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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    38 Junho 2016  
 
 
PSICANÁLISE E POLÍTICA

O CONCEITO DE POPULISMO E A CONSTRUÇÃO DO ÓDIO [1]


CARLOS LIVIERES [2]




O primeiro impulso da virtude guerreira. J.-B. Debret, 1827.



Em 2013 o Brasil foi varrido por uma série de manifestações que tomaram proporções multitudinárias. O ponto culminante aconteceu justamente na época da nossa jornada daquele ano. Naquela véspera, numa quinta-feira 13 de junho, os manifestantes paulistanos contrários ao aumento das passagens de ônibus e metrô foram brutalmente reprimidos na sua tentativa de chegar à Avenida Paulista. Talvez a sanha repressiva respondesse a duros editoriais dos dois maiores jornais locais que conclamavam o governador a garantir a livre circulação na via mais representativa dessa cidade. As cenas nos chocaram fortemente. E iniciamos aquela jornada sob esse impacto. Na segunda-feira seguinte, participei das manifestações em repúdio àquela violência. Foi igualmente impactante. Centenas de milhares de pessoas andando num fluxo em que não se sabia bem para onde íamos, até onde andaríamos. As pessoas se perguntavam e ninguém sabia.

Duas características me chamaram a atenção. Quando alguém levantava uma bandeira de alguma agremiação partidária, as pessoas que estavam em volta gritavam: “Sem partido!”, como se a participação destes fosse uma invasão na pureza daquele movimento. Já ali eu me diferenciava daquilo, pois além de acreditar que qualquer conquista ou transformação ali exigida passaria pela via partidária, me parecia um contorno fascistóide da indignação. A segunda, era o slogan que mais pegava: “Quem não pula quer aumento!” e todos pulavam. Eu hesitava, às vezes pulava, noutras não, porque no caso eu até era a favor do aumento na tarifa mas fundamentalmente estava ali por outra razão, que era permitir que os estudantes e as pessoas pudessem se manifestar, retomar um direito que sentia estar sendo subtraído. Mas essa dissintonia já me chamava a atenção para o que de fato as pessoas queriam lá. Essa discussão se estendeu por várias esferas, para as redes sociais. As bandeiras, reivindicações iam de: “Abaixo a corrupção, mais saúde, educação, transporte de qualidade”, passavam por uma quase utópica reforma política que repensasse as formas da representação democrático-partidárias, chegando a um “Fora todos” (uma versão do “Que se vayan todos”). Mas minha questão permanecia: o que teria unido tantas pessoas se o que elas queriam era tão diferente?

A mim parece que o conceito de populismo de Ernesto Laclau traz uma contribuição generosa para esta discussão.

Laclau escreve A razão populista em 2005, mas só em 2013 ele ganha uma versão em português. Nesta obra, ele retoma o conceito de populismo, não como um ideologia, nem muito menos como uma anomalia do percurso democrático, mas como uma lógica própria da construção do político. O novo nesta abordagem é “o desenvolvimento de uma teoria geral capaz de explicar a ocorrência de uma lógica política específica”. Isto me chama a atenção, pois até aquele momento entendia o populismo como uma certa forma do acontecer político; especificamente os governos de Getúlio Vargas no Brasil e o de Domingo Perón na Argentina seriam populistas. E das características destes governos teríamos as derivações adjetivas críticas atuais, como por exemplo: “Isso é um populismo barato” ou “Isto é um populismo atual”!

A notícia do falecimento de Laclau, em abril de 2014, provoca uma série de debates que pipocam nos jornais argentinos, pois ele era identificado como “ideólogo” do kirchnerismo. Curioso, me deparo com seu recém lançado livro no Brasil.

Já na introdução à edição brasileira ele apontava a novidade dos regimes nacionais-populares na América Latina (chamados por aqui pejorativamente de bolivarianos) e identificava uma premonitória cruzada antipopulista fundada na defesa férrea das instituições, uma vez que esses novos regimes eram vistos como uma ameaça autoritária.

Instituições, como sabemos, não são neutras - nos lembra ele -, representam a cristalização de relações de força entre grupos, portanto têm um equilíbrio temporário. Assim, quando um projeto de transformação começa a ser implantado, ele entrará em choque com esta mesma ordem institucional que o alavancou.

Ao se debruçar na bibliografia sobre o populismo, rapidamente Laclau encontra a inconsistência deste conceito, pois para todas as definições sempre sobravam tantas exceções que indicariam que, na prática, a definição do conceito não serve. Além disso, todas faziam uma certa descrição pejorativa e vaga sobre o fenômeno. Então, numa virada freudiana, se pergunta se a dificuldade desses autores residiria em não reconhecer, a priori, qualquer tipo de racionalidade à lógica política populista. Aquilo mesmo que era vago e impreciso se transforma no ponto de força de sua reflexão: o motivo pelo qual essa forma de expressão era necessária.

Vamos muito sucintamente ao percurso de Laclau.

