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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    38 Junho 2016  
 
 
NOTÍCIAS DO SEDES

PROJETO CUIDE-SE: UMA PRÁTICA DE CLÍNICA AMPLIADA


CRISTIANE MESQUITA[1] E DÉBORAH DE PAULA SOUZA[2]

 

Colocar a invenção psicanalítica sob a égide de um
paradigma estético não significa de forma alguma
desvalorizá-la. A cura não é obra de arte, mas
deve proceder do mesmo tipo de criatividade.

(Félix Guattari 1992, p. 200-201).


Munidas de diversos materiais que incluem um acervo de roupas, estojos de maquiagem e uma seleção de obras de arte contemporânea relacionadas ao corpo e à moda, uma dupla de terapeutas coordena, na Clínica Psicológica do Instituto Sedes, o Projeto Cuide-se [o cuidado de si: atividades sobre você, seu corpo, sua roupa e sua imagem].

Ancorado na ideia dos territórios existenciais dos filósofos Gilles Deleuze e Félix Guattari e no conceito de cuidado de si de Michel Foucault (1985), o Projeto foi criado pela psicóloga e professora universitária Cristiane Mesquita[3] e acolhido pela Clínica do Sedes em 2014, sendo dirigido a pacientes que já estão em tratamento. O dispositivo prevê uma série de oito encontros em grupos de 4 a 8 pessoas, misturando adultos e jovens a partir de 14 anos, sob coordenação da própria autora e da psicanalista Déborah de Paula Souza, aspirante a membro do Departamento de Psicanálise do Sedes e anteriormente terapeuta voluntária nessa instituição.

Não é a primeira vez em que elas atuam juntas com a temática da aparência. Nos anos 1990, fizeram matérias especiais na revista Marie Claire, onde Déborah foi editora de moda e comportamento. Depois disso, Cristiane dirigiu o documentário Jardelina da Silva: eu mesma, sobre uma mulher que passa 15 anos livre de medicação e internação psiquiátrica por realizar rituais que incluem costurar, vestir, desfilar e se fotografar, realizado a partir de uma reportagem da jornalista. Para ambas – mas para cada uma de um modo diferente - corpo e aparência são objetos de fantasia e de (des)potencialização da existência, sujeitos às instabilidades, à invenção e à análise.

Acolhido pela Clínica do Sedes, o Projeto Cuide-se instaurou-se sob a perspectiva da Clínica Ampliada, tal como definida pela PNH (Política Nacional de Humanização, que norteia as práticas do SUS - Sistema Único de Saúde), especialmente no que se refere à expansão dos recursos de intervenção clínica e à elaboração de um projeto terapêutico singular como modo de produção de saúde e autonomia de sujeitos e/ou comunidades.

O propósito do Cuide-se é provocar reflexões e catalisar práticas expressivas, a fim de que os participantes possam desenvolver o potencial criativo e ativo sobre si mesmos, pautado por ações ligadas ao corpo e à aparência. A premissa é a de que a constituição e manutenção da aparência corporal funcionam como vetores de interação entre os modos de se ver e as maneiras de perceber o olhar do outro; entre instâncias individuais e coletivas; e entre as possibilidades de composição da aparência como potência de subjetivação e não como lugar de submissão.

Nesse contexto, a diversidade de corpos e composições de aparência envolvem diferentes graus de potencialização ou despotencialização de forças vitais, de modo a suscitar níveis diversos de prazer, sofrimento e/ou sintomas. Além disso, as mudanças no corpo ou qualquer intervenção na aparência, das dietas às tatuagens, sugerem reconfigurações subjetivas e, muitas vezes, novas formas de expressão.

Forma e Ação

O Projeto consiste em oito encontros e um vivo corpo de atividades aberto aos imprevistos e impactos experimentados a cada grupo, o que resulta em ajustes permanentes. O Cuide-se é móbile. Os grupos iniciais atraíram mulheres adultas, mais tarde chegaram os adolescentes, de ambos os sexos. Não há seleção nem separação por gênero ou faixa etária. São bem vindas as diferenças.

