarização massiva e selada para a direita. Porém não houve então uma análise e intervenção nesse sentido por parte do governo e do partido que o sustentava.  Atualmente vários movimentos vêm se organizando, como os coletivos feministas, as organizações de transgêneros e sobretudo os secundaristas, que trazem uma das mobilizações mais interessantes dos últimos tempos. São movimentos protagonistas, vitais, de jovens que ocupam o espaço urbano e é preciso pensar em como usar esta energia para fortalecer a defesa de democracia. Cristina Ocariz mencionou a organização de grupos de reflexão e o trabalho da Clínica do Testemunho como um novo trabalho de militância, compartilhando histórias e experiências vividas sob o período ditatorial, relatos estes que, de outra forma, ficariam ocultos.

 

Ao final, Dodora comentou que não há indignação suficiente contra o impeachment, afinal 54 milhões de votos não podem ser desprezados, isto é um desrespeito às pessoas que morreram pela democracia. Segundo ela, temos que nos organizar já, não podemos deixar cair nos ombros da presidente o peso da injustiça, temos que nós também nos sentirmos injustiçados. Comentou que vários movimentos importantes começaram com pequenos grupos, por isso acredita que encontros como aquele, unindo professores, alunos e funcionários do Sedes, são fundamentais. Há um trabalho de conscientização política extremamente necessário neste momento para que possamos construir um país verdadeiramente democrático.

 

A equipe do Boletim Online parabeniza o Instituto Sedes pela importante iniciativa e se junta a Antonio Malheiros, invocando João Ubaldo: Viva o povo brasileiro! 

 

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[1] Psicanalistas. Aspirantes a membro do Departamento de Psicanálise e integrantes da equipe editorial deste Boletim.




 
 
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