Como indiquei, ele não toma o populismo como um ideologia, mas como uma lógica própria da construção do político. E a lógica política específica é a “formulação de identidades coletivas marcadas pela ideia de povo”. Para Laclau, povo é uma construção discursiva e como tal varia de acordo com as diversas experiências, independente de critérios ideológicos. Ou seja, não podemos mais falar da classe média como um corte estável, um extrato, mas como um efeito discursivo. Por isso sofremos com definições que usem “a classe média” como causa de algum fenômeno em si e temos que nos valer de recursos adjetivos como “a classe média conservadora, intelectualizada ...”. É possível afirmar que não se trata de um fenômeno delimitável mas de uma lógica social.

Acerca disso, o psicanalista argentino Jorge Alemán comenta que o “Populismo, nombra la imposibilidad del discurso de nombrar objetivamente a la totalidad de lo social. Al igual que en la constitución del sujeto dividido, lo social se presenta fracturado y dividido en su propia constitución por el discurso.

Então, povo pode ser o discurso dos trabalhadores contra os capitalistas, dos pobres contra os ricos mas também o dos nacionais contra os estrangeiros, dos nacionalistas contra os traidores da pátria e assim por diante. O ponto fundamental é que a articulação discursiva seja capaz de nomear o povo contra seu inimigo. É na contraposição a um outro que se produz um efeito identificatório.

Faço aqui uma hipótese interpretativa. Talvez seja pela necessidade de contraposição ao poder que a narrativa - extensamente midiatizada - de que vivemos agora um momento de corrupção generalizada tenha reverberado muito mais do que as respostas que tentavam demonstrar que ela está em nossa história, em nossas atitudes cotidianas, enfim ela está no meio de nós.

Laclau propõe usar o conceito de demanda que é concebida como a unidade mínima para a ocorrência de uma experiência política. Demanda pode ser um pedido ou uma reivindicação que se dirige aos canais institucionais formais, melhorias numa escola, numa creche. Se ela não for atendida, falamos de uma demanda insatisfeita. A recorrência de demandas insatisfeitas passa a ser lida pelo discurso social como equivalente, ou seja, todas elas têm em comum o fato de que algo as impede de acontecer. É nesse sentido que são equivalentes.

Essa articulação de demandas insatisfeitas se dá a partir da produção de significantes vazios. Vazios, justamente porque a vacuidade dos termos é uma condição e não um empecilho. Só o esvaziamento de sentido pode permitir a articulação de cadeias tão diferentes e heterogêneas em algo mais homogêneo.

Aqui se estabelece um corte antagônico, que surge quando o sistema tradicional entra em obsolescência e não consegue absorver novas demandas. Corte entre as demandas articuladas versus a institucionalidade. Esta divisão negativa do povo contra o bloco de poder é a precondição para a lógica populista.

Isto permite entender que os que estão abaixo, em relação ao sistema de poder, possam ser interpelados pelas mais distintas ideologias, do fascismo ao socialismo. É verdade que na América Latina o populismo está ligado a regimes de esquerda, mas na Europa ocidental temos o crescimento de um populismo de direita e xenófobo.

Termos como Coxinha (e sua gourmetização, Trouxinha) e Mortadela podem ser tomados como significantes que aglutinam e ao mesmo tempo contrapõem uma prática do fazer político, atual e populista. Parece-me que poderíamos positivar algo dessa vacuidade. Novamente com Alemán: “Este denso problema ontológico alrededor de una división, fractura, brecha no superable dialécticamente es a lo que chamamos Populismo”.

Salto para o agora.

Certamente, um dos momentos mais indignantes de nossa história parlamentar foi a homenagem que um deputado federal fez a um recentemente falecido torturador da ditadura civil-militar no anúncio de seu voto. Nessa mesma votação, pouco tempo depois de declarar seu voto o também deputado Jean Wyllys cospe na direção daquele outro deputado. O que se seguiu foi uma série de discussões nas quais se execrava a atitude do primeiro deputado mas também havia outras que criticavam a agressão praticada pelo cuspe. O cuspe virou a agressão!

Textualmente havia ouvido de um colega de ofício que as duas atitudes seriam agressões, e que nenhuma agressão é aceitável.

Um dos motores da constituição do populismo é a possibilidade de equivaler diferenças, unificadas em prol de um bem comum. Parece-me que nos deparamos com fenômenos que resistem a serem compreendidos, e o motor de sua resistência deve ser justamente sua porta interpretativa. Será que haveria um certa orfandade de temas aglutinadores pós 2013? E a aglutinação em torno do conservadorismo poderia permitir qualquer espécie de bem estar?

Afinal, como o trabalho de Victor Arruda nos fez lembrar ontem: “Crianças bem-comportadas não cospem na cara de políticos corruptos”.

 



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[1] Trabalho originalmente apresentado na 15a Jornada do EBEP – O sexo que habito – na cidade do Rio de Janeiro, em 20 e 21 de maio de 2016.
[2] Psicanalista, ex-aluno do Curso de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. Membro do Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos de São Paulo, EBEPSP.




 
 
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