No roteiro das atividades, trabalha-se com materiais disparadores como, por exemplo, uma caixa de cuidados (espelhos, produtos de higiene e beleza, etc.) e um acervo de roupas, bem como peças específicas trazidas pelos participantes. O enfoque é o modo de interação entre sujeito e roupas, as fantasias em torno delas, as possibilidades de afirmação ou reinvenção de si, bem como do desprendimento das linhas identitárias. Em um dos encontros, os participantes trazem fotografias de diferentes momentos de vida, para as quais criarão legendas escritas ou desenhadas. O grupo é estimulado a refletir sobre as mudanças que ocorrem no corpo; relações entre corpo, roupa e memórias afetivas; associações entre aparência e subjetividade.

Durante as atividades são mostrados trabalhos de artistas que usam as roupas para apresentar histórias, memórias e/ou outras significações afetivas e simbólicas.



Procuro-me. Lenora de Barros [fotografia]



Entre as imagens de arte contemporânea usadas no Projeto está a série Procuro-me - trabalho da poeta e artista visual brasileira Lenora de Barros - que começou em 1994, a partir de uma brincadeira numa máquina de retratos que oferece estudos para diferentes cortes de cabelo. Em 2001, inspirada pela proliferação de imagens de acusados de terrorismo com a legenda Procura-se, Lenora iniciou uma composição fotográfica, na qual estampou uma espécie de multiplicação de si mesma, em cartazes lambe-lambes.

Os diversos penteados e a expressão assustada da artista trazem à tona − com uma dose de ironia − um dos imperativos que atravessam a contemporaneidade: “encontre-se”, “se ache”, “diga quem você é”, por meio de sua aparência. Relativizar e criar agenciamentos para esta “missão” – que pode ser atravessada por sofrimentos e prazeres - é um dos propósitos d’O cuidado de si: atividades sobre você, seu corpo, sua roupa e sua imagem.

Também são utilizados pranchas e livros com imagens em que as mesmas pessoas aparecem nuas e vestidas, realizadas pelo fotógrafo americano Greg Friedler (1970-2015). Além da percepção sobre a diversidade e expressividade de corpos e roupas, esse dispositivo fomenta discussões sobre a nudez, a interação entre corpos e vestimentas, o alinhamento ou descompasso entre o real e o imaginário.

No último dia, a partir de uma retrospectiva dos sete encontros, a proposta é o exercício de criação de uma ética - em oposição a uma moral - para as práticas que envolvem o corpo, a roupa e a aparência e o estabelecimento de vínculos mediados por essas interações. O grupo é convidado a construir uma “roupa coletiva”, retomando peças trabalhadas ao longo do percurso.

Para finalizar, vale lembrar a trama dos afetos e figurinos que possibilitou essa experiência de clínica ampliada. Nos anos 1990, Déborah era jornalista de moda, em São Paulo, e Cristiane atuava em criação de roupas, em Belo Horizonte. Uma outra jornalista viu Cristiane num evento e pediu licença para fotografá-la, pois seu vestido tinha uma gola bordada peculiar. Levou a foto para Déborah, que imediatamente lhe telefonou, querendo saber “o que era aquela gola”. Soube então que Cristiane havia bordado ali parte de sua história: desde broches com bandeiras dos países, presentes de viagens de seus pais, até pequenos objetos e brinquedos da infância, como a bailarina da caixinha de música. Descobriu também que ela estava de mudança para São Paulo. O encontro resultou em intensas trocas pessoais e profissionais, entre elas a parceria na implantação do Projeto Cuide-se.

Referências bibliográficas
Deleuze, G. e Guattari, F. 1997. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. vol 4. São Paulo: Editora 34.
Foucault, M. 1985. História da sexualidade III: o cuidado de si. Rio de Janeiro: Graal.
Guattari, F. 1992. Caosmose: um novo paradigma estético. Rio de Janeiro: Editora 34.


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[1] Psicóloga e professora universitária.
[2] Psicanalista, aspirante a membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.
[3] Esta proposta originou-se com a participação da autora no debate Para não tirar o corpo fora – topografias do corpo – VIII Congresso brasileiro de transtornos alimentares & obesidade (2009, SESC Paulista, SP), a convite da psicanalista Alessandra Sapoznik. A partir desse encontro, iniciou-se um grupo de estudos onde nasceram as primeiras ideias do projeto. Muitas de suas proposições são abordadas nas pesquisas de mestrado e doutorado da autora, respectivamente Incômoda Moda: uma escrita sobre roupas e corpos instáveis (PUC/SP, 2000) e Políticas do Vestir: recortes em viés (PUC/SP, 2008), ambas orientadas pela profa. Dra. Suely Rolnik.




 
 
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